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Sinval Martins de Sousa Filho — Wrewë

Setembro, tempo de primavera. O vento andava brincando de empurrar as folhas quando cheguei à aldeia. Vinha do rio, trazendo cheiro de pequi, aquele cheiro forte que gruda na memória da gente e não larga mais.

Eu tinha pressa. Mas a pressa parou quando vi Sõpre sentado sob o jatobá, firme como raiz antiga. Ele me olhou devagar, como quem mede a alma de um homem. Sorriu com seus dentes gastos e falou baixinho: — Top rõwë, Wrewë? Psêdi?

Respondi como aprendi: — Rowëki. Watô psêdi.

E o mundo pareceu sossegar.

Sentei no chão, perto dele. As formigas passavam, levando farelos como quem leva destinos. O velho ajeitou o cachimbo, puxou a fumaça, soltou devagar. A fumaça subiu como um fio de reza.

— Ktôwanõ fala besteira — disse. — Fala que Saci é moleque perneta. Lobato inventou isso. O nosso Saci não é manco. Tem duas pernas. É inteiro. É deus da mata. Sopra vida nas folhas. Segura o vento quando ele quer virar fúria. Não é traquinagem, é cuidado. Os Guarani são donos do mito do Saci. O Saci é um dos ancestrais deles. Saci zela pela mata e pelo povo Guarani.

O vento passou de novo, mexeu nas folhas, fez um som bonito. Como se confirmasse a palavra do velho.

Macunaíma e Macunaimá

Ele continuou: — Macunaíma… Mário de Andrade escreveu errado. Chamou de herói sem caráter. Que engano. Para nós, é Macunaimá, como fala Jaider Esbell. Macunaimá é avô de Jaider. E o avô muda porque tudo muda. É o movimento do mundo. É encantado. Quem não entende chama de preguiça. Quem sabe, aprende: nada é fixo, tudo dança.

Um soïte gritou lá longe, verde contra o céu dourado. Olhei para o rio. Ele estava como ouro líquido. Sõpre apontou com a boca: — Ali mora a Cobra-Grande. Pantanal mostrou na novela, mas não é igual. Ela é mãe-d’água. Se respeitar, ela protege. Se não, engole.

O velho tragou de novo. Fez silêncio. Depois falou:

– A onça… vocês viram Juma na televisão. Mas ela nasceu aqui. Onça do Tocantins. Ensina coragem. Aparece no sonho quando é hora de ser firme.

Pegou um pequi, mostrou os espinhos brilhando no sol que morria: — Isso nasceu do coração de uma moça que morreu de amor. Quer a polpa doce? Aguente os espinhos.

O vento aumentou. E parecia que o céu estava ouvindo. Sõpre baixou a voz: – Padi… você sabe? A Tamanduá? Foi a primeira mulher Xerente. Abriu trilhas e ensinou a caçar. As velhas viram Padi. É assim, foi sempre assim. E anda, anda, anda pela estrada deixando a estrada levá-la.

Levantei os olhos. Vi um céu cheio de luzes miúdas. O velho então falou dos Guarani: que o mundo acaba quando esquecemos de ouvir a terra. Acaba e volta. Não como castigo, mas como retorno.

Ele pousou a mão no meu ombro:

— “Wrewë, toka za wasku.” Escreva direito. Palavra é raiz. Palavra é vida. Palavra é nós. Contar isso é fazer literatura indígena: não é só minha voz, é a voz dos ancestrais, é escrita coletiva, é nós-lírico cantando junto.

E a noite caiu, devagar, costurada de estrelas. Padi piscou para nós, lá do alto.

Sõpre começou a cantar baixinho, em Xerente:

Are kwatbremï nmïpar

‘Aí, o menino esperou’.

are wawë kikde kmã sbirã

Aí, a velha começou no capim’.

 tet tkrekapok

‘Começou a tirar pedaços’.

are kikte wamhã zûmhu tkrekmësi

 ‘Ela começou a comer os insetos que estavam dentro do cupim’.

tanësnã mã toza wawë tsiwamnãr

‘Enquanto comia (no mesmo instante), a velha se transformava em bicho’.

nroihâsu tô ïsahi

 ‘A fita é o cabelo dela (da velha)’.

E eu pensei: o mundo só continua porque alguém ainda canta para ele.

Sinval Martins de Sousa Filho é professor da Universidade Federal de Goiás (UFG).