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C. J. Oliveira

Especial para o Jornal Opção

― Mas, rapaz, que texto é esse?

― O texto cultural que o senhor pediu sobre o Carnaval. Não está bom?

― Meio démodé para os dias de hoje.

― É o melhor que já fiz ― respondeu o rapaz: ― Bom, pensando bem, a própria origem da palavra é antiga. Idade Média. O senhor sabia que o Carnaval começou na Idade Média?

Seu Batista o olhou por cima dos óculos:

― Sabia. Claro que sabia.

Na verdade, não sabia. Mas não admitia desconhecer. No íntimo, admirou que ele o soubesse. E disse:

― A palavra é antiga, mas atual. Quer dizer: uma festa que se renova. Os termos usados no seu texto é que são antigos ― e mostrava a ele, passando o dedo em cima de algumas palavras e circulando de caneta: ― Tá vendo esse termo aqui? É um arcaísmo.

O Dutra, entrando na sala:

― É assim mesmo, seu Batista. Isso é uma criança para escrever. Ou melhor, um vovô. Não sei onde o Borges foi arrumar esse estagiário.

O Dutra editava Cidades.

Carnaval: pintura de Carybé

― Não sou estagiário. Sou jornalista. E já fui contratado, saiba você.

― Na minha coluna você não serve nem cafezinho.

― Não pretendo trabalhar na sua coluna.

Quando o chefe chegou ele foi se queixar. O Dutra vinha passando dos limites. Vinha inflamando o Batista contra ele.

― O Batista é dono do jornal, não se esqueça disso.

― Eu sei que é o dono. Mas tem hora que o Dutra parece ser mais dono do que ele. Ora essa… Sujeitinho arrogante! Pensa que é só ele que sabe escrever.

― Não ligue pra isso! Você escreve bem. Senão, não teria sido selecionado. E nossa seção é Cultura. Esqueça Cidades.

O chefe acalmou-o, mas a crítica o atingiu.

― Ele não sabe do meu currículo.

― Já disse para não ligar. O Dutra é chato mesmo! Mas aqui cada seção é independente. Cada um faz o seu. Depois nos reunimos com o editor-chefe e passamos um ponto final em tudo. Agora, o Batista mete o bedelho em tudo! Você pode se acostumar. E é até normal isso. Como disse, ele é o cara que paga seu salário. Aliás, seu não, nosso.

― Eu sei, eu sei! Até aí, tudo bem! Mas o Dutra… 

Incomodado, volta e meia mencionava o nome do adversário, uma pedra que se agigantava diante dele. Aos poucos, adaptava-se à rotina do jornal. Certas situações, porém, o abalavam. Ainda estava no período das novidades, e sofria com isso como sofreria um estagiário. Tudo para ele era novo ali: o jornal, os companheiros, o lugar… Além do Dutra, ovelha negra da lista, o pessoal do financeiro também não parecia simpático a ele. No departamento de pessoal, uma exigência atrás da outra. Só o chefe direto parecia estar a seu favor, aprovava seus textos, sem magoá-lo.

Redação do New York Times em 1942 | Foto: de Pixabay

Outro dia, o Dutra, na frente do Borges, o chefe, interpelou-o:

― Não é só escrever. Você precisa aprender a fazer títulos.

― O título está ruim?

― Está ruim, sim, menino.

― Não me chama de menino que eu não gosto.

― De fato, vamos melhorar isso aqui ― admitiu o chefe, chamando o Dutra para fora, puxando-o pela manga da camisa.

― Desse jeito você espanta meu assistente.

― Assistente? Você está mal assistido, isto sim. Por que não arruma outro estagiário?

― Ele não é estagiário. Já é jornalista.

― Não basta ter diploma. Esses filhinhos do papai fazem uma faculdadezinha não sei aonde, chegam aqui e acham que vão dar show…

― É, mas não precisa implicar. Deixa que eu cuido do garoto.

― Não sabe nem fazer uma manchete.

― Ele tem boa redação. E um vocabulário rico.

― Pode ser, mas não sabe fazer uma manchete.

― Já disse, deixa que eu cuido do garoto.

― É bom mesmo, senão, vai afundar nosso jornal.

E saiu esbaforido para uma reunião com o Batista.

O garoto, cujo sobrenome era Primo, vivia às voltas com algum conflito na redação. O Olavo, do departamento de pessoal, dias antes, perguntou:

― Você é primo de quem aqui?

― Não sou primo de ninguém especificamente. Que conversa é essa?

― Tá todo mundo pensando que você é protegido do chefe. Acaso é primo dele?

Entendendo a gozação, respirou, e só então respondeu:

― Não. Claro que não. É apenas o sobrenome da minha mãe.

― Ah… ― e o olhava com certa repreensão.

Três meses depois, ele já tendo firmado no posto, por motivos supervenientes, foi conduzido a servir ao Dutra, o carrasco. Seu chefe que anunciou:

― Você vai ter que escrever em Cidades esta semana.

― Escrever em Cidades? ― desesperou-se.

― Sim, é ordem do Batista.

― Mas por que em Cidades? Nós somos Cultura? Que bronca é essa?

― O Dutra está atulhado de serviços. E está com uns problemas pessoais. Precisa de ajuda.

― Precisa de ajuda? Que se dane o Dutra com seus problemas. O que eu tenho a ver com isso? Esse cara sempre me cerceou. É um panaca, diga-se de passagem.

― É, mas vai ter que ajudá-lo, quer queira ou não queira ― continuou o Borges, impassível.

― Mas por que eu?

― Já disse, é ordem do Batista.

― O Batista tem hora que tem umas coisas…

― Somos uma família. Não podemos escolher serviço.

― Ah, então agora somos uma família. Que lindo isso ― ironizou.

― É assim que o Batista quer que seu jornal pareça.

― Tudo pelas aparências. Só se for.

― É só uma semana. Só nesse número. Não é para a vida toda. Você tira de letra. O próprio Dutra pediu ao Batista.

― O próprio Dutra? Chefe, você está doido, esse cara me detesta.

― Acho que não.

― Acha que não? Ele quer é me prejudicar aqui dentro. Achar motivo para me reprovar. Você não vê?

― Acho que não. No fundo, ele é seu fã. Gosta do seu estilo.

― Gosta do meu estilo? Vive reprovando tudo que faço.

― Vai por mim. Pode aceitar que vai dar certo. E tem mais: em Cidades você aprenderá outro jargão. Você precisa se enriquecer jornalisticamente.

― Mas eu não quero aceitar. Essa é a questão! Estou bem aqui com você. Em time que está ganhando não se mexe. Bota outro no meu lugar.

― Mas não tem outro. O homem é você.

― Nossa, virei importante, de uma hora para a outra?

― Você sempre foi importante. Pelo menos para mim. Nunca escondi isso.

― Tem o Mafra de Política? Por que não põe ele no meu lugar?

― Porque o escolhido foi você. ― E cochichou, abaixando-se, levando a mão à boca: ― Você escreve melhor que o Mafra.

― Nossa, virei o cara do jornal agora ― ironizou de novo.

― Virou mesmo.

Vendo-se sem saída, sentenciou afinal:

― Tudo bem, eu aceito. Mas só nessa publicação. E também quero falar com o Batista. Espero que não se importe.

― Tudo bem. Eu não me importo.

Foi conduzido à diretoria na companhia da secretária. Diante do Batista, foi taxativo:

― Por que o senhor me escolheu para auxiliar o Dutra?

― Porque você é bom. Já demonstrou isso aqui.

― Ah, muito obrigado. Estou envaidecido. Mas não sou nenhum super-homem do mundo jornalístico.

O Batista fez uma cara assim meio interrogativa, e calou-se. Houve uma pausa. O vento trancou um lado da janela com estrondo. Duas portas bateram, além. Enquanto Batista respirou para dizer alguma coisa, ele expôs meio acanhado as suas queixas:

― Mas ele não gosta de mim. O senhor podia me tirar dessa.

― Não diga isso! Não existe essa coisa de gostar ou não gostar.

― Digo sim, é a mais pura verdade. Ele vive me esculhambando, me chamando de estagiário. Me trata como imbecil. O senhor não sabe? O senhor não vê?

― Não dou ouvido a essas ladainhas. Nem tenho tempo para essas coisas. Isso aqui é um jornal, não é a casa da mãe Joana. E o número tem que sair, de um jeito ou de outro.

― Mas é só desta vez?

― É só desta vez! O Dutra está com uns problemas aí! Está com a cabeça a mil. Não consegue escrever uma linha. Teve um apagão técnico, entende? E além do mais, você será recompensado.

― Recompensado como? ― quis saber, com um olhar de espanto.

― Receberá uma parte dos anunciantes dele. Não lhe agrada uns troquinhos no bolso?

― Agradar, agrada, mas não é só isso. Tenho o meu ego ferido, ele vive me ofendendo. Não merece ajuda minha, nem de ninguém.

― Isso é coisa de vocês. Resolva com ele. E fim de papo. Você tem três dias para escrever as reportagens. Portanto, mãos à obra.

Vendo-se acuado, viu que não adiantava argumentar.

― Sim, senhor ― concordou afinal, levantando-se e batendo a porta.

 Pôs-se a trabalhar atordoadamente, recolhendo informações nas ruas. Em Cidades havia vários temas que poderia explorar. Sem tempo para controvérsias, em pouco alinhavou os textos, mandando para o editor-chefe, que os aprovou junto ao Borges, com poucas mudanças.

Diante do sucesso que foi aquela edição, sempre que havia uma lacuna em qualquer setor era chamado. Virou o curinga do jornal. Jamais fora um estagiário. E, finalmente, passou a ser respeitado.

C. J. Oliveira é escritor.