Conversa de filho para pai, por Bartolomeu Bueno da Silva

16 agosto 2025 às 21h00

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Marcio Fernandes
Especial para o Jornal Opção

Antes de deixar o Arraial do Ferreiro a pé, fundado em 1727 em Goiás, do nada, sob o sol franco das 11 horas, encontro o Bartolomeu Bueno da Silva, o filho. Bacamarte de prontidão e bateia na sombra, ele desenvolvia um assunto construtivo com o pai sobre a aventura colonial portuguesa nos sertões de Goiás. Eles dividiam carne seca picada com canivete e água fresca vinda de mina. Claro que havia um odre de aguardente sempre à mão.
A aparência dos dois bandeirantes era coerente com a historiografia dos meus tempos de ginásio na escola pública de excelência dos anos 1970. Ambos tinham barbas longas, eram rústicos como um descendente de alentejano criado nos trópicos do Novo Mundo, usavam botas sete-léguas e coletes de couro. Se na construção heroica do bandeirante de monumento ele está sempre bem-arrumado, na minha presença eu achei que o pessoal estava precisando de um banho mais para escovado.
O filho fala ao pai dos grandes momentos da profissão de bandeirante. Nós fomos os caras do Brasil no século 18. Depois, lamenta a decadência dos últimos anos dos Bueno em Vila Boa. Nós fundamos no Brasil muitos arraiais que se tornaram aglomerados urbanos espetaculares, enalteceu, mas omitiu o esgoto a céu aberto nas milhares de favelas do país e os territórios do crime organizado nos quais nem bandeirante entra.
O segundo Anhanguera puxa a memória do pai e revela que naquele lugar em que eles estiveram pela primeira vez, por volta de 1682, foi construída uma obra-prima da arquitetura colonial portuguesa. Consagrada Patrimônio da Humanidade pela Unesco, hoje é chamada de Cidade de Goiás e considerada uma herança cultural vernacular, expressão que ele demorou a compreender.

Vaidoso da gloriosa obra, lembra ao pai que Anhanguera é nome de uma enormidade de coisas no Brasil; inclusive de autopista de mais de 75 léguas em São Paulo, antiga Capitania de São Vicente, o lugar mais rico da América Latina, hoje com quase 45 milhões de habitantes.
A região cresceu demais da conta, comentou o Anhanguera filho com sotaque de goiano legítimo. De pensar que a minha primeira bandeira saiu de lá com uns 500 homens. Na ocasião já era muita gente, a maioria índios, hoje chamados povos originários.
O filho se entrega ao pedantismo ao dizer que há estátua de Anhanguera para todo lado do Brasil. Menciona que as cidades estão cheias de placas de rua com seu apelido. Diz que Bartolomeu é nome de restaurante de alto padrão e se orgulha de conferir denominação de faculdade de psicologia à loja de aviamentos, passando por inferninhos com mesa de sinuca.
Só em pagamento do Quinto, de acordo com informações que ele obteve do padre Palacin, o Anhanguera filho faz uma conta de que foi entregue à Coroa Portuguesa 20 mil quilos de ouro. Eu sou a origem de Goiás. Eu criei um Estado para o Brasil, comentou com o pai. E o Diabo Velho escutando, com muita paciência, a venturosa história do filho.
Cem mil quilos de ouro produzidos em um período curto de pouco mais de 50 anos, sem incluir o descaminho. Este foi um saque considerável da metrópole em uma parte da colônia que nem a pertencia a princípio e para a qual não havia importância até que o ciclo do ouro fosse inaugurado em Minas Gerais.
Ouro garimpado com a mão-de-obra escrava e à custa da eliminação da população indígena. Em Goiás houve um dos maiores genocídios de ameríndios do Brasil, tanto que hoje restam quatro comunidades aldeadas com menos de mil pessoas originárias.
Nos seus primeiros anos, Goiás era um território africano no Planalto Central. Em 1736 havia uma população de aproximadamente de 20 mil habitantes por aqui, metade de negros escravizados, e o restante entre portugueses e mestiços. Hoje possui 7,3 milhões, 50% autodeclarados pardos. De acordo com o Censo 2022, só Goiânia pulou para mais de 4 mil indígenas residentes. Seria uma estatística interessante da mobilidade populacional brasileira ou de autodeclaração de etnia simulada em busca de cotas e outras benemerências estatais? Esta era a dúvida do Anhanguera pai.
Um extraordinário exemplo do que nós, bandeirantes, promovemos, prossegue o filho. Ninguém nos tira a virtude de ter espalhado a miscigenação de raças em escala continental e criado a cultura caipira. As únicas coisas do Brasil que não têm defeito.
Mais que um Estado, filho, nós criamos a Paulistânia, comentou o Diabo Velho. Trata-se de imenso espaço da cultura caipira que se estende do Vale do Paraíba, em São Paulo, até o Mato Grosso e o norte do Paraná, abrangendo Minas Gerais e Goiás.
O Bartolomeu pai muda de assunto e lamenta que realmente pegou mal aquela ameaça da lenda de que atearia fogo nos rios caso não lhe dessem todo o ouro da terra.
O segundo Anhanguera minimizou a situação, disse que o truque de mágica virou uma prática recorrente à época. Os povos originários a princípio viajaram no sentido figurado da coisa, depois viram que era aguardente.
Hoje, infelizmente, o alcoolismo é uma das piores moléstias das populações indígenas, especialmente na Bacia do Rio Araguaia. Mas não tem cabimento o pessoal do revisionismo histórico dizer que nós, os bandeirantes, éramos uns bandidos sanguinários, movidos pela usura, a escravizar negros e matar indígenas. E ainda tem gente que quer tirar a tua estátua no centro de Goiânia, alertou o pai. Não viu que puseram fogo no Borba Gato em São Paulo e ninguém foi processado pelo Supremo Tribunal Federal?
É verdade, a gente tinha a crueldade natural dos sertões de Goiás. Éramos escravagistas em uma sociedade que tinha no escravo o principal modo de produção. Estávamos a serviço da Coroa Portuguesa, que lucrava com o tráfico negreiro e nos esfoliava com uma carga tributária imponderável.
Nós viemos para esse sertão selvagem em busca de aventura que nos daria fama e fortuna. Onde hoje é Goiás já foi uma terra que pertencia à Espanha de acordo com o Tratado de Tordesilhas e que na verdade não tinha dono.
Nós fizemos Portugal expandir os meridianos da sua principal colônia para o oeste em busca de metais preciosos para uma metrópole decadente, que tinha perdido o controle do pacto-colonial para a Inglaterra de acordo com o Tratado de Methuen de 1703.
Naquela época, os Grandes Descobrimentos eram glória do passado em Portugal. No Brasil, sobrevivia quem tinha algum ouro em pó contrabandeado. Inclusive os escravos, que compravam a alforria.
Pai, eu decidi ter esta palestra com o senhor justamente em Ferreiro, arraial que eu fundei, para mostrar o que fizeram com o Rio Vermelho. De Ferreiro, só sobrou a igreja de São João Batista. Da nascente, logo ali a uma légua a leste, até onde ele deságua no Rio Araguaia, o senhor vai desconhecer o lugar que descobriu. Na Bacia do Rio Vermelho, hoje existem 17 municípios, a maioria com lixão a céu aberto a poluir o manancial com todo tipo de rejeito doméstico, hospitalar, industrial.
O tanto que a gente judiou do rio para garimpar o ouro é nada perto do que fazem hoje com essas águas. O Rio Vermelho em grande parte das suas 47 léguas de extensão está assoreado, pois removeram a vegetação que o envolvia.
Com a calha coberta de sedimentos, na época das águas, o rio fica irritado e desce com fúria dos contrafortes da Serra Dourada a destruir o Arraial de Sant’Anna, que eu fundei e depois foi chamado de Vila Boa, justamente quando eu caí em desgraça.
Onde eu construí Vila Boa é uma planície de inundação. Para justificar as cheias mais devastadoras, como as de 1869 e 2001, dizem que eu fiz a cidade de Goiás em local inadequado. Tinha de ser ali mesmo, era onde tinha ouro e terra relativamente plana.
Pai, eu não posso ser responsabilizado pelos desvios da ordem natural do rio que fizeram depois da minha governança e nem pela carga de esgoto que despejam na bacia do Rio Vermelho em boa parre do seu curso.
A culpa é do Brasil. Aqui há um negócio que se chama meio ambiente. Eu fiquei meio cismado no começo. Para mim, meio e ambiente significam a mesma coisa. Juntos, são uma redundância disfuncional.
Para protegê-lo há centenas de leis, decretos, resoluções, instituições etc. Tem lei para tudo e as coisas não acontecem, pois o próprio Estado brasileiro é o grande infrator da norma que ele próprio edita. No nosso tempo, uma ordem régia era cumprida.
Filho, era, mas tive notícias de que você, na condição de capitão-mor das minas de Goiás, praticou o mau caminho. Fez um grande serviço para Portugal, mas procedeu como o pessoal de Brasília.
Há denúncias de corrupção, formação de cartel e o mais grave dos crimes da época: promover pedaladas fiscais para enganar o colonizador em relação ao Quinto; por isso você acabou por morrer pobre e desprotegido.
Eu tive a glória da conquista colonial e encontrei a decadência porque as minas eram fracas, a sede da coroa não tinha cura e o ouro era pouco para tanta ganância. Tanto é que o barroco em Goiás é esporádico. Eu não fiz nada de errado. Podem mudar a minha imagem, dizer que eu era um mameluco sem procedência e descalço, mas não vão alterar a história.
Sobre o Rio Vermelho, cuja lenda tem esse nome por ter corrido sangue de Povos originários, eu espero que as próximas águas derramadas estejam boas para eu me banhar na Carioca, sem coliforme fecal, e o senhor é meu convidado.
Nós e esse magrelo das canelas secas, que não para de escrever no celular, estamos precisando de um banho expressivo e de régio almoço. Lá tem um peixe na telha super qualificado.
Marcio Fernandes, jornalista, é colaborador do Jornal Opção.