Ao contrário do que as propagandas pregavam, as migrações não eram uma celebração da vida, eram muito mais uma ode dedicada a morte

(Com o apoio do escritor e doutor em História Ademir Luiz, o Jornal Opção começa a publicar uma série do que se pode chamar de “contos marcianos” ou de contos galácticos. As viagens espaciais estão, afinal, na ordem do dia.)

A Quinta Migração

Julius Vieira

Uma fila era a última coisa que imaginaria poder atrasar sua pesquisa em anos. Mas, até instalarem as bibliotecas — virtuais ou não — no novo planeta, levaria um bom tempo para retomar o seu trabalho. Levava consigo uma pouca bagagem, pois os outros pertences foram dentro de algum contêiner nos cargueiros despachados no dia anterior. E neste contexto, Jax olhava a centena de humanes à sua frente, todos aguardando sua vez de entrar na nave.

Como historiador especializado em História Antiga, muito de seu olhar recaía sobre o marco das primeiras migrações espaciais humanas — naquela época ainda com a grafia já em desuso — há quase cinco milênios e sua pesquisa envolvia traçar os paralelos entre todas as posteriores. Sua primeira constatação veio do cansaço dos mais de cinco anos em preparativos burocráticos para organizar mais uma migração em massa: concluiu que vivenciar eventos históricos não era tão agradável quanto estudá-los.

Estavam partindo de Netuno para uma galáxia vizinha, era a Quinta Migração. O pequeno Plutão fora sumariamente ignorado. Na perspectiva de Jax o ex-planeta fora salvo. Levava-se cada vez menos tempo para desenvolver as tecnologias que faziam os planetas se tornarem habitáveis, apesar de sempre serem necessário ajustes de um para outro. Ao mesmo tempo, os recursos dos planetas ocupados pela praga humane eram a cada migração consumidos com maior voracidade. Atitude sustentada pela certeza de que um novo planeta poderia ser habitado, se necessário. Isso também fazia o espaço entre as migrações mais breves, sempre deixando para trás apenas um caco do que o ambiente fora. Isso aconteceu com cada um dos planetas do sistema solar.

Jax, de certa forma, estudava o que ficava para trás. Muitos criticavam seu estudo acerca da Terra, afinal, há incontáveis gerações ninguém chamava aquilo de lar. Era só passado, lixo, velharia. Mas o historiador entendia: o passado poderia ajudar em muito às reflexões do presente. Por mais que os terráqueos não tivessem os mesmos pescoços compridos e curvados dos humanes — efeito de uma evolução acelerada pelos novos ambientes —, eram sim os seus antepassados.

Por exemplo, em sua pesquisa havia descoberto alguns registros de renda dos primeiros migrantes. Depois descobrira dados sobre a renda média da população mundial em um período aproximado. Cruzando os dados o historiador elaborou uma hipótese, que se refletia no presente: a cada migração, a população mais pobre ficava para trás. Pessoas com doença graves internadas em hospitais, também. Inclusive, dali da fila era possível ouvir os protestos dessa população e as repressões das autoridades geradas por esses fatos, pois a Quinta não estaria isenta de contradições. Jax fazia um grande esforço para ignorar esses sons, outros na fila não pareciam afetados.

Um fato interessante surgiu em sua mente: a mão de obra mandada para os novos planetas para transformá-los em um habitat pertencia a essas camadas mais pobres. Era o tipo de emprego que gerava muitas baixas. Jax só estava naquela fila devido a morte de centenas de operários mandados não só para um outro planeta, mas para outra galáxia, incumbidos de preparar o terreno para a moradia de seus contratantes. A única vantagem à vista era a garantia de que a própria família poderia desfrutar do novo lar… e isso nem sempre acontecia, segundo alguns artigos lidos sobre a Quarta Migração. Outras contradições eram as campanhas pró-vida feitas em torno das Migrações, pregando a ideia do salvamento de milhões.

Jax sentia certa culpa e sabia que tinha privilégios por ser filiado a uma das maiores universidades do planeta, isso lhe rendia certo status, mas o que faria? Ficaria? Ele sabia o resultado de ficar: uma vida de subsistência até definhar. Sempre monitoravam o planeta por algum tempo para observar o desenrolar das coisas pós migração. Era quase sádico. Na Terceira, o número de suicídios coletivos após o primeiro ano foi enorme. Da Primeira e da Segunda, as informações eram mais difíceis de obter devido a tecnologia ultrapassada. Era difícil de extrair os dados.

O historiador devaneou sobre como o resultado prévio de sua pesquisa podia ser visto ali mesmo, pouco antes dele entrar na nave. Ao vivenciar, sentiu ter entendido o que marcava cada Migração, desde a Primeira. E ao contrário do que as propagandas pregavam, elas não eram uma celebração da vida, eram muito mais uma ode dedicada a morte.

Julius Vieira é escritor.