O sábio disse-lhe que a salvação da ruína que teriam nas mãos dos seres de Marte seria um futuro de recuperação na base do satélite do planeta de onde vieram

(Com o apoio do escritor e doutor em História Ademir Luiz, o Jornal Opção começa a publicar uma série do que se pode chamar de “contos marcianos” ou de contos galácticos. As viagens espaciais estão, afinal, na ordem do dia.)

Um salto no escuro

Rogério Rocha

Existem, basicamente, dois tipos de viagens: aquela que fazemos todos os dias e outra que só se faz uma vez.

Após a descida turbulenta, os olhares de Anders e Falco se cruzaram. Ofegantes, dentro de seus trajes, não conseguiam acreditar que haviam enfim tocado o solo do planeta vermelho. Nos primeiros minutos de caminhada, foram tomados pelo assombro diante do feito — grandioso e assustador. Só não mais assustador do que a sensação de serem tomados por um silêncio monumental.

A nave Esperança chegou em Marte a 27 de abril de 2055, após sete meses de viagem, e pousou em Chryse Planitia, na região de Ares Vallis, liberando um veículo robô que os ajudaria na coleta de materiais, fotos e dados sobre o ambiente descoberto. Essa era a terceira tentativa feita pela Terra. As missões tripuladas anteriores fracassaram devido a problemas no percurso: a primeira não passou do cinturão de Van Allen e a segunda distanciou-se da rota no trecho final, perdendo-se em definitivo, durante a aproximação do seu destino.

No final das contas, dois astrobiólogos chegaram vivos ao planeta, após a entrada na atmosfera. Três planetólogos, dois astrofísicos e três climatologistas, que com eles viajavam, morreram nas cabines, com uma espécie de mal súbito, pouco antes do fim da viagem. O fato é que não houve lógica. Morreram. Foi como se alguém os tivesse drenado as forças. Seus corpos foram rapidamente ejetados da nave, seguindo-se os protocolos de segurança determinados pelo comando central.

Em solo marciano o computador científico (anexo ao capacete dos trajes) deixou de funcionar com a precisão de quando testado na Terra. Emitia agora apenas avisos esporádicos sobre as distâncias e o clima. Clima este que já anunciava a chegada de uma grande tempestade de areia para o mesmo dia da martissagem.

Sobre o solo vermelho de Marte a solidão e o cansaço invadiam a alma dos astronautas. Em pouco tempo começaram a descobrir a dificuldade que teriam para instalar uma base de apoio para outras expedições e o quão duro seria manter-se vivo em meio àquela desolação, sem falar em seus estados mentais e fisiológicos visivelmente afetados.

Após algumas horas de exploração do terreno, os cosmonautas visualizam um grupo de pequenos orbes prateados e brilhantes que se movimentam à distância. Ao segui-los, para registrar aspectos de suas formas e estruturas, são levados para dentro da cratera Jazero, situada no côncavo dum pequeno vale. De lá observam a formação e chegada da temida tempestade. O céu, carregado de nuvens de poeira rubra e muito vento, foi invadido por um som desconhecido, que lembrava a vibração de um sino a tocar num tom grave e abafado.

Em fração de minutos estavam os dois encobertos por pela densa poeira. Os equipamentos portáteis que levavam nos trajes disparavam todo tipo de bip. Correram, sem certeza da direção, retrocedendo ainda mais para o centro da cratera. Que bela forma de chegar ao mundo novo. Após anos de seleções tortuosas, treinamentos, planos, testes secretos, um voo de meses, o desgaste psicológico, os conflitos que tiveram de enfrentar e a culminância da morte obscura de vários membros há menos de um dia da entrada na atmosfera, Falco e seu parceiro descem justamente no meio de uma tormenta em formação.

O sonho da conquista de um novo mundo, uma nova terraformagem, um planeta de fuga para os terráqueos, criou a grande ilusão marciana. Vendida como algo perigoso, porém necessário, a Missão Marte os trouxera a um inferno de lugar sem vida.

Sob os efeitos dos ventos fortes, os exploradores falavam alto, gritando um ao outro em seus comunicadores, até perceberem que algo ainda mais estranho ocorria. Os orbes, que antes buscavam, brilhavam intensamente no centro da tempestade. As luzes deles saídas desceram por sobre a cratera, fazendo abrir-se o chão. Os astronautas, sem tempo para reagir, caem num fosso que suga a terra que há instantes estava sob suas botas. Minutos depois a fenda se fecha, aparentemente mediante a intervenção das mesmas luzes, que somem quando o mau tempo se extingue.

A verdade é que metade dos habitantes do planeta havia desaparecido ou migrado para planetas distantes, enquanto a outra parte se estabelecera definitivamente nos subterrâneos de Marte logo após a trigésima convulsão meteorológica do ano marciano de 5000. Os que ficaram, juntamente com a população de extraplanetários, construíram as cidades do subsolo, que era onde estava a vida daquele mundo.

Oriundos de várias partes da Via Láctea, a maioria dos seres dali eram quase etéreos. Outros, híbridos de terráqueos e seres evanescentes, escravizados pelos Senhores dos Submundos (os descendentes dos primeiros marcianos) e o restante, a terça parte do contingente de vida inteligente de Marte, era formada por abduzidos do planeta Terra.

Ao retomarem o sentido do que estava a ocorrer, os astronautas viram-se presos em tubos fosforescentes, pairando cinco metros sobre uma multidão de seres disformes, em meio aos quais conseguiam ver algumas faces que lembravam a de humanos. Com a comunicação rompida entre eles, percebiam que algo lhes falava dentro de suas mentes. Uma consciência maior que as suas, que lhes narrava a história do planeta vermelho, a razão daquele cenário e o que lhes poderia acontecer.

— Quem está falando conosco? — questionou Anders, com a voz do seu pensamento.

— Não parece nos querer o mal, Anders. É o que pressinto! — diz Falco também telepaticamente.

— Temo pelo nosso destino, Anders. Não temos saída. Essa gente vai nos destruir.

Falco, ainda na vertical, dentro do tubo flutuante, abaixou a cabeça desolado. Abaixo de suas botas estava um amálgama de seres que, olhando fixamente para cima, representavam seu maior medo, naquele momento.

Imóveis no corpo de luz em que se achavam, os dois terráqueos sentiam estar em descida gradual. A continuar o trajeto descendente, em pouco tempo estariam nas mãos daquela estranha horda.

Na iminência de serem tragados pelos marcianos, sentem novamente a presença grandiosa de uma entidade que lhes fala como que aos ouvidos, com o reverberar de uma potente voz em seus cérebros. Inexplicavelmente, percebem as mensagens até em forma de sussurros. Alguém lhe diz um nome. Seu nome. Enoque.

Nesse instante, aproxima-se deles uma nave de cristal. Seu brilho é como o de uma noite estrelada. Lá dentro, sobre um trono, na sala de comando, está Enoque. Que os acalma e os retira dali, transportando-os num raio azul. Em fração de segundos estão de frente para um homem de aparência extremamente idosa, cujo olhar e a presença dominam seus corações, enchendo-os de esperança.

Diante deles estava o profeta Enoque (que andou com Deus e depois sumiu, arrebatado). Tinha-se tornado, ao longo de mais de mil anos, além do homem mais velho do mundo, uma espécie de mentor dos habitantes dos planetas inferiores, tendo por missão manter a paz e o equilíbrio entre os habitantes das regiões daquele quadrante de espaço, tomadas pelo cientificismo de base hiperracionalista. Há milhares de anos andava pelos mundos a bordo da nave Ezequiel, que o transportava de um local a outro com o auxílio de saltos quânticos. Seu papel era de usar de controle psíquico para atuar no combate à disseminação da violência dentre as espécies do sistema planetário, impedindo a escravização de civilizações menos evoluídas pelos povos mais avançados.

— Agora estarão salvos. Para sempre! — diz Enoque.

Um brilho vigoroso adentra os olhos dos homens do espaço que, num piscar de olhos, veem-se transportados para longe de Marte. Quando a luz do dia se dissipa, e o olhar recupera sua visão, Anders e Falco veem a Terra na linha do horizonte.

Desfeitos do traje virtual e da luz que os conduzira, exultaram o profeta e se alegraram pela descoberta. Por sobre um vale, na parte iluminada da Lua, encontraram Enoque face a face. Com o temor da reverência que seu rosto imprimia, ouviram-no em silêncio. Depois, Anders lhe perguntou sobre o que fariam ali. O velho sábio disse-lhe que a salvação da ruína que teriam nas mãos dos seres de Marte seria um futuro de recuperação na base permanente do satélite do planeta de onde vieram.

Como planeta de condenação, Marte não poderia mais ser habitado por outros povos. Isso os condenaria à Morte por desintegração anímica ou à escravidão. Como acontecera com todos os que ali ousaram estar antes deles. A lua, contudo, pequeno corpo a circundar a Terra, diferente do planeta vermelho, era uma colônia de cura e um recanto para os arrebatados, que agora viviam em suas galerias interiores, em seu subsolo. Aliás, o desprezado satélite terrestre também guardava segredos. Todos escondidos, por milênios, no fundo de suas entranhas.

Rogério Rocha é membro da Academia Poética Brasileira.