Contos de Ambrose Bierce mesclam o horror fantástico ao horror concreto

28 junho 2025 às 21h02

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Edmar Monteiro Filho
Um artigo no jornal informa que a União Europeia está conclamando seus cidadãos a estocarem alimentos, água, medicamentos e outros itens essenciais, “à medida que a guerra, os ataques cibernéticos, as mudanças climáticas e as doenças aumentam as chances de crise”. Alerta sobre a necessidade de o bloco europeu construir uma reserva estratégica de equipamentos médicos, energéticos e de transporte, além de recursos contra ameaças químicas, biológicas e nucleares.
Penso que essa disposição traduz um momento de insegurança crescente de muitas nações do globo quanto à possibilidade de catástrofes iminentes, tendo em vista a recente pandemia, os “apagões”, invasões de hackers e, principalmente, a escalada de conflitos bélicos. Já vivemos outros momentos em que a guerra ameaçou engolir o planeta ou grande parte dele.
Mas, depois de toda destruição e sofrimento que a humanidade experimentou, especialmente durante as duas grandes conflagrações mundiais, imaginava-se que a lição fora aprendida.

As manchetes apontam que a guerra na Ucrânia vai adquirindo contornos cada vez mais preocupantes; no Oriente Médio, a paz entre israelenses e palestinos está longe de ser conseguida; na América do Norte, o raivoso Pato Donald cospe ameaças ao norte e ao sul, deflagrando a incerteza, alimentando a fogueira da guerra comercial. Mas esses são os conflitos mais midiáticos no momento.
A história da humanidade se construiu sobre os cadáveres e os escombros produzidos pelas guerras. Por interesse no presente artigo, cito a Guerra de Secessão, travada nos EUA, entre 1861 e 1865, e que, com suas setecentas mil vítimas, disputa com a Guerra do Paraguai o posto de a mais mortífera travada nas Américas.
Especialmente trágica, essa guerra civil teve como causa declarada a oposição entre o Norte abolicionista e o Sul escravocrata. Mas não se pode colocar os interesses humanitários acima das verdadeiras causas, de ordem econômica, que mobilizaram os oponentes.
Ambrose Bierce, escritor e jornalista, alistou-se com 19 anos e lutou pelo exército do Norte em algumas das batalhas mais sangrentas da guerra. É autorizado dizer que os horrores que presenciou influenciaram decisivamente seus escritos.

Como jornalista e satirista, foi um crítico social mordaz e como contista, criou um conjunto numeroso de grandes histórias de mistério, terror e sobre a guerra civil. “A Estrada Enluarada e Outras Histórias” traz um apanhado expressivo dessa produção.
A coletânea, organizada por Rodrigo Breunig, traz em seu início várias histórias de fantasmas, de assassinatos cruéis, de eventos misteriosos, deixando para o final os contos ambientados durante a guerra, e é interessante notar como o sobrenatural e o fantástico invadem os relatos sobre os combates, o horror fantástico mesclando-se ao horror concreto.
De início, o relato de um crime terrível, que vai ganhando contornos sobrenaturais, quando o fantasma da vítima parece surgir para despertar o pavor e os remorsos daqueles com quem convivera. Seguem-se as histórias apavorantes de acertos de contas entre vivos e mortos, de aparições e animais sinistros, de tramas de assassinatos, de desespero e loucura.
Os contos que abordam a guerra não se apoiam em descrições de táticas, batalhas, cenas de heroísmo ou covardia, mas arrastam para o universo da luta fratricida elementos de uma luta outra, que se trava entre soldados, fuzis e generais e forças da ordem do inexplicável. Assim, um pai e um filho lutam em lados opostos, inconscientes de que o destino lhes prepara um encontro.
Os últimos momentos de um espião, prestes a ser enforcado, arrastam-se interminavelmente, entre o delírio e uma fuga espetacular. Os rescaldos da sangrenta batalha Chickamauga, da qual o escritor efetivamente participou, são descritos pelos olhos de um garoto, que adormece na mata para despertar em meio ao cortejo horripilante de feridos e mutilados.
Quando lemos os contos de fantasia macabra de “A Estrada Enluarada e Outras Histórias” — nitidamente influenciados por Edgar Allan Poe —, sobressai o caráter de pura irrealidade.
Já as imagens e narrativas de dor e destruição produzidas pelas guerras da vez tocam nossa sensibilidade até a indignação.
E, por conta da hierarquia entre as notícias de impacto, vamos esquecendo dos combates sem fim na Síria, Mianmar, Iêmen, Irã. As imagens da Bósnia, do Iraque, são como sonhos distantes.
E assim as contas se invertem, pois o verdadeiro concerto de atrocidades cometidas nos incontáveis conflitos na África — Etiópia, Mali, Sudão, Nigéria —perdem-se numa dimensão de fantasia, a ponto de poderem ser consideradas como imaginativas obras de ficção, como os contos de Ambrose Bierce.
Edmar Monteiro, escritor e crítico literário, é colaborador do Jornal Opção.