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Astier Basílio

De Moscou

Se nos anos 1960 a Rússia presenciou o fenômeno dos poetas que arrebatavam multidões aos estádios, o ânimo foi arrefecendo e a geração dos anos 1980, sentia-se deslocada, até mesmo inútil.

Com o colapso da URSS, uma das vozes mais vigorosas que emergiu desses escombros foi a de Denis Novikov — cuja poesia serve como testemunho desse período de desintegração. O que pode ser conferido na tradução do poema abaixo:

Que tal se calar de igual pra igual,

já que nosso papo não vai dar em nada.

Não há ferimento, nem sobre ele há sal.

Uma chuva de pombos lavou a sacada.

A grana não dura. Minha mão se enterra

mil vezes no bolso. A grana não dura.

E então, pelo visto, não é uma esfera

o planeta, mas só um objeto que fura.

[Outubro de 1987]

Denis Novikov várias fotos 2

Em 1991, Novikov mudou-se para Londres em busca de seu grande amor, a atriz Emily Mortimer (de “Match Point”, “The Newsroom”). Embora o romance não tenha prosseguido rendeu um ciclo de poemas cujo texto inicial apresento abaixo:

Poemas para Emily Mortimer

Para ti — mas se a voz da musa sombria… — Púchkin

I

Como uma mancha em camisa macia

o medo da ressaca aparecia

e o taxista me olhou fechando a cara;

inventando um atalho, uma saída,

e ao coçar a orelha ensurdecida

eu dizia pra mim: “tem calma, para”.

Delírio eslavo fervendo em tua mente

mas tu chegas em casa, certamente.

Não foi a morte ou um fantasma quem veio,

mas um ninguém, calado, num biscate,

um malandro já fora de combate,

um motorista de carro de passeio

Eu conjuro a razão e não a poupo,

prometi me tornar um olmo, um choupo,

vegetal, mantimento — estremecia —

ou um céu a crescer em forma e brilho.

Deus não vai me entregar, isso é vacilo.

E quem vai me dizer hoje é que dia?

E por três dias de nada vai saber,

no quarto, em pranto, vai reconhecer,

enquanto isso a jovem miss por sua vez

atravessando toda a ilha em um cab,

vê algo no céu, mas o que é, não sabe:

alguém voando vestido de xadrez

(…)

A poesia do russo recebeu o aval de ninguém menos que Joseph Brodsky (Nobel de Literatura): “Os poemas de Denis Novikov atraem antes de mais nada pela completa autonomia de sua dicção (…) A escolha das palavras é sempre uma escolha do destino, e não o contrário, pois determina a consciência – de quem lê, mas ainda mais de quem escreve; a consciência, por sua vez, determina o ser (…)”.

Denis Novikov morreu, vítima de infarto, em 2004, aos 37 anos. Nossas traduções são as primeiras em língua portuguesa.

Astier Basílio, escritor, tradutor e crítico literário, é colaborador do Jornal Opção.