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De Cataguases, o poeta se tem feito notório por suas palavras virtuosísticas, como as de Shakespeare, Guimarães e Joyce

Jornalista e crítico, o cataguasense Ronaldo Werneck morou por mais de 30 anos no Rio de Janeiro, onde colaborou com jornais e revistas | Foto: Divulgação
Jornalista e crítico, o cataguasense Ronaldo Werneck morou por mais de 30 anos no Rio de Janeiro, onde colaborou com jornais e revistas | Foto: Divulgação

“três dias sem comer
sobrevive um ser
saudável: subvive.
sem poesia, não
não vive nem um dia:
nunca sem poesia.”
Ronaldo Werneck

Adelto Gonçalves*
Especial para o Jornal Opção

Tantos anos depois do desaparecimento de Rosário Fusco (1910-1977), romancista, poe­ta, dramaturgo, jornalista e crítico literário reconhecido como o menino-prodígio do Modernismo brasileiro, um verdadeiro precursor do suprarrealismo literário, a pequena cidade da Zona da Mata de Minas Gerais, Cataguases, nascida em 1877 à época da febre pela bus­ca de diamantes — ainda que nunca encontrados —, continua a exibir seus talentos literários. Atualmente, os mais notórios em território nacional são os romancistas e contistas Luiz Ruffato, Ronaldo Cagiano — ambos da safra de 1961 — e Eltânia André.

Sem esquecer, é claro, de Joa­quim Branco (1940), que lançou, no ano passado, “Pequena história da fundação de Cataguases” ou ainda de Guilhermino César (1908-1993), que igualmente exaltou e evocou a mítica Cataguases; esses, ao lado de outros expoentes do chamado Movimento Verde, como Ascânio Lopes (1906-1929) e Francisco Ignácio Peixoto (1909-1986), que, com Guilhermino César e tantos outros, editaram a “Revista Verde” (1927-1929), publicação que teve colaboradores da estirpe de Mário de Andrade (1893-1945), Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Aníbal Machado (1894-1964), Antônio de Alcântara Machado (1901-1935), Sérgio Milliet (1898-1966) e Ribeiro Couto (1898-1963), entre outros.
Da geração de Branco, Ronaldo Werneck, nascido no ano de 1943, é outro literato que continua em plena atividade, como provam seus últimos lançamentos: “O mar de outrora & poemas de agora” (2015) e “Cataminas pomba & outros rios” (2012), livros de poemas entremeados por inúmeras fotografias capturadas pelo próprio autor e por sua esposa, Patrícia Barbosa, e demais de arquivo.

Em 2002, Werneck gravou, em show ao vivo, o disco “Dentro & Fora da Melodia — Que papo é esse, poeta?” com poemas, canções e parlações de inúmeros escritores brasileiros
Em 2002, Werneck gravou, em show ao vivo, o disco “Dentro & Fora da Melodia — Que papo é esse, poeta?” com poemas, canções e parlações de inúmeros escritores brasileiros

Como Shakespeare
Poeta de textos rápidos, instantâneos, fragmentários e, às vezes, simultâneos, Werneck é, no dizer do poeta, ensaísta, dramaturgo e romancista W. J. Solha, autor do prefácio de “O mar de outrora & poemas de agora”, dono de um trabalho virtuosístico em cima da palavra. Como exemplo, Solha cita o poema “Fogalegre”, em que Werneck brinca com o nome de Audrey Hepburn — happy, rap, help, burn —, tal como Shakes­peare (1564-1616), 400 anos antes, pusera a sua assinatura na peça “Antônio e Cleópatra”, ao dizer que alguém, como um animal, shakes his ears.

Mais: compara-o, sem recorrer a hipérboles, a Guimarães Rosa (1908-1967), Millôr Fernandes (1923-2012), James Joyce (1882-1941) e Ezra Pound (1885-1972). De fato, Werneck, depois de deglutir toda a experiência poética do século 20, é hoje um dos poucos poetas brasileiros capazes de recorrer a todas as formas possíveis de fazer versos para expressar o seu testemunho de um mundo desgovernado, afinal de contas “a vida é breve/tome lépido o leme e engrene/torne-a leve/não deixe que ela se apequene”, como diz no poema “Lemeleve”. É o que se pode ver também em “23.10.13”, poema em que diz: “hoje tenho setenta/e de novo e sempre/a vida me inventa/aos setenta e a cada dia — vírus que me adentra — tomado sou pela poesia”.

Como se percebe, o livro constitui o resultado do deslumbramento do poeta pela vida e um balanço de seus 70 anos, a partir da infância em Cataguases, a atração pelo mar tão distante, a vida errante pelo Rio de Janeiro, Bahia e as viagens pelo mundo: Paris, Nova York e Bar­celona, até o retorno a Cata­guases na idade madura.

Cidade Natal
Cataguases é também homenageada na obra “Cataminas pomba & outros rios”, com o poeta recuperando na memória pedaços de sua infância, figuras marcantes de Cataguases, tipos populares, os seus familiares e seus amigos, como observou Manuel das Neves (1914-1999), em prefácio que escreveu, em 1977, para “Pompa Poema”, livro-gênese do anterior-citado. Em resumo, bastam as palavras do seguinte poema:

(…) nada vale com algemas
pois a palavra é poesia
e a poesia morreu
são cibernéticos os contatos
dos homens com os homens
e dos homens com as coisas
mas nos lados de santa rita
lá entre djaniras lá
entre faculdades orfanatos lá
em meio ao paço centenário lá
entre marciers encobertos
lá entre andorinhas suspeitas lá
a sé velha
bate que bate
diz o vate guilhermino
homenino diz-que lá
a poesia chegará
aos verdes fordes gêmeos do ascânio
se transmutam
se debruçam
ainda como gerânios
e levam
upa!
o mesmo sonho na garupa
e trotam belos galgos fidalgos
amarelos burros bucólicos
burricos borrando o município (…)

Ninguém definiu tão bem a poesia de Werneck quanto o professor Fábio Lucas, igualmente de alma mineira, para quem só se pode entrar neste livro “como quem ingressa num sonho, puxado por um rio sem foz”. Para ele, Werneck sempre levou em suas lembranças Cataguases, ainda que tenha percorrido o mundo: “Onde quer que tenha estado poeta, corria no seu íntimo o rio de Minas” — melhor definição, impossível.
CataminasMultifacetado
Nascido em Cataguases, Ronal­do Werneck morou por mais de 30 anos no Rio de Janeiro (RJ), mas voltou a viver em sua cidade natal, no final do século passado. Jornalista e crítico, colaborou com jornais e revistas cariocas, como “Jornal do Brasil”, “Pasquim”, “Diário de Notícias”, “Última Hora”, “Revista Vozes”, “Revista Poesia Sempre” e “Revista História” — ambas as últimas da Biblioteca Nacional. Em 2013, organizou a edição especial sobre Cataguases para o “Suplemento Literário Minas Gerais”. Desde 1968, ele colabora com esse Suplemento, onde publicou poemas, resenhas e algumas críticas de cinema.

O MarPoeta, Werneck tem mais seis livros publicados: “Selva Selvag­gia” (1976), “pomba poema” (1977), “minas em mim e o mar esse trem azul” (1999), “Ronaldo Werneck Revisita Selvaggia” (2005), “Noite Americana/Doris Day by Night” (2006) e “Minerar O Branco” (2008). Em 2009, lançou o livro-ensaio “Kiryrí Ren­dáua Toribóca Opé — Hum­berto Mauro Revisto Por Ro­naldo Werneck” e os livros de crônicas “Há Controvérsias 1” (2009) e “Há Controvérsias 2” (2011). Em 2001, gravou em show ao vivo o disco “Dentro & Fora da Melodia/Que papo é esse, poeta?”.

Ensaísta, tradutor e crítico de literatura, cinema e artes plásticas, Werneck tem textos e artigos publicados em vários veículos da mídia. Desde os anos 1990, assina a coluna “Há Controvérsias”, publicada em vários blogs e no jornal “O Liberal”, de Cabo Verde. Produtor Cultural, ele também foi um dos realizadores dos dois “Festivais Audiovisuais de Cataguases — Música e Poesia” (1969/1970) e coordenador da exposição “Os Mineiros do Pasquim”, em 2008.

Videomaker, ainda editou, em 2009, dois filmes sobre a trajetória do cineasta Humberto Mauro, “sOLdade” e “mauro move O mundo”. Membro do Pen Clube do Brasil, é verbete na obra “Enciclo­pédia da Literatura Brasileira”, da Academia Brasileira de Letras, e no “Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira”. l

*Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de diversas obras.

Leia um trecho de “A Mais Nova Namorada”, crônica de Ronaldo Werneck que está disponível no site do autor

“Meu deus, o que é a morte?”, interrogava-se e nos interrogava Lúcio Cardoso pela boca de seu personagem André na abertura do romance “Crônica da Casa Assassinada”. Quem morria era Nina, suposta mãe e amante insuspeitável de André. O câncer corroía a vida e transmudava em pus e degeneração o que fora flor e viço. Com Nina, caía de câncer a casa e todos os Meneses. Findo o romance, finda a casa e a família, a pergunta de André/Lúcio ficava sem resposta. Meu deus, o que é a morte?, perguntei-me muitos anos após a primeira leitura do romance, ao ver o cineasta Olney São Paulo, meu amigo da Bahia, definhando de câncer num leito da Beneficência Portuguesa no Rio. O corpo franzino sumia entre o lençol e mal chegava aos 40 quilos, exatos três dias antes de sumir de vez.
Meu deus, o que é a morte? É mamãe que chora no Oncológico de Juiz de Fora, mamãe que não quer pronunciar seu nome: a morte é câncer. A morte é meu querido Luiz Linhares, como mamãe perdendo a voz e a vez neste mundo. É Nando Nogueirinha, morando no andar aqui de cima, rouco-rouco que ele só e já passando em definitivo pro outro andar de cima, a garganta totalmente tomada e evitando tossir pra não me incomodar: só soube depois — e que coisa mais patética. A morte cansa, a morte é câncer. Mesmo em si não o sendo, ela é em si seu signo e significação, nosso cotidiano câncer. A morte é tia Lilila, Lila querida, morrendo assim como quem diminui a luz — velas, brancas velas, as mãos entre as minhas, seda e celofane. As mesmas mãos logo em desalento, logo levantadas em grito, enquanto a maca some numa curva do corredor rumo à UTI — as mãos pro alto e pra nunca mais.
Meu deus, o que é a morte? É agora Teresa Cristina Mauro, a quem velo e des­­velo nesta noite: “Dona Teresa, a se­nhora não quer abrir os olhos por quê? — Simplesmente porque meus olhos não queriam se abrir. Nem fuga, nem me­do: abandono”, diria ela em “Retra­tos e Reflexos”, seu primeiro livro. Teresa fa­lava de sua volta à vida na UTI, no pós-operatório de uma cirurgia de vesícula. “Ainda que eu ande pelo vale das som­bras, não temerei mal algum”, escrevia ainda, citando o Salmo 22. E parecem de novo teimar em se abrir seus olhos míopes nesta noite em que é velada na capela do cemitério de Cataguases.
Meu deus, o que é a morte? Será só abandono, torpor, sonolência? “Ouvia, no aparelho, atrás de mim, a minha vida: as batidas, tão certinhas de meu coração”. Sua vida era assim mesmo, pura e plena de delicadeza: com “batidas certinhas”, bate o coração de Teresa. “O mundo não será salvo/pela filosofia/falsa passionária/mas empurrado pelos séculos/nas mesas frias dos laboratórios”, disse meu amigo Vitto Santos num velho poema dos anos 60. Será? Não houve laboratório que salvasse Teresa, muito menos Marina, paixão da adolescência. Morta Marina, morta Teresa, o mesmo mal, eu sei, cansei de câncer, cansei. Meu deus, o que é a morte? “Subir, subir e, esplendidamente, ganhar o azul, pratear-me da lua e chegar lá, de onde vim e para onde devo voltar”. Surgem assim suas palavras, junto a uma lua-mas-que-lua nesta noite em que velo Teresa: “Eu subia o morro. De repente, percebi que, para trás, ficava bem verde, onde eu passara e nada existira antes. Eu me sentia feliz como se tivesse chegado ao meu lugar, encontrado o princípio e o fim, alcançado o eixo, o ponto central do meu viver e isto me trazia vontade de dançar, cantar, de braços abertos e leves”. Uma lua-mas-que-lua era o que era. Ela é que era. Assim: “Lua me lembra Maria-Mãe, segurança, e brilho, com seu luar — o olhar — de bondade que, mansamente, convida com carinho: ‘Dá-me tua mão, vem dormir e sonhar no meu colo, vem!’”. Vai, tua vida, teu caminho é de paz e amor/te.
Meu deus, o que é a morte? Quem sabe, a mais nova namorada? Assim a chamava o poeta Vinicius, o mesmo desse “vai tua vida” aí de cima, a quem auxiliei com aquele “amor/te”, e que também foi com ela se encontrar. Pois é, paixão à primeira vista: “Resta esse diálogo cotidiano com a morte/esse fascínio pelo momento a vir, quando, emocionada,/ela virá me abrir a porta como uma velha amante/sem saber que é a minha mais nova namorada”.