Quando até o diabo quer dançar: filme ‘Pecadores’ hipnotiza do começo ao fim e te deixa querendo mais

17 agosto 2025 às 19h55

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É numa noite de céu claro no Mississipi da década de 1930 que os irmãos Fumaça e Fuligem inauguram o que prometem ser o oásis negro do blues e da boa cerveja: um espaço seguro para uma comunidade perseguida pelas leis de Jim Crow. A festa corre solta. Risos, música, dança e copos que se erguem sem pudor, até que três misteriosos intrusos brancos batem à porta, pedindo para entrar. Está formada a premissa de Pecadores, que mescla medo, fascínio, misticismo e crítica social em um filme que faz ode à cultura negra e já pode ser considerado um dos melhores do ano.
Ryan Coogler, diretor e roteirista (o mesmo que nos presenteou com o ótimo ‘Pantera Negra’), mergulha no afro-surrealismo (pense em ‘Corra!’, de Jordan Peele) e constrói uma fábula de época digna de aplausos em pé. A sensação é de estarmos ouvindo uma história de terror ao redor de uma fogueira, arrepiados e ao mesmo tempo deliciados com cada detalhe.
Michael B. Jordan brilha ao interpretar os gêmeos Fuligem e Fumaça. A aura em torno dos irmãos é magnética. Temidos por uns, amados por outros, conhecidos por todos como uma espécie de “padrinhos criminosos” da comunidade. Após anos rodando o mundo e consolidando a fama de “bad boys”, os gêmeos retornam ao Mississipi para abrir um clube de blues destinado exclusivamente ao público negro. Leia-se: o filme se passa em um estado norte-americano sulista em 1932, época em que a segregação ainda imperava e pessoas negras eram tratadas como seres humanos “inferiores” pelos brancos.
A sombra da Ku Klux Klan paira sobre o filme, mas o que poderia se limitar a mais um drama histórico com função didática explode em espetáculo: música, dança, terror sobrenatural e violência brutal se entrelaçam num ritmo avassalador.
Os três visitantes (indesejados, diga-se de passagem) da noite de inauguração carregam nos olhos um brilho vermelho e a ânsia de entrar. Só conseguem se convidados, afinal, são vampiros. Mas ‘Pecadores’ não se rende ao clichê vampiresco. Claro, eles querem sangue, mas aqui há algo maior: metáfora, personalidade, alma. Assim como visto no percurso da história, em que brancos sugaram do povo negro sua força de trabalho, talento e criatividade, os vampiros são atraídos pelo dom único do jovem Sammie,interpretado por Miles Caton, o “pastorzinho” cuja música rompe o véu entre vida e morte, fundindo passado, presente e futuro.

A cena em que Sammie canta pela primeira vez no clube é hipnótica. Um plano-sequência de tirar o fôlego, em que sua voz invoca tanto espíritos ancestrais quanto roqueiros de décadas futuras. Tempo e espaço se dissolvem diante de nós. É impossível não ficar boquiaberto.
A música, aliás, é um espetáculo à parte. Um dos momentos mais arrepiantes é quando o vampiro líder, irlandês, entoa uma canção folclórica em meio a palmas e coro, em uma coreografia que arrepia até os ossos.
As inspirações do filme são explícitas. A lenda de Robert Johnson, guitarrista lendário do Mississipi, atravessa a narrativa. Diz-se que Johnson tocava com intensidade quase sobrenatural porque teria feito um pacto com o Diabo. No contexto da segregação, esse mito simbolizava como o talento negro era visto com desconfiança, ou até como “ameaça”, por uma sociedade branca incapaz de lidar com tamanha genialidade.
A religião aqui, claro, é outro ponto de destaque. O filme não ignora nenhuma vertente de fé que, historicamente, deu acalanto aos negros em uma época aterradora em que, a única coisa que lhes restava, era acreditar em algo maior. Enquanto o pastorzinho Sammie busca consolo e proteção no gospel, Annie, interpretada pela incrível Wunmie Mosaku, recorre aos seus patuás, amuletos e conhecimentos místicos contra os vampiros que, assim como outros brancos dessa época, tinham como único interesse submeter e tirar a vida dos negros.
Pecadores é um filme para assistir e reassistir. Suas quase duas horas e meia passam como minutos, tamanha a fluidez e intensidade que Coogler dá à narrativa. Num momento, você se segura para não bater palmas ao som da canção de Pearline, interpretada pela ótima Jayme Lawson. No outro, quase se levanta do sofá para acompanhar o sapateado irlandês do vampiro Remmick, vivido por Jack O’Connell.
No fim, resta a sensação de ter presenciado uma das mais poderosas fábulas negras já contadas no cinema afro-surrealista. Um filme que transforma dor em música, sangue em metáfora e terror em beleza. Bravo, Coogler.
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