Jean-Luc Godard – entre anos, corpos e rostos (Parte 1)

03 março 2023 às 15h24

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Jean-Luc Godard teve uma das carreiras mais prolíficas de todo o cinema, desde seu primeiro curta metragem, Une Femme Coquette, em 1955, até seu último filme, Imagem e Palavra, em 2018, foram mais de 100 produções que acompanharam o caminhar histórico, não somente da sociedade, mas do próprio cinema também. Sendo assim, a intenção deste texto é homenagear e analisar o que mudou e o que permaneceu entre as décadas da filmografia do maior diretor da história do cinema, em especial a relação entre os rostos, corpos e olhares.
Praticamente impossível começar a falar de Godard sem ser por Acossado (À bout de souffle, 1960), porque já está ali uma nova forma de ver o mundo, de tratar o cinema, de ver os corpos. Acossado é um filme calendário, há um cinema antes e depois dele, não apenas por ser tecnicamente uma transição do clássico para o moderno (principalmente pela montagem), mas porque aqueles jump cuts buscam uma captação bruta das cenas, uma amostragem de que não é necessário sempre ter tudo planejado ao filmar, que é possível utilizar o imprevisto, tentando obter os momentos mais genuínos e não necessariamente bem atuados de seus atores, porque esses são os mais reveladores. Mesmo sendo tudo mentira (encenação sempre foi encenação), é uma mise en scène mais livre, talvez mais verdadeira:
“todo o esforço de Godard consiste em multiplicar os obstáculos para conseguir, em todos os casos, um gesto imprevisto, uma mímica incontrolada, uma entonação involuntária; tudo isso que resulta em minutos extraordinários de verdade.”
(LABARTHE, 2004, p.110)
Outro ponto importante do filme está em Jean Seberg, a atriz principal. Godard sempre teve musas e Seberg é a primeira delas, mas é uma valorização, um tratamendo de sua imagem, diferente do que tinha Rossellini com Ingrid Bergman nos anos 40 e 50 do neorrealismo italiano, por exemplo. É uma mulher que se relaciona com vários homens, que se veste como quer, e que dialoga organicamente entre questões supostamente mais relevantes, como as consequências de uma gravidez não programada, e outras pertinentes à certa imaturidade, inclusive emocional, com o personagem de Jean-Paul Belmondo (aqui um Humphrey Bogart mais moderno). Assim, Acossado é um intercâmbio entre Estados Unidos e França, clássico e moderno, intelectualidade e imaturidade, filmar e permitir que se mostre (como Seberg que diversas vezes vai ao espelho se contemplar e ser contemplada).
No ano seguinte Godard já tinha outra musa, Uma Mulher é Uma Mulher (Une Femme est une femme, 1961) apresenta Anna Karina, a mais importante e presente de toda sua filmografia. No filme ela é uma prostituta que seduz um homem para enciumar seu namorado, e nas palavras de Glauber Rocha:
“O público sai do cinema revoltado do cinema: revoltado com a beleza, a liberdade, a conduta moderna que o burguês considera amoral ou imoral – tantas são as especulações em torno da ética. Digo que, no mundo de Godard, que é o mundo de Paris e o mundo de Copacabana, duas ocisas importam além da política e do cinema: a mulher, o amor e os Cahiers du Cinema! […] A montagem de Godard libera o mundo, liberta o filme, liberta o amor, liberta a mulher. Faz do filme, um filme – aprendam os que dizem saber tudo de filmes. Faz da mulher, uma mulher – aprendam os que encurralam as mulheres. Godard é a verdade, o cinema é o cinema, a luz é a cor, a mulher é!”
(ROCHA, Diário de Notícias, Salvador, 2º Caderno, p.7)
É mais uma vez um filme livre que tem uma proximidade especial com o rosto feminino, assim como em Viver a Vida (Vivre Sa Vie, 1962), que tem novamente Anna Karina em planos frontalizados, uma performance fresca como se acabasse de ler suas falas antes de ser filmada, também como prostituta – Godard usava a prostituição como metáfora para a situação econômica e sua posição diante do capitalismo. Um rosto que exala emoções (vide o antológico plano em que Nana chora ao assistir A Paixão de Joana d’Arc [Le passion de Jeanne d’Árc, 1928]), porque vive seu martírio por ter fé na liberdade.
Para sair um pouco dos temas rostos/corpos, mas ainda continuar no olhar, Godard faz, em 1963, Tempo de Guerra (Les Carabiniers):
“O cinema é edipiano não apenas em suas histórias – geralmente histórias sobre um protagonista masculino superando seus problemas com a lei paterna – mas também em sua incorporação do processo de denegação e fetichismo, graças ao qual o espectador é consciente da natureza ilusória da imagem cinematográfica e, ainda assim, acredita em tal imagem. Essa crença, além disso, tem como premissa o posicionamento do espetáculo a uma distância segura, e nesse sentido depende do voyeurismo (com colorações sádicas). O cinema foi claramente alicerçado sobre o prazer de olhar, tendo sido concebido desde suas origens como um lugar de onde se poderia “espionar” os demais. O que Freud denominou escopofilia, o impulso para transformar o outro no objeto de um olhar curioso, é um dos elementos primordiais da sedução cinematográfica.”
(STAM, 2000, p.191)
Um filme sobre o que é visto, deve ser visto, quer ser visto, não precisa ser visto, e quem vê. Primariamente um filme antibelicista para quem sabe ver além do voyeurismo. Depois, a primeira inserção mais explícita do diretor em temas políticos (a guerra) – todos seus filmes, mesmo antes dos anos 70, que serão futuramente abordados aqui, também são políticos, até porque depois de Encouraçado Potemkin [Bronenosets Potemkin, 1925], todo o cinema o é). Mas também um filme sobre o espectador, marcando a metalinguagem que viria a ser tão comum na sua carreira, e que aparece fortemente em O Desprezo (Le Mépris, 1963).
A musa? Brigitte Bardot. A base? Odisseia de Homero. O desprezo? São várias suas formas encarnadas nos personagens. Um deles é o roteirista francês que despreza o cinema moderno e tem uma ode ao clássico, um possível Ulisses dentro da Odisseia godardiana porque ama Camille, uma mulher que não o ama, que o despreza, desprezo este implicado pelo produtor americano, um falso moderno. Moderno porque não gosta do classicismo, não acha que o filme do diretor alemão (no caso Fritz Lang) dará certo do jeito que está, porque para tudo acha solução no dinheiro. Mas é um moderno falso, como pode alguém ser moderno se é tão desrespeitoso com as mulheres, se não gosta de um filme porque o que vê não está no roteiro, se subestima o público ao achar que, por não seguir, como no clássico, de mão dadas a narrativa linear, não entenderá o filme?
O Desprezo é, então, uma ode ao clássico e a impossibilidade de fazê-lo, é também o falso moderno e o desprezo que este incita. Godard, portanto, é o contemporâneo, sabe muito bem da dialética entre clássico e moderno, gosta dos diretores clássicos, que tanto exaltava na Cahiers du Cinéma, mas o próprio é o cinema moderno (os cortes abruptos em Acossado e tudo que este provocou, por exemplo). O verdadeiro Ulisses de O Desprezo, então, é Godard, que se vê como um homem entre os deuses, que vê o cinema que ajudou a teorizar, como crítico, acabando, e um novo cinema que ajudou a nascer, como diretor, surgindo. Começa o filme dizendo “o cinema, dizia André Bazin, substitui diante de nosso olhar, um mundo que se conforma aos nossos desejos. Le Mépris é a história desse mundo.” O problema é entender quais são esses desejos que formarão o mundo, ou o cinema.
É um filme que se filma, o diretor alemão na finalidade dos seus atos, o roteirista francês indeciso que se prende ao clássico, o produtor estadunidense que se acha moderno mas é o mais ultrapassado entre todos ali. Um filme sobre a impossibilidade da existência, não só do filme (tanto o de Lang quanto o de Godard), mas do amor também, já que o produtor “ditador”, como é chamado por Lang, não só dificulta o filme, mas a relação entre Paul e Camille (roteirista e esposa) também, e acaba por matando ela no final. Um dos filmes mais autoconscientes por saber qual seu tempo e suas limitações, que só poderia ter sido feito por um diretor que também o é.
Sobre amor, Alphaville (Alphaville, une étrange aventure de Lemmy Caution, 1965) é um filme de reinvenção, uma ficção científica aos modos de Godard, que contém um dos mais belos comentários sobre o tema em toda sua produção:
“Mais uma vez, a última no filme, Natacha é obrigada a se lembrar de algumas palavras. Durante toda a fita ela caminhou para esse conhecimento, mas ainda não o adquiriu de todo. Em vários momentos, ela sente algo, mas não sabe que nome dar a esse sentimento, qual palavra usar, e sente medo. Ela não consegue ainda ligar as palavras às coisas com segurança. Num esforço enorme, hesitantemente, ela consegue aos poucos articular essas palavras. Ela é desencantada como num conto de fadas: a última fala dela, e do filme, é ‘eu te amo’ esta frase, ela diz gaguejando, levando algum tempo para articulá-la, como se fosse uma criança aprendendo a falar. Quando ela termina de dizer, seu rosto é o de uma pessoa que descobriu o mundo, ao descobrir os sentimentos que existem nele e as palavras que os descrevem. Com a fala reconquistada e com as palavras finalmente articuladas e liberadas, Alphaville chega ao fim, numa afirmação absolutamente sem ambiguidade, algo totalmente incomum na obra de Jean-Luc Godard.”
(COUTINHO, 2010, p.150)
“Seu rosto é o de uma pessoa que descobriu o mundo, ao descobrir os sentimentos que existem nele e as palavras que os descrevem.” Mais uma vez o rosto de Anna Karina revelando sentimentos antes presos numa sociedade (Alphaville aqui é uma cidade futurística comandada por um cientista que tornou ilegal o amor e a autoexpressão) não tão ficcional assim. É como se Godard suplicasse que as pessoas voltassem a descobrir o poder de falar um “eu te amo”.
O ano de 65 é bastante romântico (tanto no sentido temático quanto de literatura) para Godard, O Demônio da Onze Horas (Pierrot le Fou) é grande exemplo disso. Não um romance convencional de duas pessoas feitas para se amar, dois corpos feitos um para o outro que se atraem, mas um amor fragmentado, por vezes incompleto, e que mesmo assim atinge o invisível. Porque conserva ali um mistério, do que pode dar certo ou não, se é que isso é necessário, na relação, ao filmar menos o contato entre dois corpos do que o lugar entre eles. O próprio afirmou que “o cinema é o que está entre as coisas, não são as coisas, é o que está entre uma e outra pessoa, entre você e eu, e depois, na tela, está entre as coisas.”
(GODARD, 1980, p.135)
O lugar entre é de difícil definição, justamente por ser intangível, por estar entre pessoas, objetos, planos, imagens, entre a câmera e o que ela filma, entre o espectador e o que ele vê. Por vezes na obra de Godard esse lugar pode receber o nome de dialética (da diferença hegeliana), como demonstra o próprio título Masculino Feminino (Masculin Féminin, 1966), ou a frase que finaliza Made in U.S.A (1966): A esquerda e a direita são iguais. Jamais mudarão. A direita, porque a sua crueldade a torna idiota, a esquerda por ser sentimental. Ou desenrolar caótico de Week-end à Francesa (Weeek End, 1967), e obviamente tudo que envolve A Chinesa (La Chinoise, 1967), com seus estudantes maoístas que tentam desenvolver tanto uma revolução quanto uma teoria, esta que já é a própria confecção do filme. A Chinesa é um dos primeiros filmes de “cinema-conversa”, como coloca Paulo Emílio Sales Gomes,
“A Chinesa espera de nós que encontremos prazer em ser espectadores de conversa, sem obrigação ou desejo de interferir. Nosso gosto já se encontra, aliás, apurado pelas múltiplas experiências do cotidiano: as linhas telefônicas cruzadas, as conversas ouvidas nas filas, nos ônibus, nos cafés e balcões.”
(GOMES, 2021, p.119)
“Cinema-conversa” porque está cheio de entrevistas dos personagens com eles mesmos, mas esse estilo vai além de A Chinesa, que acaba sendo uma porta de entrada para a grande fase política do cinema de Godard. A começar por Um Filme como os Outros (Un Film Comme les autres, 1968), em que Godard conversa com o espectador, usando Marx e Lenin no texto e Godard nas imagens e narração, sobre o maio de 68. Um filme protesto, filme contexto, filme movimento, filme revolução:
Revoluções anteriores precisavam de memórias históricas para esconder os seus próprios conteúdos de si mesmas. A revolução social deve deixar os mortos enterrarem os mortos e liquidar toda a superstição sobre eles. Para concretizar o seu próprio projeto, deve tirar sua poesia do futuro. Em outros tempos, a forma esmagava o conteúdo, agora, o conteúdo supera a forma.
(GODARD, 1968, Um Filme como os Outros)
Filmes documentos que conservam boa parte dos comentários do diretor acerca de cultura, cinema, autores, atores, e o papel disso tudo na política, sempre inseparável essa união, mas agora inevitável. Apenas em 1970 foram três longas: Pravda, British Sounds e Vento do Leste (Le Vent dést), que, se O Desprezo é o filme que se filma, este é o filme que se filma, se vê e se critica. Parece um filme que ainda é feito, visto que a revolução, não só a comunista, mas também a da linguagem cinematográfica, não aconteceram (aliás, Imagem e Palavra de 2018 mostra que esse cinema continua no +0 para a revolução), é uma interminável busca pelo leste, marca do pessimismo sempre presente (apesar dos momentos em que ele fez as pazes com o cinema, como em Nossa Música [Notre Musique, 2004]) em Godard. O que parece acontecer na metade dos anos 70 é que acabaram as respostas, Godard volta a se perguntar, a ter dúvidas, e inclusive a assumir isso em Comment ça va (1976), que vem depois de um Numéro Deux de 75 que pensa em fragmentações, das fábricas, das famílias, do trabalho, do cinema, na impotência do cinema em resolver tudo, em continuar importante, e não é diferente em Ici et ailleurs (1976).
Em breve resumo, são filmes que analisam seus respectivos contextos e utilizam de suas formas para propor conversas, soluções, ou até a compreensão de que não há o que fazer. Aqui provavelmente onde se encontra a maior ligação entre Godard e o escritor Jorge Luis Borges, porque ambos misturavam o escrever com o que é escrever, a realidade e a ficção, o documentário e o romance, por vezes imperceptíveis as fusões, mas por isso, sempre geniais. Uma fase necessária de transição entre os anos 60 e 80.