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Mariza Santana

Os grandes impérios nascem, crescem e morrem, assim como os homens que os construíram e lhe garantiram períodos de glória e poder. O final pode levar séculos ou milênios. Basta vermos os exemplos do Egito Antigo, da poderosa Roma, da Espanha invencível ou do império britânico onde o sol nunca se punha. No momento, testemunhamos o início do declínio do império estadunidense, cujo presidente Donald Trump só tem adotado medidas cujo efeito parecem apontar para a aceleração do processo de queda, devido à perda de confiança dos países antes parceiros.

O célebre escritor indiano-britânico Salman Rushdie, ao contar a história de um grande império do passado utilizando a linguagem de realismo fantástico, comprova o enunciado de que não são eternos. No romance “Cidade da Vitória” (Companhia das Letras, 384 páginas, tradução de Paulo Henriques Britto), o autor traça uma alegoria sobre a criação, auge e queda de um grande império, o Vijaynagara, cuja cidade com o mesmo nome, ou chamada na obra de Bisnaga, foi a capital de um poderoso reino no Sul da Índia, que floresceu entre os séculos XIV e XVII.

No romance, Rushie informa que transformou em prosa a epopeia poética escrita pela “poeta, milagreira e profetisa cega Pampa Kampana”. Seu escrito foi encontrado dentro de um vaso de cerâmica lacrado nas ruínas da cidade que teria sido a capital de um poderoso império indiano.

A obra-prima, intitulada “Jarapayajara”, ou “Vitória e Derrota”, estava escrito em sânscrito (língua ancestral do Nepal e da Índia). Narra a criação, auge e derrocada do império indiano pela poetisa, que teria sido sua criadora, duas vezes rainha e rainha-regente, ao longo dos seus 247 anos de vida.

Salman Rushdie capa de Cidade da Vitória Foto Jornal Opção

Menina, aos 9 anos de idade, Pampa Kampana testemunha sua mãe e outras mulheres se imolarem na fogueira, após perderem os maridos para a guerra.

Órfã, Pampa Kampana é adotada pela deusa Parvati, da qual recebe o dom de permanecer jovem e viver mais de dois séculos, além de poderes mágicos para criar uma cidade e capacidade de prever o futuro.

No início, ela vai morar em uma caverna na companhia de um asceta. E assim, como na lenda da criação de Roma, fundada pelos irmãos Rômulo e Remo, Pampa Kampana dá um saco cheio de sementes aos irmãos vaqueiros Sangama, Hukka e Bukka.

Português foi o grande amor de profetisa

Após os dois semeá-las em uma planície próxima, surge uma cidade inteira, com moradores, casas, comércios, templos e o palácio real. O nome da cidade, Bisnaga, foi dado por um aventureiro português que apareceu naquelas plagas, chamado Domingo Nunes, que se tornaria o primeiro grande amor da profetisa.

Salman Rushdie utiliza a linguagem do realismo fantástico para contar a história do império de Bisnaga (e o surgimento da cidade me remeteu à narrativa da fundação de Macondo, da obra-prima sul-americana “Cem Anos de Solidão” do colombiano Gabriel García Márquez).

Pampa Kampana participa ativamente dos primeiros anos da cidade indiana, como rainha dos dois primeiros monarcas, justamente os dois irmãos vaqueiros que se revestem de majestade. Mas o dom lhe concedido pela divindade também é uma maldição, pois todos à sua volta envelhecem e morrem, enquanto para ela o tempo transcorre bem mais devagar.

A profetisa sonha com um império onde mulheres e homens tenham direitos iguais, as mais diversas formas de arte sejam valorizadas e cada habitante possa cultuar os deuses de sua religião livremente. Entretanto, independente do rei sentado no trono, são as guerras que vão moldando a expansão e a grandeza do império de Bisnaga. Seus governantes são tomados pela febre do poder, que é seguida da arrogância e do despotismo insano. Em uma grande crise de governo, Pampa Kampana, juntamente com as filhas, é obrigada a fugir e a se exilar em uma floresta mágica por muitos anos.

Décadas depois, novamente de volta à cidade que criou, ela se já tornou uma lenda, mas também uma personagem esquecida nas brumas do tempo.

Novamente conquista um lugar de destaque no coração do poder do império, até ter que testemunhar o início de sua derrocada, as insanidades dos últimos monarcas, descendentes de outra linhagem cujos antepassados foram generais que tomaram o poder à força.

Com o rei em campanha de guerra por sete anos, ela tem a oportunidade de implementar sua política na condição de rainha-regente, garantindo o derradeiro período áureo do império.

“A Cidade da Vitória” é um romance que reúne magia e críticas sociais nas entrelinhas. Mostra que todos os grandes impérios são iguais, estejam localizados na Ásia, Europa ou América.

A grandeza e a imposição a povos subjugados levam à glória, mas também contêm a semente da decadência provocada, muitas vezes, por governantes tirânicos e incompetentes.

A história da humanidade é um ciclo interminável (ou terá fim, com a possível falência dos recursos naturais do planeta?) de nascimentos e quedas de grandes reinos.

Como diz a profetisa Pampa Kampana, no final do romance: “Vivi para ver um império se elevar e cair. Como são lembrados agora, esses reis, essas rainhas? Agora são lembrados apenas nas palavras. (…) As palavras são as únicas vitoriosas”.

Salman Rushdie nasceu em Mumbai (anteriormente chamada de Bombaim), na Índia, em 1947. De família muçulmana liberal e abastada, foi estudar na Inglaterra, onde se formou em História. No país europeu ele se tornou cidadão britânico. O escritor ficou famoso mundialmente ao publicar, em 1988, o romance “Os Versos Satânicos”, criticado pela comunidade muçulmana que o considerou um sacrilégio.

Com o livro “Os Versos Satânicos”, Rushdie recebeu o Whitbread Book Awards, prêmio literário britânico, e em seguida uma sentença de morte promulgada pelo aiatolá Ruhollah Khomeini, então líder supremo do Irã, que o acusou de blasfemo e sua obra “um insulto ao Islã e ao profeta Maomé”. E assim o fundamentalismo religioso tentou esmagar a liberdade de expressão.

O decreto do religioso iraniano, conhecido como fatwa, culminou em um atentado sofrido pelo romancista em 2022 em Nova Iorque, que o cegou parcialmente. O romance “Cidade da Vitória” foi escrito antes do atentado sofrido por Rushdie e o primeiro publicado após sua recuperação.

Mariza Santana, jornalista e crítica literária, é colaboradora do Jornal Opção.

(Email: [email protected])