Salatiel Soares Correia

Especial para o Jornal Opção

Primeira parte da resenha “Celso Furtado: — Trajetória, Pensamento e Método” (Autêntica, 337 páginas), de Alexandre de Freitas Barbosa e Alexandre Macchione Saes.

O Brasil já teve alguns de seus dilemas históricos traduzidos por mentes notáveis. Grandes intérpretes como Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes, Raymundo Faoro, Darcy Ribeiro — e, entre eles, Celso Furtado, sempre num lugar central — ajudaram o país a se enxergar com lentes próprias. Cada qual revelou um Brasil profundo, contraditório, por vezes oculto sob as superfícies do progresso aparente.

Celso Furtado não foi apenas um economista de raro talento: foi um dos maiores pensadores brasileiros do século XX. Um homem que aliou erudição, compromisso público e capacidade de síntese incomum, tornando-se o formulador de uma das visões mais originais sobre o subdesenvolvimento. Sua presença é incontornável em qualquer esforço sério de interpretação do país.

O livro “Celso Furtado — Trajetória, Pensamento e Método” resgata a figura monumental do economista, pensador e, como ministro-formulador, homem de Estado.

Em tempos de diagnósticos rasos e planos econômicos improvisados, revisitar a trajetória de Celso Furtado é um antídoto contra o esquecimento estratégico — aquele que marginaliza quem ousou pensar o Brasil fora dos manuais importados.

A obra percorre desde sua formação intelectual até os momentos em que esteve no centro das decisões — como na criação da Sudene, sua atuação no governo João Goulart, e o exílio forçado após o golpe de 1964. Mas não se limita à biografia: mergulha nas ideias, no método e na coerência com que Furtado enfrentou a maior das perguntas nacionais — por que crescemos, mas não nos desenvolvemos?

Ao contrário de muitos economistas de sua época, Furtado recusou explicações lineares. Para ele, o subdesenvolvimento não era um atraso provisório, mas uma forma específica de inserção periférica no sistema global — sustentada por estruturas internas de dependência e desigualdade. Sua análise não vinha de abstrações: era feita com olhos atentos para a história, a geografia e as contradições regionais do país.

Talvez por isso sua obra tenha resistido ao tempo. Em “Formação Econômica do Brasil”, sua análise histórica ainda hoje é leitura obrigatória para quem deseja entender o pacto colonial, a concentração de renda e a persistência da desigualdade como resultado de um modelo econômico deformado desde o nascedouro.

O reconhecimento internacional veio. Foi respeitado em centros como a Cepal, a Unesco, e por pouco não levou o Prêmio Nobel de Economia — que acabou nas mãos de um colega de pós-doutorado na Universidade de Cambridge, o indiano Amartya Sen, com quem dividia o compromisso ético de pensar o desenvolvimento para além dos gráficos e índices frios.

Mais do que economista, Celso Furtado foi um humanista. Pensou o Brasil com o rigor de um técnico e a paixão de quem acreditava que este país podia — e devia — encontrar seu próprio caminho. O livro que agora se publica é mais do que um tributo: é um chamado à memória crítica, num tempo em que a ideia de desenvolvimento parece ter sido substituída pelo imediatismo das planilhas.

Celso Furtado segue atual. Vivo em suas ideias e interpretações. E sua ausência nos debates de hoje talvez diga mais sobre nós do que sobre ele.

Primeiro doutor em economia do Brasil e a Cepal

Antes de se tornar o autor de “Formação Econômica do Brasil”, o livro mais importante já escrito sobre as raízes econômicas do país, Celso Furtado percorreu uma trajetória que unia província e cosmopolitismo, sertão e Sorbonne. O livro Celso Furtado: trajetória, pensamento e método, organizado por Alexandre Freitas Barbosa e Alexandre M. Saes, ilumina esse percurso com precisão.

Celso Furtado formou-se em Direito na Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro (atual UFRJ), em meio às incertezas do período entre guerras. Jovem do sertão paraibano, Furtado foi convocado como oficial da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Foi nesse contexto que ele conheceu Paris — ainda devastada, mas pulsante em ideias — e viveu o que ele mesmo chamaria mais tarde de um “despertar intelectual”. A Cidade Luz o impressionou profundamente: seu ambiente cultural, filosófico e político abriu-lhe horizontes e plantou a semente de um pensamento que buscaria sempre dialogar com o mundo, mas a partir do Brasil.

Juscelino Kubitschek, João Goulart e Celso Furtado: dando rumos a dois governos | Foto: Reprodução

Encerrado o conflito, Furtado retornou a Paris para dar forma a esse impulso. Ingressou na tradicional Universidade de Sorbonne, onde se tornou o primeiro brasileiro a obter o título de doutor em economia. Sua tese sobre o subdesenvolvimento, inovadora e profundamente crítica, antecipava temas que mais tarde ganhariam consistência em sua obra-prima. Já ali estava o embrião de Formação Econômica do Brasil, que viria a público em 1959 como a mais original interpretação da história econômica nacional.

De volta à América Latina, Furtado ingressa na Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), braço regional da ONU, onde se juntou a nomes como Raúl Prebisch. Na Cepal, o economista paraibano amadurece o pensamento que o tornaria uma referência internacional: a ideia de que o subdesenvolvimento não era uma etapa anterior ao desenvolvimento, mas uma condição estrutural e permanente gerada pelo sistema centro-periferia.

Nos anos 1950, enquanto o mundo ainda acreditava em receitas universais de crescimento, Furtado defendia que a América Latina precisava de soluções próprias — e que a industrialização era o caminho para superar a dependência crônica da exportação de matérias-primas. Ele propôs, ao lado de Prebisch, a necessidade de planejamento estatal e integração regional, fundamentos que influenciaram profundamente as políticas públicas da época.

Juscelino Kubitschek e Celso Furtado: dois indivíduos com vocação de estadistas | Foto: Reprodução

Na Cepal, Furtado ampliou sua visão histórica, aliando estatísticas e teoria econômica a uma leitura crítica do papel do Brasil no cenário mundial. Foi também lá que aprimorou o método estruturalista — que não se limitava a calcular curvas, mas buscava entender os entraves históricos ao desenvolvimento autônomo.

Seu trabalho na Comissão não foi apenas técnico: foi político, estratégico e visionário. Em suma, foi na Cepal que o primeiro doutor em economia do Brasil se transformou no mais original pensador econômico que o país já produziu.

Furtado nos governos JK e João Goulart

A trajetória de Celso Furtado nos governos de Juscelino Kubitschek e João Goulart revela o cruzamento entre técnica e política, idealismo e pragmatismo. Nos bastidores do poder, o economista paraibano não operava apenas com números, mas com visões de país. A partir do final dos anos 1950, Furtado tornou-se um dos principais formuladores do projeto nacional-desenvolvimentista — e, mais tarde, um dos alvos preferenciais dos que temiam o avanço das reformas de base.

Durante o governo Juscelino Kubitschek, Furtado viveu seu momento mais institucionalizado e influente. Foi nesse contexto que concebeu e dirigiu a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), criada em 1959. Mais que uma agência regional, a Sudene representava uma tentativa concreta de planejamento público voltado à superação das desigualdades estruturais do país. Inspirado por sua experiência na Cepal, Furtado acreditava que o Brasil só seria plenamente moderno se enfrentasse sua questão regional — sobretudo no semiárido nordestino.

João Goulart e Celso Furtado | Foto: Reprodução

Com a Sudene, propôs um modelo ousado: utilizar incentivos fiscais e planos de longo prazo para atrair investimentos industriais ao Nordeste. Sua meta era desconcentrar o desenvolvimento e romper com a lógica centro-periferia dentro do próprio território nacional. Apesar das resistências das elites locais e de setores do empresariado do Sudeste, a iniciativa marcou uma inflexão decisiva no debate econômico brasileiro.

Já no governo João Goulart, Furtado se desloca da engenharia do desenvolvimento para o centro das disputas ideológicas do país. Em 1962, foi nomeado Ministro do Planejamento — posto estratégico num momento em que o governo buscava conciliar crescimento econômico com reformas estruturais, como a agrária, tributária e bancária. Furtado idealizava um modelo de transição para o socialismo democrático por meio de mecanismos institucionais e planejamento estatal.

Alexandre Macchione Saes e Alexandre de Freitas Barbosa: pesquisadores da obra e da vida do economista ex-ministro paraibano Celso Furtado | Fotos: Reproduções

Mas o tempo histórico era outro: polarização crescente, pressões da Guerra Fria e radicalização dos atores políticos. Como ministro, enfrentou ataques da grande imprensa, desconfiança das elites e resistência das Forças Armadas. Tornou-se um dos principais símbolos do “perigo comunista” fabricado pela retórica golpista. Com o golpe civil-militar de 1964, teve seus direitos políticos cassados e foi forçado ao exílio.

A atuação de Celso Furtado nos governos JK e Jango evidencia dois momentos cruciais de sua biografia: o planejador técnico com visão transformadora e o intelectual público perseguido por sua coerência. Sua obra e seu exemplo seguem como referência para quem acredita que pensar o Brasil exige mais que fórmulas prontas — exige coragem histórica.

Salatiel Soares Correia, escritor e ensaísta, é colaborador do Jornal Opção.