Fernando Cupertino

Celestina era uma moça viçosa, de um belo sorriso e porte elegante, que devia ter vinte e poucos anos. Os avós, Tião e Nenzica, tinham vindo cativos da costa oeste do continente africano lá pelos idos de 1870, ainda muito jovens, chegando aos cais do Valongo, no Rio de Janeiro em navios diferentes. Eram os famosos tumbeiros, assim chamados em razão da elevada taxa de mortalidade dos prisioneiros em seus porões. Ali foram comprados, em lotes separados, por um procurador de um rico fazendeiro das Minas Gerais, na região conhecida como o Sertão da Farinha Podre, que hoje se tem por Triângulo Mineiro. Terminaram por encetar um namoro e daí a pouco já tinham se ajuntado.

Com a abolição, em 1888, ficaram ao léu, de um dia para o outro. Tentaram arranjar-se por ali mesmo por mais de um ano, mas as coisas não eram fáceis. Havia muita gente, como eles, à procura de um meio de vida, sem sucesso. As mulheres mais jovens acabavam na prostituição e os homens, em pequenos serviços eventuais ou em atividades ilícitas, sobretudo o furto e o assalto a viajantes desprevenidos. A pé, decidiram então empreender viagem até a capital de Goiás, dispostos a ir para bem longe do lugar onde haviam passado por tantos sofrimentos e privações. Como ainda não tinham filhos, foram caminhando pouco a pouco, comendo frutos do campo e animais que Tião conseguia abater com o estilingue. Por vezes, um pouco de peixe, quando tinham sorte de apanhar algum, ou farinha e rapadura oriundas da caridade de algum morador pelo caminho.

Tião era muito bom com o manuseio do couro. Sabia trabalhar bem a matéria-prima e dela fazia cabrestos, selas, canastras e tudo o que sua aguda inteligência permitia. Assim, esperava arrumar logo um jeito de ganhar dinheiro — pouco, mas que desse para ir vivendo. Tiveram a sorte de bater à porta das irmãs dominicanas francesas, que no fim de 1889 haviam chegado a Goiás por força do pedido do bispo Dom Cláudio José Ponce de Leon. Ali encontraram guarida provisória. Nenzica era ótima cozinheira e logo passou a ajudar as religiosas no preparo dos alimentos e, também, nos serviços na chácara que elas possuíam perto da cidade, sempre com o auxílio do Tião. Trabalhavam o dia todo e, à noite, dormiam num pequeno cômodo nos fundos da propriedade.

Com o passar do tempo, puderam arranjar um casebre muito simples, lá para os lados do Barreirinho das Pombas, onde Tião pôde dedicar-se por completo ao ofício de seleiro, granjeando em pouco tempo a estima e a confiança de seus fregueses.

A família cresceu. Primeiro, veio o Inácio; depois, a Rosa, batizada assim em homenagem a uma das irmãs dominicanas por quem Nenzica tinha grande afeição. O tempo passou; Tião e a mulher envelheceram; os filhos casaram-se e os netos chegaram. De Inácio, dois meninos fortes e sadios; de Rosa, uma menina, a Celestina. Como todos continuavam a morar na cidade, as crianças eram fonte inesgotável de alegrias para os pais e avós. Celestina, pouco depois, passou a estudar no Educandário Sant’Ana que, desde o começo, mantivera uma classe para alunos pobres, que nada podiam pagar pelos estudos. Ali ela pôde desenvolver suas capacidades, interessando-se, sobretudo, pelas letras. Lia muito, tudo o que lhe caísse nas mãos. Até mesmo certas obras às quais a Santa Madre Igreja apunha sua desaprovação…

Ali Celestina concluiu o curso Normal e, como normalista, candidatou-se a uma vaga de professora de uma escola municipal, nos arrabaldes da cidade. Queria ensinar aqueles meninos que não teriam nenhum futuro se não soubessem ler, escrever e contar. No dia da publicação dos resultados, seu nome não constava da lista. Foi indagar o porquê. A resposta: porque era “uma pessoa de cor”. Desolada, voltou para casa. Lá chegando, encontrou a madre superiora, que fora sua professora no Sant’Ana. Tinha ido fazer uma visita. Contou-lhe o sucedido e chorou suas mágoas.

– Nunca se desespere da Providência Divina, minha filha. Tudo há de se arranjar, você verá.

– Como, madre? Não posso mudar a minha cor…

Dois dias depois, recebeu um recado. Devia comparecer ao gabinete do Intendente Municipal para um assunto urgente e de seu interesse. Lá foi ela.

– Boa tarde. A senhorita é Celestina de Jesus?

– Boa tarde. Sou eu mesma, sim, senhor.

– Aqui está a relação dos documentos que precisa trazer para ser empossada como professora do município.

Ela, estupefata com o anúncio, apenas conseguiu balbuciar:

– Mas… meu nome não estava na lista. E eu ouvi aqui mesmo na Intendência que não tinha sido aprovada porque era “uma moça de cor”…

– Pois é. A madre Celeste, amiga de minha mãe, também me contou essa mesma história. Mandei averiguar e já demiti a pessoa que, por seu próprio preconceito, a prejudicou. A capacidade e o valor das pessoas não estão na cor da pele, mas nas ações que praticam. A senhorita foi a primeira colocada da sua turma e merece todo o nosso respeito e consideração. Além disso, examinei eu mesmo as provas. A melhor nota foi a sua.

Celestina voltou para casa pisando em nuvens cor de rosa, de tão feliz. No entanto, uma sombra de angústia apertou-lhe o coração ao pensar naqueles que, diferentemente dela, não teriam a chance de ver reparada esse tipo de injustiça. Uma injustiça sem cabimento – como são todas elas, ainda mais em razão da cor da pele.

Celestina trabalhou, casou-se, teve filhos e netos; envelheceu e morreu. Mas o preconceito, infelizmente, continua vivo…

(Em homenagem às irmãs dominicanas de Nossa Senhora do Rosário de Monteils, que chegaram em Goiás em 1889).

Fernando Cupertino, médico, compositor e escritor, é colaborador do Jornal Opção.