Cavalhadas mal-acabadas
15 novembro 2025 às 21h00

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Fernando Cupertino
No início do século XX, na antiga Capital de Goiás, havia cavalhadas como parte dos festejos do ciclo litúrgico de Pentecostes, onde se reconstituíam as lutas entre cavaleiros mouros e cristãos, com a derrota dos primeiros, evidentemente. A representação se dava num grande descampado, onde hoje se acha a Praça do João Francisco, à época com uma grande área central inteiramente livre de construções. Assemelhava-se mesmo a uma grande arena, parcialmente guarnecida por casas muito modestas.
Nas semanas que precediam tais encenações, que duravam três ou quatro dias, preparavam-se os camarotes, construídos à base de paus roliços e de bambus, cobertos por folhas de coqueiro, para o abrigo do sol forte. Ficavam dispostos de um lado apenas daquele imenso descampado, de modo a ter-se a melhor visão possível das competições e combates entre os cavaleiros rivais. Apenas um desses camarotes, de maiores proporções, era reservado à banda de música que animava o ambiente com os galopes de cavalhada, polcas e marchas, muitas das quais compostas por músicos do lugar e executadas segundo as exigências dos diversos momentos da encenação.
Nhô Inácio, carapina antigo e respeitado na cidade, era o encarregado de preparar toda a estrutura, mas naquele ano, em razão de uma malária contraída numa pescaria lá para as bandas do Araguaia, tivera que ser substituído de última hora. Como não havia muita gente capaz de realizar o serviço, o Intendente Municipal confiou o trabalho a um artífice menos conhecido, mas que fora o único a aceitar o desafio de preparar todo o necessário, de modo a se poder cumprir com a tradição, no tempo certo.
O trabalho começou com a procura da madeira, do bambu e das folhas de coqueiro, no mato, seguida do transporte em carros-de-boi até o local onde seriam utilizados. Ali, com mais uma meia dúzia de auxiliares, o encarregado do serviço dirigia os trabalhos, ao tempo em que, ele próprio, punha também as mãos na massa. Ao cabo de uns dez dias, tudo estava terminado, o pagamento recebido e o Intendente satisfeito com o fato de que as coisas tivessem dado certo, possibilitando, assim, que as festividades acontecessem como de costume.
No primeiro dia das cavalhadas, na parte da tarde, os camarotes estavam repletos. Para o público, as construções ficavam mesmo ao rés-do-chão, tendo quatro esteios para suportar o teto de palhas trançadas que repousavam sobre bambus à guisa de caibros e ripas. Nas laterais, bambus amarrados com embiras, em x, de modo a dar travamento e segurança à estrutura. Já para a banda de música, a construção era mais exigente, pois havia a necessidade de um tablado elevado, de onde o som dos instrumentos pudesse projetar-se melhor, num tempo em que não havia microfones e amplificação. Desse modo, o camarote precisava ser mais alto, ao qual se chegava depois de se galgarem alguns degraus.
Instalados os músicos, desta vez mais numerosos do que o de costume, o mestre atacou logo um galope vibrante para a entrada e desfile dos cavaleiros, debaixo dos aplausos da plateia. Depois vieram outras peças: os cotillons, as quadrilhas, polcas, marchas e dobrados. E assim o tempo foi passando…
Já lá pelo fim da tarde, ouviu-se um enorme barulho e uma nuvem de poeira ergueu-se no ar: o tablado do camarote dos músicos fora abaixo, derrubando homens e instrumentos! Pouco a pouco, foram os músicos saindo dos escombros. Uns mancavam, outros tinham os instrumentos retorcidos; Mané Pereira, o percussionista, tinha a cabeça enfiada no couro do tambor. Zé de Dona Neném sofrera um corte no queixo; outros tantos tinham galos na testa…
Foi um Deus-nos-acuda! Naquele ano, as cavalhadas ficaram reduzidas a um dia incompleto, pois, depois daquele infortúnio, os músicos ficaram completamente fora de combate. A única coisa que desejavam, entretanto, assim que recuperados das contusões e ferimentos, era pegar aquele filho de uma égua do carpinteiro e arrancar-lhe fora o couro…
Fernando Cupertino, médico, escritor e compositor, é colaborador do Jornal Opção.
