Camélia era a senha dos abolicionistas

24 janeiro 2023 às 19h15

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Sinésio de Dioliveira
Especial para o Jornal Opção
Em meus devaneios poéticos, vejo os estilos literários metaforizados em determinadas flores. No mundo da escrita poética (ainda bem!), a emoção não vive sob as botas sisudas da razão, ela pula muro, passa pelo buraco da fechadura, vê gigantes em moinhos…. Diante disso, as divagações poéticas são permissíveis, mas fico temeroso quando elas se enveredam na artificialidade do rebuscamento, o que pode dar fim ao néctar dos lábios dos versos, por amordaçamento da emoção, que é a ave da criatividade.

Essas divagações permitem ao poeta até ouvir estrelas (e sem perder o senso). Mas isso não era o que pensava o homem de negócio, personagem de “O Pequeno Príncipe”, de Antoine Saint-Exupéry. O tal homem, que é uma metáfora de muitos, chegou a dizer que as estrelas são “coisinhas douradas que fazem sonhar os ociosos”. O homem de negócio só tinha tempo para contar estrelas, chegou a 501.622.731, e disse ao principezinho que iria depositá-las num banco, escrevendo a quantidade num papel e guardando-o numa gaveta.
Os detalhes da flor de maracujá me fazem vê-la como barroca. A rosa, classifico-a como romântica. Além do aspecto literário, essa flor também carrega a significação romântica tão conhecida por nós, relacionada ao amor entre as pessoas. Ela, inclusive, banalizou-se nessas empreitadas amorosas. Banalização não por ela em si, mas por parte de quem a presenteia, que não conhece a rosa enquanto flor, no sentido mais belo da palavra, que não fala, mas exala o perfume roubado da pessoa amada. Já a orquídea, em sua sofisticação, classifico-a como parnasiana. Por florescer em qualquer cantinho de chão e com abundância, classifico a maria-sem-vergonha como modernista, dá até no meio das pedras, em paredes e muros.
Quanto à camélia, flor cujo nome homenageia o jesuíta Georg Kamel nascido em 1661 na Moravia (atual República Checa), ela não se enquadra em nenhum gênero literário. Ela, que foi trazida do Japão para o Brasil no fim do século 19, entra na história por outro motivo: por sua simbologia de liberdade. Isso no Brasil antes da escravidão ser abolida. Os abolicionistas, conforme consta no livro do “As Camélias do Leblon e Abolição da Escravatura”, do historiador Eduardo Silva, usavam camélia na lapela.

No dia em que foi assinada a Lei Áurea, 13 de maio de 1888, a princesa Isabel ganhou de presente dois buquês de camélias: um de flores artificiais, oferecido pela Confederação dos Abolicionistas, outro de flores naturais cultivadas por negros, oferecido por José de Seixas Magalhães, um português comerciante de malas e dono de uma chácara ‘subversiva’ (Quilombo do Leblon, hoje zona sul do Rio), que abrigava escravos fujões, “às portas do poder público e possuía lideranças bem articuladas politicamente”. Eram esses fujões que cultivavam a respectiva flor, que era até comercializada.
Rui Barbosa de Oliveira, político, diplomata, advogado e jurista, que chegou a dizer que o homem desanimaria da virtude e se envergonharia da honestidade por causa da prosperidade da desonra e injustiça, possuía um belo e interessante jardim.

Em sua casa no Rio de Janeiro, onde hoje funciona a Fundação Casa Rui Barbosa, as camélias também estavam presentes na área mais nobre do seu jardim, três pés mais precisamente de flores cor rosa. Segundo o historiador Eduardo Silva sobre aquele tempo, “usar uma camélia na lapela ou cultivá-la acintosamente no jardim de casa era uma quase confissão de fé abolicionista”.
Desde de 2019, a camélia vem sendo cultivada na fundação, e suas mudas são distribuídas gratuitamente. Todo esse cuidado com flor tem uma certa relação com a história da rosa de “O Pequeno Príncipe”. Pode-se dizer que a camélia se fez tão importante devido ao tempo dedicado a ela.
Sinésio Dioliveira é jornalista. É colaborador do Jornal Opção.