Brasil sofre do complexo dos caranguejos no balde. É o que prova “Democracia em Vertigem”

23 fevereiro 2020 às 00h00

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Petra Gutierrez faz narrativa conveniente com seu badalado e muito malfeito filme, que não é ficção nem documentário
Brasigóis Felício
Especial para o Jornal Opção
O Brasil é uma terra em eterno transe, que parece querer dar a si mesma o mau destino de ser um terremoto cotidiano, em que nada pode dar certo ou ser estável.
Lugar dito “abençoado do planeta”, por sua vastidão territorial em terras produtivas e de clima temperado, em que até o passado está em questão. Sobre dias passados são lançadas dúvidas terríveis.
Não se fala em cultuar personalidades ou símbolos positivos da nossa História – como é ato insólito e digno de críticas mencionar valores e acontecimentos que constituíram este território em nação.
Na literatura, no teatro e no cinema só se vê e se tem o endeusamento ou a mitificação de bandidos de todos os naipes, prostitutas, rufiões, traficantes de drogas e chefes de bandos criminosos.
É um tal de louvar o heroísmo e a coragem de “Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia” — filme baseado em romance homônimo, de José Louzeiro —, são as “Cidades de Deus”, contendo a apologia aberta da valentia moral dos Capitães Nascimento e dos Zé Pequenos, que parecem estar em campos opostos, mas que são atores do mesmo campo de violência e marginalidade (com a semelhança na diferença, entre um lado que representa a o império da lei, e o outro, marginal e favelado, que assinala a onipresença do varejista narcotraficante de bagulho (drogas ilícitas, vendidas em pequena escala, direto para os consumidores).

Outros exemplos não faltam – é só o que tem “pintado” no cinema brasileiro, desde os tempos do Cinema Novo, que surgiu com a proposta de ser arte posta a serviço da revolução socialista, como propunha abertamente Glauber Rocha, e os demais epígonos do movimento estético que interrompeu um ciclo da cinematografia nacional, até hoje não superado, como se vê na canhestra tentativa de fazer narrativa política conveniente, da cineasta Petra Gutierrez, com o seu badalado e muito mal feito “Democracia em Vertigem”, que nem é ficção nem é documentário – conseguiu ser apenas uma tosca mistura incompetente dos dois gêneros.
Autossabotagem tropical
Nosso país é um “paraíso tropical”, em permanente tumulto e autossabotagem, perseverante em sua determinação de não oferecer resistência aos avanços da burrice.
O Brasil vive espremido (oprimindo a si mesmo) — alternando contra seu povo dois tipos básicos de complexos: o complexo de caranguejo no balde, e o complexo de cachorro vira latas. Ao mesmo tempo em que sofrem deste terrível e persistente complexo de inferioridade, os brasileiros são contumazes em repetir os mesmos erros, acreditando que levarão a resultados diferentes.
Também são persistentes no pensamento mágico de que desgraças, acidentes e fatalidades só acontecem com seus amigos, conhecidos e vizinhos, sendo que eles, por um passe de mágica, a nada disto estão sujeitos. Somos impermeáveis à percepção da realidade. O mundo pode estar caindo à nossa volta, e fingimos não ver, insistimos em não aceitar os fatos, e tudo o que está acontecendo.
Em seu autoengano, o brasileiro confunde otimismo com ingenuidade. Dado a ser opinioso, dá pitaco, emite sentenças definitivas sobre assuntos sobre os quais não entende bulhufas.
O complexo de caranguejos no balde consiste no seguinte: quando alguém começa a se destacar por seu talento, por seu trabalho ou empenho, logo seus colegas de trabalho, seus amigos de infância, seus vizinhos de casa ou de bairro, os grupos sociais e profissionais em que vive, atua e trabalha, começam a fazer de tudo – as coisas mais sórdidas – para derrubá-lo; tentam diminuir seus méritos, amesquinhar suas vitórias, colocar em dúvida o seu valor, e até a sua honestidade.
Procedem tal como caranguejos colocados em um balde: quando um deles tenta subir, escapar de ir de ser morto da forma mais cruel, em panelas de água fervendo, os que estão em baixo o puxam para baixo, lançam suas garras vingativas e invejosas: não permitem que ele escape.
O outro complexo que é uma verdadeira praga nacional, um atavismo cultivado, como se fosse preciosidade — o famoso complexo de cachorro vira-latas, de que falou o escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues, é o complexo de inferioridade básico, humoristicamente apelidado de “complexo de cachorro vira-latas.
Pelo qual os brasileiros em geral vivem refocilando em lixeiras, fuçando sacolas de lixo, em busca de encontrar algo que lhes sirva, entre coisas jogadas fora. Muitos não o fazem porque precisam, e sim porque não se valorizam-se, acham que são inferiores aos outros, não merecem nada limpo, nada que seja do bom e do melhor.
Sobre isso o pintor brasileiro Juarez Machado, há décadas morando e fazendo sucesso em Paris, conta o que lhe falou o ator Ary Fontoura, uma frase reveladora do caráter de certo modo maldoso do brasileiro comum: “Juarez, brasileiro é estranho: quando estou na novela das oito, me param na rua, me abordam nos restaurantes, no calçadão da praia — me pedem autógrafos, selfie, etc. Sou bajulado pra caramba. Quando estou numa novela das seis, passam a achar que estou em decadência. Fingem que não me conhecem, passam por mim sem dar bola, e não me pedem nada”.
Vidinha rampeira
Isso, e outros defeitos de caráter explica nosso atraso como povo e nação. Outra mania comum do brasileiro é desestimular toda pessoa que tem projeto, ambição, alguma meta cuja realização seja o sonho da sua vida. Não se pejam de dizer, cara a cara, que não vai dar certo, aquela viagem, aquele projeto de ir morar no estrangeiro, deixar tudo para trás, e começar vida nova. Jogam banhos de água fria no entusiasmo de quem está tentando um caminho novo, um escapar da normose, ou do marasmo.
Infelizes e invejosos ficam na sua vidinha rampeira, sem coragem para romper com nada; contentam-se em praticar bullyng coletivo, uns contra os outros, no seio da “sagrada família”.
Cada encontro é um pingue-pongue de críticas mordazes e ferinas, insinuações malévolas, ironias cortantes como navalha, em reuniões que parecem acertos de contas entre pessoas que há muitos anos são inimigas mortais, e odeiam-se uns aos outros, com todas as forças físicas e psíquicas de que dispõem.
Ajudar que é bom, só alguns (os que são bons) se dispõem. Ainda assim, quando ajudam, cobram recibo, antes de ajudar, humilham publicamente a pessoa a quem estão fazendo algum favor, ou emprestando algum dinheiro. — De maneira costumeira e contumaz, ou em caso de necessidade de urgência urgentíssima.
— Dizem que o Brasil é um país pacífico, não gosta de guerras. Mas não é verdade. Nosso país vive em guerra feroz, contra si próprio. E contra o seu povo.
— E nem no sentido comum, é tão pacífico assim. Só que suas guerras não passam de escaramuças, expedições covardes de exércitos contra jagunços e sertanejos famintos, como na guerra de Canudos. Ou como em São José do Duro, hoje Dianópolis — em que, por questões fiscais, travou-se uma expedição militar sangrenta, contra um bando de jagunços sublevados, sob liderança do coronel Abílio Wolney.
—Sem falar que a participação brasileira, em triunvirato de nações, contra um país rebelado contra o colonialismo, como na Guerra do Paraguai, foi uma covardia e tanto. Cometida contra um inferior e quase desarmado exército de Solano Lopez, no final reduzido a combatentes crianças e velhos esfarrapados, descalços e famintos. Mais que uma guerra, foi um massacre — uma repetição do massacre de Canudos, em ponto maior.
— A pátria de chuteiras, que só se une de quatro em quatro anos, por ocasião de disputas de Copa do Mundo. Aí (e só aí) a nação inteira, massas de pobres, ricos e remediados, “entra em ação” patriótica. O país pára, decreta-se ponto facultativo nas repartições públicas, comércios baixam suas portas.
E, claro, o carnaval é outro fator de “união nacional” — mesmo que nem todos se disponham ou tenham meios para “entrar na folia”, na folga todos entram. Ninguém trabalha nessa pátria de chuteiras. Ou no país da festa da carne (carnevale).
A prova ou sinal de que um povo se acanalhou, diminuiu ou perdeu seu caráter, está no espírito de saque, motim, roubania de quadrilha, ação de coletivos, milícia ou bando, tornando-se indiferente ou cúmplice de associações criminosas, que tomam de assalto as empresas, as arcas, o Erário do país.
A partir daí deixa de ser povo, para tornar-se população, ajuntamento de gente.
— Daí que brasileiros se reconhecem como sendo filhos do eternpaís da esperança.
Brasigóis Felício é escritor e jornalista. O texto foi apresentado no Seminário de Psicologia Analítica, promovido pelo Instituto de Psicologia Olhos D’alma, no Setor Jaó, em Goiânia.
Brasileiro que ao jeito “fantaseia”
não sabe a metade da meia.
*
Brasileiro é festivo.
Comemora qualquer coisa.
tudo é motivo de festejo,
churrasco e cervejada.
mas não sai disso.
*
História indiscreta da República
Como povo e país
o Brasil parece
um gigante
eternamente adormecido
em berço quebrado
— um ente colossal
que só cresceu
até os joelhos
sendo anedota contada
por seu próprio povo,
que não acredita em si mesmo
— somos um estupendo incívico
ajuntamento de gente,
uma “pátria de chuteiras”
sempre a esperar que chegue
o dia nacional da cerveja,
em vocação incoercível
para a fracassomania
e a piada trágica
— com servidores públicos
consultando os calendários
em busca de feriados e dias santos,
para os devidos “enforcamentos”
dos dias subsequentes
— os dos estratos inferiores
sempre a esperar em vão
por magros e possíveis
quinquênios e aumentos.
II
Para saber
a verdade histórica
disto, basta conferir
os autos do seu passado
povoados de guerras
que foram refregas,
escaramuças entre jagunços
a mando de coronéis políticos:
guerra dos mascates, balaiadas,
gente amarrada em troncos,
à espera do sacrifício final,
quilombolos tendo e fazendo escravos,
como Zumbi, na Serra da Barriga
fugas vergonhosas, como a de João Goulart,
ao ver a cuia em cacos,
quando a milicada entrou
com seus tanques e suas tropas
— terra fértil em vinganças,
bravatas e contendas
entre coronéis de feudos
em batalhas que foram escaramuças,
ou em cavalgadas em pangarés decrépitos,
como em 15 de Novembro, na
Proclamação da República
— ou como em São José do Duro,
e em tantas outras praças
que foram cenários
de ajuntamentos de esconjuros
III
Outros países cometeram erros
de desastrosas “escolas democráticas”,
elegendo palhaços, venerando prostitutas
e cantoras de cabaré, mas nenhum
foi tão pantomímico e tão histriônico
como o Brasil, quando elegeu presidente
uma caricatura udenista
registrado em cartório civil
com o nome de Jânio da Silva Quadros
— tão inacreditável, em sua
espanventosa estroinice,
que ele próprio passou
a dar crédito a si mesmo, e
às suas estroinices faciais e verbais.
que tenha feito o que fez
só foi surpresa para quem não sabe
do que a adicção ao álcool é capaz.
tantos episódios escandalosos
povoam a história insincera da República
em que, em se plantando,
nada garante que se vai
conseguir colher e vender.