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Amin Safatle

Especial para o Jornal Opção

Era agosto de 1985. Do Mirante Porto do Sol, em Porto Velho, capital de Rondônia, deslizava aos meus pés o majestoso Rio Madeira. Com uma extensão total de 3.315km, sua bacia banha três países: Brasil, Bolívia e Peru.

Os últimos raios de Sol refletiam na superfície do suntuoso afluente do Amazonas, descortinava uma vista maravilhosa. Acomodado numa mesa do restaurante, vivi uma das cenas mais lindas da minha vida; ao se pôr, o Sol “abraçava” o Rio Madeira e exibia um festival de cores rosadas e alaranjadas. Na largueza de suas águas, barquinhos navegavam suavemente.

 Na minha mente, ressoava a Bossa Nova de Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli: “O barquinho vai, a barquinha vem”. Minha alma estava em êxtase pelo presente que Deus me dava e eram tamanhos os sentimentos que até sentia os apitos do passado da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, liderado pelo engenheiro norte-americano, Percival Farquhar, o responsável por tocar o empreendimento durante os anos 1907 a 1912.

Nesta hora do dia, o restaurante ainda estava vazio, e eu, o único cliente. Teria que me levantar de madrugada para fazer a vistoria técnica e relatório para a concorrência internacional da construção da BR-364, Porto Velho a Rio Branco, no Acre. Com os olhos fixos no Madeira, saboreava uma cerveja Serpa, bem gelada, aguardando a caldeirada de tambaqui para jantar.

Desviando o olhar para o interior do restaurante, fiquei surpreso de ver num pequeno palco, um lindo piano de cauda de cor preta. Fiquei atônito da serventia daquele instrumento, uma vez que a música ambiente era sertaneja.

Foi então que ele entrou.

Um homem magro, de passos firmes, vestido com um fraque negro que destoava de tudo – do calor, do ambiente, do Norte. Um cearense, soube depois, desses artistas errantes que cruzam o país como quem desafia as regras da lógica e da geografia.

Não falou nada. Sentou-se ao piano que, até então, parecia peça decorativa, e sem aviso, sem microfone, sem anúncio, levantou a tampa do piano, ajustou o banco a sua altura e voltou a sentar-se, tranquilamente, fixando-se no teclado. Ergueu a cabeça para me cumprimentar e iniciou “Allegro com brio”, da 5ª Sinfonia, em Dó menor – Op. 67 de Ludwig van Beethoven.

As quatro notas iniciais explodiram como um trovão em céu limpo: “Tã-tã-tã-TAAAAANN!”

 Todo o restaurante silenciou. As garrafas pararam de tilintar, o garçom congelou no meio do passo, e até o rio pareceu conter a correnteza por um instante.

A música preencheu o ar com uma fúria organizada, uma urgência nobre. Ali, diante do Madeira, a selva ouvindo Beethoven. Ali, entre tilápias, farofa e refrigerantes suando nas garrafas, um homem transformava o mundo com as mãos.

Não havia aplausos ensaiados. Não havia plateia de teatro, mas havia beleza. Daquelas que pegam a pessoa desprevenida e empurram para dentro de si mesma.

Quando terminou, ele se levantou, fez uma reverência tímida e saiu como entrou – em silêncio.

O garçom, atônito, apenas murmurou:

— Esse doido aparece de vez em quando…

Eu fiquei mais um tempo. A caldeirada de tambaqui esfriava no prato, mas minha alma ardia. Naquela noite, Beethoven e o Madeira se encontraram, e eu fui testemunha.

Amin Safatle é cronista.

A música de Beethoven

L.v.Beethoven – Sinfonia no. 5 op. 67 – I Allegro con brio – YouTube