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Lêda Selma

Especial para o Jornal Opção

A Academia Goiana de Letras (AGL) inaugurou a série de homenagens à trajetória centenária de Waldomiro Bariani Ortencio, com sessão festiva no sobrado famoso, da Rua 82, Setor Sul, onde reside o homenageado e é sede do Instituto Cultural e Educacional Bariani Ortencio/Icebo. Tive o privilégio de ser designada para saudá-lo. Além do privilégio, uma honra indescritível representar minha ilustre confraria da AGL, da qual Bariani é o acadêmico decano pelo critério de idade.

É demais comum a criação de mitos. Mitos de barro, de espuma, de papel, e que, com o tempo, quebram-se, dissolvem-se ou estilhaçam-se ao vento. Mitos que vulgarizam, banalizam o sentido do vocábulo. Esses são personagens de faz de conta, que se configuram como simbólicos, ganham espaço e permanecem, por curto ou longo tempo, apenas, feito fantasmas ou lembranças controvertidas e sombreadas.

Há, também, a lenda, título popular para figuras vistas como notáveis, que migraram para a instância maior, mas deixaram rastos de sua magnitude, fictícia ou real, nas vertentes artísticas, religiosas, filantrópicas, políticas. Todavia, em torno de muitas delas, não raro, o fantasioso aglutina-se ao real e subjuga-o. Uma conjunção, portanto, da realidade com o ficcional, que gesta alguns mitos impostos e lendas improváveis.

Para resgatar a legitimidade e dignidade do mito e da lenda, ninguém menos que uma lenda viva: de carne, osso, cérebro, emoções, talento, luz interior, visão amplificada. Que se fez personalidade de uma trajetória cultural longeva, personalidade predestinada à imortalidade, não só na AGL, mas também na História.

Falo de Waldomiro Bariani Ortencio. Produtivo. Desafiador. Aroeira. Que sempre se dedicou ao ofício de escrever, que sempre enfrentou vicissitudes, contribuiu e destacou-se em causas nobres, na orientação aos calouros, seja na literatura e na música, seja no folclore ou noutros trilhos artísticos e populares. Cem anos. Vida extensa e intensa. De incontáveis feitos e celebrados êxitos.

Este mito de verdade, lenda viva, centenário, sempre esbanjou invejável lucidez e, do mesmo modo, sentia-se feliz em participar de encontros culturais. Com mais de 50 obras publicadas, e muitas reeditadas, Bariani Ortencio, paulista de Igarapava, interior de São Paulo, nascido em 24 de julho de 1923, mas no registro, por um equívoco paterno, 24 de outubro, data de nascimento do próprio pai e aniversário de Goiânia.

Bariani Ortencio de braços abertos Divulgação
Bariani Ortencio era um escritor tão polivalente quanto Mário de Andrade | Foto: Divulgação

Ainda na pré-adolescência, demonstrou seu dom para a literatura, com estreia no jornal estudantil, “O Chicote”, em Itaperava (SP), onde residiu por alguns anos.

Mas a família resolveu mudar-se para Goiás. E pousou em Goiânia, capital que ainda cheirava a fraldas, ou melhor, a terra em rebuliço, em tempo de gestação.

A viagem, a bordo de um caminhão, durou oito dias. E Bariani, no fulgor da adolescência, aos 15 anos, entregava seu coração, definitivamente, à mãe Goiânia. Fato duplamente curioso: sua chegada coincidiu com uma partida de futebol — Atlético Clube Goianiense versus Anápolis — à qual enfronhou-se todo para assistir.

Mas… cadê o goleiro do Atlético?! O menino Bariani, no auge da ousadia, não se fez de suplicado e, logo, prontificou-se a desempenhar tal função.  Ah! o juiz?! Nada menos que Venerando de Freitas Borges, prefeito da capital. O resultado do jogo, não sei. Por acaso, alguém sabe? Ah! sim, Horieste Gomes acaba de informar-me: 1×0 para o goianiense.

É certo, Bariani fez bonito, pois tornou-se goleiro titular do rubro-negro, time também dos irmãos Mendonça Teles – Gilberto e José, que, por um bom tempo, jogaram no Dragão – e dos acadêmicos da AGL Eurico Barbosa, Itami Campos e Nasr Chaul.

Aluno do Liceu, Bariani escrevia textos para o jornal escolar. E não parou mais, ao contrário, assinou crônicas para a Rádio Clube de Goiânia, não raro, publicadas na “Folha de Goyaz”, jornal que também acolheu meus textos juvenis, de ginasiana, semanalmente, durante pouco mais de um ano.

Bariani chegou a iniciar o curso de Odontologia, porém, não o concluiu.

No entanto, foi um pouco de tudo, como bem diz: “Fui alfaiate, jogador de futebol (apelidado de Paulistinha), professor de matemática, comerciante, industrial, minerador, fazendeiro, escritor, folclorista, cozinheiro, pescador, nas horas vagas, e compositor (compôs várias músicas, muitas delas, gravadas por intérpretes reconhecidos nacionalmente).

Em 1960, ao ensejo da inauguração da nova capital do Brasil, a Orquestra e Coro RGE gravou a marcha “Brasília vinte e um anos”, de sua autoria, e, no mesmo disco, “Brasília a Capital da Esperança”, em parceria com Henrique Simonetti e Capitão Furtado.

Dono do Bazar Paulistinha, segundo ele, o maior vendedor de discos do interior do Brasil, o que abriu portas aos cantores e duplas goianas para lançar seus discos nas importantes gravadoras brasileiras.

Sem dúvida, um Bariani multifuncional, inegavelmente, bombrilesco. Volto minha atenção para o cozinheiro que, em parceria com o saudoso escritor Aldair Aires, nos idos de1978, inventou o Peixe na Telha, que fez o maior sucesso, inclusive, internacionalmente, e é bastante apreciado pelos goianos e visitantes.

Pois é, Bariani Ortencio (que detesta ver seu nome escrito com um “e” no final, em vez de “i”, e Ortencio com acento), lenda viva da literatura de Goiás, agraciado com os mais importantes prêmios do Estado e outros tantos, nacionais, integrante também da União Brasileira de Escritores, Instituto Histórico e Geográfico de Goiás e Academia Goianiense de Letras, em quase todas, tesoureiro vitalício, sempre foi atuante e palpiteiro.

A idade não vergou seu desejo permanente de manter as portas abertas do seu lendário sobrado, na Rua 82, para encontros de escritores, de demais artistas, realização de colóquios literários, recepção a autoridades, lançamentos de livros (Maria Helena Chein, Yêda Schmaltz, Aidenor Aires e tantos outros), palco e cenário da primeira peça teatral de Miguel Jorge, “Os Angélicos”.

A visitação à sua biblioteca, aberta ao público, surpreende e encanta pelas várias raridades lá expostas, assim como as paredes iconográficas e memoriais, hospedeiras de relíquias preciosas, não só fotográficas, também, jornalísticas.

Genuíno mito da cultura goiana, apaixonado folclorista, aos 97 anos, as diversas facetas dos seus 70 anos devotados à defesa, valorização, preservação e difusão da cultura popular de Goiás e do Brasil, foram resgatadas no documentário, curta-metragem, “O Paulistinha e a alma da Terra”, dirigido pelo jornalista Edson Luiz de Almeida. Reverência justa ao seu trabalho incansável em benefício das artes e das tradições culturais do Estado. Ainda no despertar de seus 99 anos, Bariani mostrou-se em plena produtividade (ah! esse mito do bem ama e defende demais da conta a cultura).

Saúdo o Bariani da Campininha, do Atlético Clube Goianiense, do emblemático Bazar Paulistinha, ponto de encontro das boas prosas, dos escritores, dos amantes da música, rodada em vinil – long play, ou LP, Compacto —, depois, em fita cassete, CD, DVD…

Bariani Ortencio do programa “Frutos da Terra”, na TV Anhanguera, ao lado do idealizador e apresentador Hamilton Carneiro.

Bariani folclorista premiado, aqui e alhures, cujo trabalho mereceu reconhecimento nacional, presidiu, por anos, a Comissão Goiana de Folclore (tornou-se presidente de honra) e sua sucessora, a dinâmica e obstinada Izabel Signorelli, segue os caminhos do mestre, mas imprimindo sua marca de dedicação e ativismo.

Após criada a Comissão Nacional de Folclore, foi editada a Carta Brasileira do Folclore — que determinou, aos Estados, a constituição de comissões em seus municípios. Goiás, o pioneiro: de pronto, 40 municípios formaram suas comissões. Agosto é o mês do folclore e as comemorações acontecem aqui e interior afora sob o timbre da Comissão Goiana de Folclore, todos os anos.

Peço licença a todas e todos para uma manifestação intimista: em fevereiro de 2020, pouco antes da pandemia, vivenciei um dos momentos mais bonitos, importantes e emocionantes de minha trajetória literária, na sede do Instituto Cultural e Educacional Bariani Ortencio/Icebo, então, dirigido por Beto Selva, seu dedicado, competente genro e, também, companheiro de cozinha.

Bem, havia cumprido meu 2º mandato, na presidência da Academia Goiana de Letras (segunda mulher a presidi-la), e passado o leme ao meu sucessor, quando fui surpreendida por bela homenagem, promovida pelo mestre, amigo e confrade Bariani Ortencio. Homenagem, diga-se, inesquecível, com direito a diploma de mérito (pela minha trajetória literária e de gestora), discursos, presença dos acadêmicos, de autoridades da Cultura, além de deliciosa peixada.

Sabia a dimensão daquele gesto bariânico, pois seu autor, de integridade à prova de qualquer tipo de bajulação, ou desonestidade intelectual, sempre deixou à mostra sua espontaneidade, franqueza e solidez de propósitos. Portanto, maior honraria que já recebi, momento de inexprimível alegria e orgulho.

Waldomiro Bariani Ortencio, ou, simplesmente, Bariani, doou sua vida à cultura de Goiás. Seu ativismo, em todos os quadrantes culturais, construiu sua própria história e enriqueceu a história do nosso Estado. Portanto, ele, mais do que todos, merece, em vida, como sempre disse querer, reconhecimentos, honrarias e homenagens. E esta é a minha homenagem, bem como da Academia Goiana de Letras, da qual sou voz neste momento.

Deus o abençoe, Bariani, mito da literatura e lenda viva da Cultura Goiana. Gratidão e reverência de sua confraria da Academia Goiana de Letras (AGL).

Nota da redação do Jornal Opção

Bariani Ortencio morreu em 15 de dezembro de 2023, aos 100 anos, em Goiânia. O Jornal Opção manteve o texto — excelente, por sinal — como foi escrito pela prosadora, poeta e crítica literária Lêda Selma, colaboradora do Jornal Opção.

Lêda Selma é integrante da Academia Goiana de Letras (AGL).