– Rodolfo, eu vou à cabeleireira cortar meus cabelos…

O marido grunhiu alguma coisa à guisa de resposta, sem nem ao menos se dar ao trabalho de tirar os olhos do jornal.

– Rodolfo, você me ouviu?

E sem esperar pela resposta, logo ajuntou:

– Minha Nossa Senhora, você quando está lendo essa Gazeta do Esporte, você não se abala por nada, nem que o mundo desabe!…

– Sim, meu bem, já ouvi. Vai ajudar a natureza… cortar e pintar os cabelos lá naquele salão da Annette, já sei.

– Sabe nada! Vê como você não presta a mínima atenção no que eu digo? Por acaso falei de pintar cabelo??? Eu vou cortar os cabelos e só isso, mais nada…

– Sim, Glorinha… vá e cuidado naquele estacionamento apertado para não arranhar o carro como da outra vez…

Enfurecida com aquela insinuação subliminar de sua incapacidade ao volante, ela nem resposta deu. Saiu batendo a porta e resmungando em alto e bom som sobre o machismo e suas variantes. Rodolfo, porém, nem percebeu a contrariedade da mulher com o comentário, absorto que estava em saber quem seria o novo técnico do seu time de futebol.

Pintura de Dante Gabriel Rossetti
Pintura de Dante Gabriel Rossetti

Glorinha, ao chegar ao tal estacionamento, não deixou de soltar um palavrão ao enfrentar a dificuldade para manobrar o veículo num espaço tão exíguo.

– Rodolfo é um chato e implicante, mas esse estacionamento é mesmo um perigo – pensou lá com seus botões.

Terminada a ingrata tarefa de estacionar o carro o melhor que pôde, tratou logo de se dirigir à entrada do estabelecimento, já pensando na frescura benfazeja do ar-condicionado para aliviar aquele calor infernal.

– Boa tarde, meninas. Cadê Annette?…

– Boa tarde, Glorinha. Annette saiu agora há pouco às pressas. Parece que a mãe dela teve lá um siricutico depois que o Andrezinho, o irmão mais novo da Annette, sabe, apareceu lá faz uma semana com um namorado. A velha, no dia, teve um piripaque e quase passou dessa para a melhor. Hoje, parece que a coisa repetiu…

– Ô meu Deus! Eu queria tanto dar um corte nos meus cabelos hoje… será que ela demora?

Pintura de Georgina de Albuquerque 1
Pintura de Georgina de Albuquerque

– Não faço ideia… se tiver ido para o hospital, a coisa não vai se resolver ligeiro. Você sabe como é, até que se consiga atendimento, lá vai tempo.

– Então eu volto outro dia. Mas telefono antes para marcar uma hora… obrigada!

Ao entrar no carro, lembrou-se de que teria que passar também pelo supermercado e pela costureira, a fim de provar um vestido que mandara fazer para a festa da padroeira. Gastou nisso quase a tarde toda e só conseguiu entrar em casa já à noitinha, por conta do trânsito desgraçado, que só piora a cada dia.

– Que demora, Glorinha! Mas valeu a pena, porque o corte de cabelo caiu muito bem em você, disse Rodolfo sorridente, com uma cervejinha na mão…

– Não seja cínico, Rodolfo! Não está vendo que eu não cortei os cabelos? A Annette não estava lá… você não presta mesmo nenhuma atenção em mim – completou já em soluços.

Ele, inspirado pelas várias cervejas que já lhe tinham descido goela abaixo, saiu-se de pronto com a justificativa:

– Não é isso, Glorinha. Eu apenas agi preventivamente. É que vocês mulheres, quando tiram dois dedinhos no comprimento dos cabelos, acham que isso se nota. Ora, nem se percebe! Vocês deveriam dependurar uma plaquinha no pescoço, com os dizeres “cortei os cabelos”… daí, sim, a informação fica completa e absolutamente confiável. Do contrário, nós, homens, não teremos a menor condição de adivinhar que algo do gênero tenha acontecido. E o pior não é isso; o pior é quando vocês nem avisam nada e chegam pra gente perguntando: “Você não está notando nada de diferente em mim?” … aí é o caos! E a coisa toma dimensões apocalípticas, quando, procurando agradar, a gente arrisca alguma coisa do tipo: “Está de blusa nova!”; e quando vem a resposta, acompanhada sempre por algum impropério, dizendo que a novidade é o corte de dois dedos no comprimento dos cabelos, vocês derrubam a casa, dizendo que não ligamos a mínima, que não reparamos em vocês! E sabe de uma coisa? Nós somos mesmo uns incompreendidos! Somos a parte fraca do matrimônio. Afinal, só vocês têm razão!

E dito isso, olhou fixamente para Glorinha que, àquela altura, embora calada, tinha os olhos faiscantes de raiva. Ao ver que a situação não lhe era muito favorável, declarou solenemente:

– Da próxima vez que cortar os cabelos, faça o favor de avisar.

E aí, tratou logo de sair dali antes que o caldo entornasse. Naquela noite e em muitas outras que se seguiram, Rodolfo dormiu no sofá…

Fernando Cupertino, médico, compositor e escritor, é colaborador do Jornal Opção.