Jô Sampaio

Especial para o Jornal Opção

Da sacada do prédio onde moro, fico, às vezes, olhando pessoas que passam pelas ruas. Umas andam vagarosamente, outras apressadas. Algumas carregam sacolas, enquanto outras empurram carrinhos de feira, de pedreiro e de bebê. Quem são tais pessoas? De onde vieram? Para onde vão? Quais são os sonhos, os problemas, os conflitos, males, venturas e desventuras de cada uma? Se eu as visse diante de mim, certamente jamais as reconheceria. Imagino a arca de mistérios em que cada uma dessas pessoas vive aprisionada.

Arcas… as arcas… quem eram as pessoas daquela arca, a caixa de pandora da minha infância? Eram duas as arcas em que meus pais, jovem casal no início da vida, trouxeram seus poucos pertences do norte de Minas para Goiás. Essas malas (meio bruacas e meio baús) ficavam em um canto da nossa pequena sala. Em uma eram guardadas (sempre arrumadinhas) as toalhas de banho, toalhas de mesa, fronhas, lençóis e cobertores. A outra arca, a que me fascinava e arrebatava a minha curiosidade, era cheia de quadros ampliados de fotos que meu pai, como retratista que era, tirava das pessoas nos cafundós das gerais e dos cerrados. Depois ele enviava os negativos a um laboratório em São Paulo, a fim de serem revelados, ampliados e emoldurados.

Cemitério velho 2222
Pintura de Gustav Adolf Class

Algumas pessoas se achavam no direito de recusar as ampliações por não poderem pagar ou por não se reconhecerem nelas (minha mulher não tinha esses brincos, falava um; eu sou banguela e esse homem aí tem dentes, dizia outro sertanejo; meu colar nem era dessa cor, falava a velha de voz esganiçada). Enfim, eram muitas as justificativas apresentadas. Meu pai, coitado, vezes havia em que voltava para casa trazendo no alforje uns três quadros recusados e os guardava dentro da arca. Nunca me cansei de olhar para aqueles rostos de formas e semblantes variados. Havia um jovem boiadeiro lindo, meu primeiro cowboy (este eu não olhava, contemplava). Havia jovens casais de noivos, mães com seus filhos mirradinhos de anemia, famílias inteiras que se juntavam em oito a dez pessoas na mesma foto. Era um desfile de imagens misteriosas para meus olhos infantis.

Cresci carregando a forte presença daquelas duas malas, as quais foram, com o tempo, se eternizando por meio de imagens e símbolos. Comecei a pensar que todos nós temos duas arcas. Em uma depositamos os fatos, as pessoas, os conhecimentos adquiridos, as lembranças de tudo o que vivemos e sentimos. Nesta se encontram a nossa história vivida e construída, e nossa Farda de Alferes (lembrando Machado de Assis)

Na outra arca, a das roupas brancas, das guarnições e alfaias, fica guardado nosso enxoval completo, da primeira camisinha cheirando a placenta ao sudário que vamos tecendo a cada momento e, em cujos fios, um dia seremos enlaçados, envolvidos, cobertos e atados para a viagem rumo ao infinito.

Hoje, Dia de Finados, penso muito nas minhas amadas pessoas que repousam em suas arcas eternas, enquanto eu, tecelã de fuso nas mãos, continuo urdindo os fios do novelo das minhas alfaias, olhando estranhos que passam pelas ruas, à semelhança da menina que fui, olhando retratos de desconhecidos.

Jô Sampaio, poeta, prosadora e crítica literária, é colaborador do Jornal Opção.