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Aldair da Silveira Aires (1942-2007)

Nascido em 1942, o poeta Aldair da Silveira Aires morreu em 2007. Ele tinha câncer havia mais de dez anos. Nos últimos meses, a doença se disseminou pelo corpo. Sua estreia literária ocorreu em 1968, com o livro “Poemas Liceanos”. Seguiram: “Os Nós de Nós em Nós” (poemas), “Dominus Nobiscum” (contos) e “Depois de Amanhã” (contos), publicado em 2003. Aldair Aires era formado em Letras Vernáculas pela Universidade Federal de Goiás e professor de literatura aposentado da Universidade Federal de Mato Grosso. O escritor se casou duas vezes e deixou duas filhas e um filho. No governo de Irapuan Costa Junior — 1975 a 1979 —, como superintendente de Assuntos Culturais, foi responsável pela renovação do Teatro Goiânia. Era grande conhecedor da obra de Miguel Jorge e de Ricardo Guilherme Dicke. A reportagem-entrevista do Jornal Opção foi publicada em julho de 1998. Ao republicá-la, não fizemos qualquer atualização. Susan Sontag, por exemplo, já faleceu. Depois da reportagem, publicamos uma crônica do escritor Aidenor Aires.

Entrevista publicada no Jornal Opção em julho de 1998

1

A escritora e crítica norte-americana Susan Sontag é uma ardorosa defensora de que não se use a doença como metáfora. Esta leitora perspicaz de Machado de Assis acha de profundo mau gosto comparações “pseudo-filosóficas” como “a guerra é o câncer da humanidade”. Se a guerra é uma neurose coletiva, decidida por líderes políticos e militares, não é sinônimo de câncer ou de aids. Uma das grandes damas vivas da crítica americana, Sontag teve câncer. Como Sontag, o poeta goiano Aldair da Silveira Aires, 56 anos, não se preocupa em discutir o câncer, que o atormenta há quase três anos, filosoficamente.

Aldair se recusa também a esconder que tem a doença. “Amigos dizem que se trata de uma espécie de coitadismo”, diz, em entrevista exclusiva ao Jornal Opção. “Coitadismo seria eu ficar trancafiado na minha casa, escondendo-me dos amigos e do mundo. Prefiro circular e pedir apoio para a Associação de Combate ao Câncer.”

Durante a nossa conversa, Aldair pediu licença para fumar. Como nenhum dos entrevistadores [Euler de França Belém e Miguel Jorge] fuma, o poeta devolveu o cigarro à carteira. Quando terminou a entrevista, saiu rápido da sala e acendeu um cigarro. “Como todo fumante, eu sempre digo que vou parar com o vício. Escreva aí que eu estou parando.”

Mas não é só cigarro que faz Aldair parecer o mais saudável dos mortais — mesmo depois de ter passado por duas delicadas operações na língua para extirpar o câncer. Ele também adora o que chama de “meu uisquinho”. Quando alguém lhe chama a atenção, Aldair replica, rápido: “Ora, eu estou vivo e não vou abandonar todos os prazeres”. Do câncer, aparentemente, Aldair está “curado”. “Mas a gente fica sempre de sobreaviso. Nosso corpo vira uma espécie de central de alarme. Qualquer pontadinha, aqui e ali, me assusta.”

O câncer abala e estigmatiza, admite Aldair. “Mas, além do problema de saúde, é o responsável pelo fato de a poesia ter me abandonado. Agora, como virei contista, já tenho um livro pronto, com o qual estou participando de dois concursos.” Abandonado, como? “Depois do diagnóstico, das cirurgias e das depressões — que me levaram a pensar em suicídio —, concluí que não cortaram só um pedaço da minha língua. Cortaram alguma coisa a mais em mim. Não consigo escrever poesia. A poesia é uma coisa muito limpa e gostosa, que sai de dentro de mim. É como se tivessem congelado a minha alma. O câncer extirpou a poesia do interior de minha alma.”

Mas seria uma perda momentânea, como a perda da memória? “Pode ser. Espero que seja.” Enquanto recarrega as baterias da alma, Aldair escreve contos que os amigos escritores consideram “muito bons”. “Não é uma literatura fortuita. Aldair sabe escrever. Mas sua área é realmente a poesia”, avalia um escritor.

Doutor, é câncer?

A história que está sendo contada aqui não o foi com amargura e pesares. Aldair riu algumas vezes e até fez piadas sobre o câncer, essa doença sorrateira que o escritor compara ao ladrão. “A experiência do câncer é tão violenta que o ato de falar sobre ela é até relaxante”, concede.

“Nunca imaginei que teria câncer. Um dia antes da defesa da minha dissertação de mestrado, estava escovando os dentes quando vomitei sangue. A pia ficou cheia de sangue. Fiquei apavorado, mas tentei me tranquilizar. Pensei: ‘A causa do problema deve ser porque já tive úlcera e estou tenso devido à defesa da dissertação’. Meus nervos estavam ligados 24 horas por dia na ‘tomada’, ou seja, na tese de mestrado. A calma durou pouco porque comecei a sentir pontadas agudas na língua. Fui ao Hospital Araújo Jorge sozinho e sem informar ninguém. O doutor Osmar Terêncio, uma beleza de médico, examinou a endoscopia. Ele explicou: ‘Tem varizes no esôfago. Uma delas estourou’. Antes de tratar as varizes, disse que era preciso olhar a laringe, que estava muito infeccionada. Fui encaminhado para o doutor Alexandre Robertt (‘com dois tês’, frisa o escritor, obsessivo). Fiz a laringoscopia”, conta o poeta.

Aldair estava rouco e tinha dificuldade para engolir os alimentos. “As pontadas da língua continuavam. Durante o exame, criei coragem e disse: ‘Já que está tudo anestesiado, levanta a minha língua e veja o que tem debaixo dela. Acho que o problema está aí. Assim, seguindo minha sugestão, o doutor Alexandre Robertt descobriu o câncer.”

Ao pegar o resultado do exame, Aldair preferiu cumprir as determinações médicas e não abriu o envelope. No consultório do médico, percebeu que alguma coisa estava errada. O médico estava tenso e parecia pensar numa saída para explicar qual era a verdadeira doença do escritor. “Para aliviar o clima, eu disse: ‘Doutor, o exame está aí, vamos abri-lo, ou não precisa?’ Ele disse: ‘Não precisa. Já estou informado do resultado’. Eu falei, baixinho: ‘É câncer mesmo, não é?’ Nós dois parecíamos acossados.”

Quando acabou o diálogo, “quase monólogo”, Aldair diz que ficou “meio assim, assim…” (faz cara de quem está triste). “Depois, passado o impacto inicial, a bofetada no rosto, disse para mim mesmo: ‘Seja o que Deus quiser'”. E pediu para o médico não contar para ninguém sobre o câncer.

Convidado para fazer um vigário no filme “A Enxada”, baseado na história de Bernardo Élis, Aldair já tinha dado o sim. Ele foi para Pirenópolis, onde ficou três dias — à espera de Lucélia Santos, a estrela do filme, que acabou não sendo liberada pelo SBT, pois estava fazendo uma novela. Depois, os produtores ligaram informando que as filmagens haviam sido transferidas para dezembro (de 1996). Como elas terminariam no dia 4, Aldair marcou sua cirurgia secreta para o dia 6. “Eu estava com todos os exames prontinhos. E ninguém sabia de nada — nem parentes, nem amigos. Desisti do filme, porque fui informado de que o câncer dobra de tamanho de 180 a 180 dias, e antecipei a cirurgia para o dia 2. Um dia antes dei uma palestra para dezenas de vestibulandos, na Universidade Católica de Goiás, sobre o livro de contos “Avarmas”, de Miguel Jorge. Ao término da conferência, fui para a casa da minha ex-mulher e, depois, para a casa da filha do primeiro casamento. E, finalmente, contei para a minha mulher e meus dois filhos sobre a operação que seria feita no dia seguinte, às 7 horas. Houve muito choro. Eu disse: ‘Preciso de apoio, não de choro’.”

Calvário e depressão

No dia 2, às 7 horas, os médicos começaram a cirurgia, na Santa Casa, em Goiânia. “Cortaram da orelha até aqui [Aldair mostra bem perto do queixo, um pouco abaixo]. Tiraram as glândulas do lado esquerdo e operaram a língua. Mais tarde, retiraram os pontos; os pontos da língua demoraram a cair. Alimentar e tomar remédio pelo nariz era um sacrifício. Doía muito. No segundo dia, eu disse para o médico: ‘Tire essa porcaria daí’. ‘Não tem jeito. Você precisa se alimentar e tomar os remédios’, explicou o especialista. ‘Eu tomo pela boca mesmo. Jogo na goela e empurro’. Os remédios eram horríveis, amargos. Depois que eu me alimentava, era obrigado a lavar a boca com Cepacol. Não sei quantos vidros de Cepacol eu gastei. Ainda hoje, já recuperado, tenho dificuldade para mastigar e engolir os alimentos. Por isso continuo tomando sopa.”

Você chorou alguma vez? “Nenhuma, cara. Mas fiquei deprimido, sim. Não vou negar”, admite Aldair. Seis meses depois da primeira cirurgia, o calvário de Aldair recomeçou. Novas pontadas, novas visitas ao médico. Nova cirurgia na língua, em julho de 1997. A biópsia do material que foi arrancado mostrou que estava tudo bem. “O sorriso do médico indicou que eu estava bem. Ele perguntou: ‘Quer ver o exame?’ Eu respondi: ‘Não. Já li o resultado nos seus olhos’. E nos abraçamos. O médico que trata de uma pessoa que tem câncer se torna um amigo e, mesmo, um cúmplice de nossas pequenas vitórias.” O câncer, tudo indica, está sob controle. “Mas preciso ficar atento. Às vezes, sinto alguma coisa. Não sei se é apenas impressão.”

Ladrão de vidas

Com as duas fitas gravadas, com conteúdo para no mínimo 10 páginas de jornal, os editores perceberam a primeira dificuldade. Não é fácil entender o que Aldair Aires diz. Ele fala bem, com frases precisas e linguagem quase nada adjetivada. Mas a voz é um tanto roufenha; no gravador, certos trechos viram o que chamamos na redação de “chiadeira”. Com atenção, conseguimos extrair as palavras desse poeta que foi um grande declamador. “Aldair era um dos melhores declamadores de Goiás e um ator muito bom”, testemunha o escritor Miguel Jorge, que participou de parte da entrevista. Ele ainda declama, mas sem a vibração anterior. Ele explica o motivo: “As duas cirurgias para arrancar o câncer seccionaram nervos. Com isso, a língua encolheu demais. Por causa dos medicamentos fortes, as obturações caíram, os dentes ficaram fracos e quebram com facilidade. Por isso, falo mais usando o diafragma”.

Por que Aldair enfrentou o câncer com bom humor, apesar da irritação? “Não adianta apavorar ou entrar em pânico. Isso não ajuda — só atrapalha o tratamento. Enfrentei o câncer com a cara e a coragem. Brinco, faço molecagem com a coisa [Aldair várias vezes chamou o câncer de coisa]. Alguns amigos dizem que falo da doença como se fosse uma espécie de coitadismo. Não se trata disso. Não há como ajudar alguém ficando calado. Só quem fala e age pode ajudar. O câncer é como o ladrão que invade a nossa casa e rouba as coisas mais preciosas. O câncer invade sorrateiramente o nosso corpo e, se a gente não acordar a tempo, não há mais jeito. Por isso eu faço o que posso para apoiar a Associação de Combate ao Câncer. O que adianta dizer-se humano se você não ajuda ninguém? Não vou me abater. Continuo escrevendo e publicando.”

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A tese que nasceu a fórceps

A história da dissertação de mestrado do professor Aldair da Silveira Aires contém elementos para uma tese de doutorado. Brincadeira à parte, não foi fácil para Aldair escrevê-la. A luta para concluí-la pode ser chamada de heroica.

Quem consulta “A Metalinguagem do Absurdo em Miguel Jorge” percebe que Aldair trafega (desliza talvez seja o termo apropriado) com grande facilidade pela obra do mais goiano dos autores nascidos no Mato Grosso. Ele colou no texto de Miguel Jorge, essencialmente nos contos, para se tornar íntimo de sua literatura, depois se distanciou e, assim, pôde fazer o julgamento crítico. Não se trata da crítica que, para construir, precisa demolir. São fragmentos de um discurso amoroso. Aldair é apaixonado pela obra do autor de “Veias e Vinhos”.

Em resumo, o mestre-poeta acredita que Miguel Jorge amplia a literatura do absurdo. Nos contos, ao menos, Miguel é uma espécie de filho de Ionesco e, mais, de Franz Kafka. Lembra, também, talvez levemente, a literatura “inominável” de Samuel Beckett, o irlandês que foi secretário de James Joyce. “Mas Miguel não é repetidor ou diluidor. Está entre os escritores-inventores.” Nesta reportagem, não se discute o conteúdo da tese de Aldair, mas a sua luta para terminá-la.

Quando foi aprovado para o mestrado na Universidade Federal de Goiás, Aldair pensou em mil temas, mas não se lembrou de Miguel Jorge. Quando, num dos cursos, dirigido pela professora Moema de Castro e Silva Olival ou pela professora Ana Maria, trabalhou um conto de Miguel, “Memórias de uma vaca bem-comportada”, Aldair diz que teve um estalo. “Liguei para o Miguel e disse: ‘Vou trabalhar seus contos na linha do absurdo’.”

Leituras em francês

Depois de ler toda a obra de Miguel Jorge — de “Antes do Túnel” aos livros mais recentes, como o belo romance “Nos Ombros do Cão” —, incluindo contos, poesias, teatro e romances, Aldair começou a trabalhar, de forma metódica, “Antes do Túnel”, “Urubanda” e “Avarmas”.

“Fui ligando o absurdo das histórias de Miguel Jorge e descobri coisas formidáveis. Por exemplo: muito do que está nos contos, de modo contido pelos limites do conto, aparece retrabalhado nos romances. Não necessariamente a história, mas o estilo de contar. Estudar a obra de Miguel é uma maravilha. Ele é uma mina de ouro inesgotável, como todo bom escritor. Mas fui abandonado pela minha ‘desorientadora’ e fiquei na chapada. Ela não me orientou em nada. Depois, fiquei doente e tive que colocar uma espécie de coleira no pescoço. Se eu tiver cachorro algum dia, prometo que não colocarei coleira nele. Fiquei com o pescoço duro e praticamente não podia olhar para baixo. Ler era difícil e escrever, impossível. Lia com um marca-texto na mão. Procurava trechos que caracterizavam, mais detalhadamente, o absurdo. Faltavam dois meses para eu ser jubilado e a ‘desorientadora’ havia se transferido de Goiânia.”

Durante o lançamento de um livro na Academia Goiana de Letras, Aldair viu o escritor e crítico José Fernandes, seu professor no mestrado, e pensou: “Vou lançar um desafio para esse cara. Se for louco como eu, vai topar”.

Depois de algumas “cervejinhas”, Aldair atacou: “Zé, minha situação é das mais difíceis. Eu preciso de um orientador. Faltam só dois meses para eu apresentar a minha tese e não tenho sequer orientador”. Ele perguntou: “O que você está trabalhando?”. Aldair explicou que estudava a metalinguagem do absurdo na obra de Miguel Jorge. “Que loucura. Se a universidade permitir, eu topo”, acedeu José Fernandes.

A UFG aceitou e Aldair produziu a primeira versão da tese. “Ficou uma porcaria”, teria dito o orientador. Não satisfeito com a bibliografia do pupilo, José Fernandes vasculhou as estantes e pegou mais de 10 livros, em francês e espanhol, e entregou-os para Aldair. “Da lista, só havia um em português.” Aldair voltou aos livros, meio assustado. Leu cuidadosamente, fazendo anotações e levou a segunda cópia para José Fernandes. “Melhorou mil por cento. Mas quero que você melhore 2 mil por cento”, frisou. O orientador tirou mais livros das estantes, o que apavorou Aldair: “Zé, eu não aguento mais ler”. Ele discordou: “Você precisa ler, sim. A teoria ilumina a leitura de uma obra”. Quando Aldair levou a terceira versão, tenso, passando as mãos pelos parcos cabelos e cofiando o rico bigode, José Fernandes leu e disse: “Pode depositar”. Aldair foi aprovado com nota 10. Um integrante da banca encrespou um pouco, mas depois confessou que não conhecia a obra do autor examinado, Miguel Jorge. 

3

Erotismo é a pedra no caminho

Poeta por excelência — daqueles que amam o erotismo e concordam com Apollinaire, quando este diz que a pornografia é o erotismo dos outros —, Aldair da Silveira Aires é bardo contido, que prefere publicar pouco mas bem. Percebe-se fácil a influência da poesia praxista e concretista, duas poesias inimigas mas primas. Aldair prefere dizer que a poesia concreta não apresenta grandes novidades.

“Os chineses já faziam isso séculos atrás. Daí o interesse de Ezra Pound, o pai americano dos concretistas brasileiros, pela literatura chinesa. Muito do que parece invenção é, na verdade, diluição de coisas bem antigas e, por isso, esquecidas. Por incrível que pareça, o moderno em literatura nem sempre está no nosso tempo. Há autores de hoje que estão reproduzindo velhos artifícios. Falta informação a muitos autores novos.” Ele repete que não é praxista nem concretista. “Fiquei fora dessas correntes. Por opção.”

Até a capa de “Os Nós de Nós em Nós” (Prêmio da Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos de 1996 na categoria poesia), na forma e no conteúdo, lembra a poesia concretista dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos. Aldair leu os Campos, Décio Pignatari e também o comandante-em-chefe do praxismo, o poeta Mário Chamie. “Mas reafirmo que minhas influências são anteriores.” Se a invenção desses poetas soa como datada, talvez por que a temporada de caça (para matá-los) aos versos acabou ou esteja acabando — os concretos se dizem pós-tudo, ou seja, não são mais concretos —, a poesia de Aldair ganha um elemento que a frieza dos paulistas raramente trabalha bem: o erotismo.

Na poesia de Aldair o erotismo é a pedra no caminho, não só no meio — também no início e no fim. Não é a pedra que atrapalha. É a pedra que faz brilhar. Se há alguma coisa gratuita, há bons achados (alguns nem eróticos, como os versos simples de “Quando você dorme a meu lado/a vida respira em mim”). Um poema sem título, cuja forma imita a serpente, tal como aquele poema célebre de Lewis Carroll (“Caça ao Turpente”), é interessante do ponto de vista formal e do conteúdo. A estrutura de um poema lembra e. e. cummings (aqui ele é publicado sem a forma original): “Dissolvo-me:/pássaro/peixe./Nada /e/voo/ nas/ florestas e/montanhas e/mergulhos/no lago/revolto de/seu corpo”.

O prefácio do livro, escrito pelo crítico e escritor José Fernandes, explica bem a poesia de Aldair, até o título da obra é esmiuçado. Mas importante mesmo é ler Aldair, seu livro se abre, como obra aberta, de diferentes modos para os leitores. Há uma certa preguiça na conclusão de alguns poemas. Talvez pressa. Mas, no geral, Aldair mostra-se um poeta de méritos. Vivo. Ativo. Sexuado, digamos.

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O homem das mil faces e 1º presidente do GEN

Aldair da Silveira Aires nasceu em janeiro de 1942, em Catalão, em plena Segunda Guerra Mundial. A iniciação literária começou lá mesmo. Formou-se em Letras na Universidade Federal de Goiás e deu aulas na Universidade Federal de Mato Grosso, no campus de Barra do Garças. Agora, devido à doença, está se aposentando. “A fala é meu instrumento de trabalho. Como tenho dificuldade para falar, é melhor me aposentar e dedicar-me à literatura”, diz.

Em Catalão, Aldair participou de um grupo literário incipiente que incluía o poeta Geraldo Coelho Vaz (atual presidente da UBE-GO), Naim Safatle, Roberto Aires e Bacalhau (“Bacalhau, de quem não me lembro o nome, trabalhou com Otavinho Arantes”). Adolescente, escreveu poesias e levou-as para sua paixão (não correspondida), a professora Labiba Fayad. “Ela leu e disse: ‘Seus poemas são bonitos, mas primeiro você tem de estudar a língua portuguesa. Há um monte de erros nos seus escritos’. Eu achei que estava abafando e acabei saindo da casa dela arrasado. Vermelho de vergonha, perguntei: ‘O que devo fazer?’ Ela orientou: ‘Estude latim’. Virei professor de português e literatura por causa de Labiba, que morreu no ano passado.”

Em Catalão, quando menino, Aldair conversou com Miguel Arraes. “Ele estava se escondendo na casa de um barbeiro comunista, o seu Bejo Moreira. Em Goiânia, liderei greves e quebrei ônibus, como integrante da União Goiana dos Estudantes Secundaristas (Uges). Quebrei o único cinema de Inhumas com paralelepípedos.”

Éramos seis

Aldair foi o primeiro presidente do Grupo de Escritores Novos, mais conhecido pela sigla GEN. Na Rua 7, no início da década de 60, um grupo de jovens escritores se reunia para discutir literatura. “Éramos seis — eu, Geraldo Coelho Vaz, Yêda Schmaltz, Edir Guerra Malagoni, Tancredo Araújo [o artista plástico] e Ciro Palmerston Muniz. O nosso objetivo era publicar um livro com o título de ‘Seis Janelas’, uma dica do Ático Villas Boas.”

As tertúlias literárias aconteciam no que Aldair chama de “apertamento” em que morava na Rua 7, no Centro de Goiânia. “A Yêda Schmaltz era bibliotecária e conseguiu um espaço maior no Sesc para sediar os nossos debates. Começamos a estudar literatura com seriedade e a sugerir novas formas de escrevê-la. Não digo tradição, mas o GEN significou um avanço para a literatura produzida em Goiás.”

Quem era o líder do GEN? Miguel Jorge interrompe: “Não existia um líder, um mestre. Trouxemos o Mário Chamie, de São Paulo. Mas a influência da poesia práxis ficou restrita a um pequeno grupo, no qual se destacavam Heleno Godoy e Luís Araújo. Talvez nem seja possível considerá-lo como um grupo. Chamie deu palestras. Todos aproveitaram o que a poesia práxis e o concretismo tinham de bom, que é a profunda valorização da poesia, de tradição como renovação. Mas nós mesmos funcionávamos como orientadores”. Quem era o mais brigão? “O Heleno, naturalmente [risos]. Eram brigas produtivas, mas duras, fortíssimas, instrutivas. Quando as reuniões acabavam, os ânimos se esfriavam”, conta Miguel.

Na época, Aldair não havia descoberto o conto. Só escrevia poesia. Miguel Jorge para a entrevista e dá seu depoimento: “Aldair era, então, um excelente declamador e ator”. Aldair começou a carreira de ator, aos 14 anos, com uma peça de Ariano Suassuna, “O Auto da Compadecida”. Isso ainda em Catalão. Em Goiânia, trabalhou com Otavinho Arantes, na histórica AGT, durante 15 anos. “Miguel participou de uma peça comigo, ‘O Diabo Outra Vez’. O teatro, para mim, é a forma suprema das artes. Ele reúne, a um só tempo, música, arquitetura, os cenários e a interpretação.”

Como ator, Aldair participou de várias peças, desde a década de 50. “Interpretei várias vezes ‘As Mãos de Eurídice’, de Pedro Bloch. Percorri o interior interpretando o monólogo. A aceitação era excelente. Eu não pensava em ganhar dinheiro.” Com Carlos Fernando Magalhães, Aldair trabalhou no Centro Popular de Cultura. “Fiz duas peças com ele. A última, ‘Um Mutirão em Novo Sol’, causou problemas para o governador Mauro Borges [que foi derrubado pelo governo do presidente Castello Branco]. Eu fazia um coronel autoritário, que explorava os trabalhadores. No Teatro de Emergência (que ficava onde hoje está localizado o Jóquei Clube), ficamos várias semanas. Em Jaraguá, fiz uma interpretação tão realista que acabei levando uma pedrada na cabeça. Tive que sair do hotel escoltado, mas não pude sequer ir à churrascaria.”

No cinema, Aldair fez o papel de um político em “As Tranças de Maria”, filme dirigido por Pedro Rovai. Antes, com patrocínio da Brahma, fez o filme “…A3…”. “Era, originalmente, uma peça produzida por três pessoas — por mim, pelo Pedro Batista e pelo Antônio Carlos Sabatini. Na época desse texto, criamos o Teatro Residência. A gente encenava as peças nas casas das pessoas. O dono da casa convidava os vizinhos e nós encenávamos as peças. A gente só pedia uísque e leite condensado para o Pedro Batista.” (Pedro Batista depois foi vereador e hoje integra o grupo político do deputado Luiz Bittencourt.)

Aldair diz que, dos escritores que escrevem teatro em Goiás, Miguel Jorge e Hugo Zorzetti são os que mais têm noção de tempo e espaço. “Isso em termos de teatro.” “‘O Visitante’, que foi interpretada por Marcos Fayad, é uma beleza. Dirigi ‘Putein’, um dos contos de ‘Avarmas’; é muito interessante. Apresentamos durante duas noites com o teatro lotado, na AGT. Na última noite, a Polícia Federal interditou a peça com o argumento de que era um atentado ao pudor. Putein é a história de uma ceia de mendigos. Ele é o chefe dos mendigos.”

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Margot Fonteyn  em Goiânia e a loucura sábia de Irapuan

No governo de Irapuan Costa Junior, de 1974 a 1978, Aldair Aires foi superintendente de Assuntos Culturais. “O Irapuan deu um grande incentivo à cultura”, afiança.

Aldair diz que Irapuan era um governador exigente. “Irapuan cobrava tanto de mim que eu estressei. Ele dizia: ‘O meu governo vai ser moldado na cultura’. Eu estava na repartição ou em casa e ele mandava me buscar. Eu ia ao Palácio ou à chácara do João Bênio e o governador ordenava: ‘Aqui está a passagem de avião. Amanhã você viaja para o Rio de Janeiro onde vai buscar informações sobre fundações culturais’.”

“Eu começava a dizer ‘Mas, governador’, … E era logo interrompido. Por causa da energia civilizatória do Irapuan, consegui trazer pessoas especializadas para criar o Arquivo Histórico de Goiás. Um especialista do Rio Grande do Sul ficou dois meses treinando nosso pessoal. Sem contar a Funarte, que enviou duas mulheres especializadas. Enviei gente para Belo Horizonte e Bahia. Irapuan nunca dizia não quando a questão era a cultura.”

Sílvio, um surdo-mudo competente na arte de restaurar documentos, foi enviado para o Arquivo Histórico Nacional. “Ele foi o melhor estagiário do Arquivo.” Depois, Marilda Godoy se especializou e tem carteira nacional de arquivista. “Por causa da especialização dos dois, conseguimos um laboratório inoxidável, próprio para restauração de documentos. Quando deixei o governo, roubaram o laboratório.”

A audácia maior de Irapuan foi trazer a grande dama do balé Margot Fonteyn para a reabertura do Teatro Goiânia. “O Cine Teatro Goiânia foi praticamente demolido, por dentro, e reconstruído, não mais como cinema e teatro, apenas como teatro. Irapuan me chamou e disse: ‘Quero comemorar os dois anos de meu governo com a abertura do Teatro Goiânia. Ele deve ser aberto com um grande espetáculo. Vá ao Rio de Janeiro e contrate a Orquestra Sinfônica Brasileira’. Fui para o Rio e encontrei-me com o maestro Isaac Karabtchevsky. Ele explicou que não podia inaugurar o teatro no dia 15 de março, como pretendia o governo, mas só no dia 20. Irapuan não aceitou. E disse, rápido: ‘Contrate Margot Fonteyn e Rudolf Nureyev’. conversei com Dalal Achcar e ela ligou para Londres à procura de Margot. Ela estava em Mônaco e, depois, em Paris. Ela topou, mas Nureyev tinha outros compromissos. Irapuan achou uma saída: ‘Diga para Margot escolher o partner ideal’. Ela escolheu o bailarino David Wall. Ele chegou às 12 horas do dia 15 de março e às 21 horas dançou no Teatro Goiânia. O teatro estava lotado e a apresentação foi comentada durante meses. Irapuan vencera. Foi uma loucura, um evento nacional bancado por Goiás.”

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“Livro de Dicke é maior do que Grande Sertão: Veredas”

Aldair Aires quase sempre é rápido nas respostas. Mas uma indagação ele demorou para responder. A pergunta: “Você coloca algum poeta goiano entre os grandes poetas brasileiros?” Sua explicação: “Poeta goiano? É difícil. Mas amo a poesia do Ciro Palmerston (autor de ‘Tempo Maior’ e ‘Do Elemento’). Gilberto Mendonça Teles é um poeta refinado, que maneja com mestria as palavras. Miguel Jorge, com ‘Os Frutos do Rio’, agradou os franceses, que leram numa tradução feita por mim. Yêda Schmaltz e Afonso Félix de Sousa são poetas poderosos. Em qualidade poética Goiás não perde para a produção de outros Estados. Muitas vezes, somos superiores. O nosso problema é a escassa divulgação em nível nacional”.

Em Mato Grosso — onde Aldair lecionou, no campus avançado de Barra do Garças —, “também há grandes escritores. O Ricardo Guilherme Dicke escreveu um dos maiores romances da literatura brasileira, ‘Madona dos Páramos’. Os intelectuais ficam perplexos quando digo que esse livro é superior a ‘Grande Sertão: Veredas’. A eles dou um conselho: leiam o romance e verifiquem por si mesmos. Guilherme mora em Cuiabá. É um gordão empapuçado, que fuma um cigarro atrás do outro. É neurótico, mas é uma beleza de gente. Marilza Ribeiro é outra autora fantástica”.

Qual é o livro mais bem realizado de Miguel Jorge? “Não digo o melhor, mas um livro de Miguel que me marcou muito foi ‘Urubanda’. Depois, ‘Avarmas’, pela técnica, pela elaboração do absurdo. Miguel é um mestre que trafega com excelência em tudo que escreve. O romance ‘Nos Ombros do Cão’ [que conta uma história passada na época da ditadura civil-militar] amplia, de certo modo, ‘Avarmas’. É um livro rico em imagens, metáforas, símbolos. Falar de um só livro de Miguel é difícil.”

Moura e Heleno Godoy

Sobre Heleno Godoy, Aldair é lacônico: “Ele foi meu professor no mestrado. É um mestre que respeito. Não admiro sua poesia praxista, embora reconheça seus méritos como experimentador literário. Seus livros ‘A Casa’ e ‘Trímeros’ são muito bons. ‘Trímeros’ é perfeito, é poesia de primeira. É uma obra séria e trabalhada com esmero”.

Antônio José de Moura, segundo Aldair, “pesquisa muito e está construindo uma literatura sólida. O romance ‘Umbra’ é uma beleza. Parece que às vezes Moura se perde talvez por causa do virtuosismo aparente da técnica”. Sobre Yêda Schmaltz: “É uma poeta de méritos. Sua volta aos mitos não foi inteiramente bem-sucedida. O mito deve ser aproveitado numa ou noutra situação, não sempre”.

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E o poeta foi morar no vento sul

Aidenor Aires

Viver muito dá nisto: somar perdas, ficar inchado de coisas que vão nos deixando pelo caminho. Raramente, os que morrem jovens, os preferidos dos deuses, contam as dolorosas aquisições modernas: diabetes, colesterol, depressão, Alzheimer, Parkinson, hipertensão etc etc. Morrer jovem é um ícone romântico que deixa hígida, festiva e futurosa a imagem do morto. Toda a vida que poderia ter sido. Todo o amor sorrindo. Todo o sonho de realização. Vejo em seus retratos o permanente sorriso celebrando a vida e a juventude. Não ocorre o mesmo com quem estendeu o dia solar da existência. Tem que enfrentar o meio-dia causticante, a tarde bochornosa, o crepúsculo opaco ou sangrante. Mais que tudo, as defecções, as fugas e a crescente solidão de ver seu grupo ir encolhendo a cada dia.

As perdas não se somam num buraco que afunda em nossas vidas. Elas têm rosto, são únicas. Cada uma dói sozinha. Não se confunde, nem se mistura. Sempre penso numa orquestra quando olho meus companheiros de jornada. Ela é a convergência compulsória de vontades individuais. Cada um quer executar seu instrumento, sua voz, sua parte na partitura, o momentâneo virtuosismo. Mas o maestro os reúne na grande voz da sinfonia. Se faltar um ou desafinar dói na melodia. No último dia 15 a poesia goiana se desafinou. Calou-se o poeta Aldair Aires que, apesar da quase homofonia do nome, não era meu parente. Talvez o fosse irmão pertencente à universal grei dos Aires, desembarcada em Catalão. Foram longos anos de amizade. Ele, com sua voz bem postada, de experimentado ator, repetindo, em chiste, a interjeição dolorosa inicial de meu nome: Ai! Ai!…denor. Depois, soltava uma gargalhada e me abraçava: – Como vai nego? Sua lembrança permeia uma geração que foi paradigmática em Goiás. Atuou no teatro, pertenceu ao Grupo de Escritores Novos, exerceu o magistério. Experimentou aventuras originais. Montou o restaurante Forno de Barro, onde transferiu a poesia para o fogão e a mesa. O saboroso e hoje universal peixe na telha, galinhadas esfuziantes e uma parede com autógrafos de artistas e celebridades que freqüentavam o restaurante. Desgarrou-se depois para a Bahia, para a Amazônia. Reaproximando de Goiás, encontrei-o em Barra do Garças, lecionando na universidade. Ali se aposentou, retornando a Goiânia, já com o incômodo da enfermidade que o torturaria até o fim. Sempre fiel à poesia, às amizades.

Com a voz mutilada por uma cirurgia, esforçou-se até conseguir recuperá-la e voltou a declamar. Estivemos em Bento Gonçalves, em várias cidades do Chile em 2006. Já tinha se mudado para Silvânia, onde encontrara sua Parsargada. Voltara a sorrir. Dedicava-se às atividades culturais, pesquisa de folclore, artesanato e montara sua “egoteca”, com as lembranças que reunira na vida. Dia 15, seu instrumento de alento desafinou. Temos que fazer outra orquestra. Cumpriu seu mister, como vaticinou num poema: “Catar cacos de palavras/ E ir juntando aos poucos/ O quebra-cabeça da vida: Eis o ofício do poeta/ Que desarvora/ A cada vento sul.”

Aidenor Aires é escritor.