Abecedário de Santo Agostinho: jornada pelos conceitos que moldaram a alma do Ocidente
06 dezembro 2025 às 21h00

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Ana Kelly Souto
Especial para o Jornal Opção
A partir desta semana, o Jornal Opção publicará, sob o título “O Abecedário de Santo Agostinho”, uma série de textos que percorrem o alfabeto de A a Z. Do Amor à Beleza, da Confissão ao Zelo, cada letra apresentará um conceito, com passagens breves de suas obras e reflexões aplicadas à vida cotidiana. Trata-se de um convite a redescobrir Agostinho de Hipona, filósofo, pastor e místico.
A de Amor
O amor é o começo de tudo, não é ideia nem sentimento, é o jeito que a alma tem de existir. Agostinho diria que amar é pôr as coisas no lugar certo, Deus no centro, o resto em volta. Quando o amor se desordena, o mundo perde o ritmo, quando ordenado, tudo volta a pulsar. Enfim o coração somente sossega quando volta para casa, e a casa é Deus.
Santo Agostinho (354–430), nascido em Tagaste — hoje norte da Argélia —, viveu num tempo de ruína e de recomeço: o império romano desmoronava, e uma nova ordem espiritual despontava.
Como descreve Adalbert Hamman, a África do Norte do século IV era um mosaico de culturas, romana, púnica e cristã, marcado por crises políticas, tensões sociais e o avanço dos povos chamados bárbaros. No colapso das antigas instituições, Agostinho buscou uma ordem que não fosse temporal, mas eterna, sua fé tornou-se o eixo de um pensamento capaz de transformar a fragilidade da história em caminho de transcendência. Isto é, com o desmoronamento das cidades, a alma é chamada a encontrar em Deus a única cidade que não cai.
Mais de mil e seiscentos anos depois, a voz de Agostinho ainda nos alcança. Vivemos, como ele, um tempo de ruína e de busca por sentido. Seu pensamento atravessou séculos, inspirando Tomás de Aquino, Heidegger, Hannah Arendt, Foucault e tantos outros, e continua a interpelar o homem contemporâneo que tenta conciliar liberdade, fé, pressa e sentido. Professor de retórica convertido em Milão e bispo de Hipona, deixou uma obra vastíssima — mais de mil textos entre tratados, homilias, cartas e comentários — que seguem como faróis para quem deseja compreender o humano em sua tensão entre o tempo e o eterno.

O convite é simples: ler Agostinho em pequenas doses, para pensar melhor a vida pública e a vida interior, a cada semana, uma letra, um conceito, uma pequena passagem de sua obra — um espelho do nosso tempo. Começaremos com o A de Amor, porque, para Agostinho, ordenar o amor é a medida de uma vida boa. Chamado de filósofo do amor, ele carregava o coração aceso nas mãos e a razão voltada para Deus, onde enfim encontrou repouso.
O que move nossas escolhas? A razão que calculamos ou a força invisível dos afetos? Para Agostinho, tudo nasce do amor. Desde menino, ele tinha vocação para o afeto, gostava pouco das leis e menos ainda dos números, que lhe pareciam frios demais. Preferia o calor da amizade, viveu intensamente, e viveu pelo amor. Nas Confissões, percebe-se que ele não entende a si mesmo nem o mundo sem essa força vital. Noemia Deus com diversos nomes, beleza, luz, verdade, mas o mais justo de todos é Deus é o amor. Por isso, organizou todo o seu pensamento em torno de uma pergunta simples e abissal, “O que é o amor?”.
Essa pergunta, que parece fácil, continua sendo a mais difícil de todas, porque todos amamos, mas cada um ama de um modo diferente. E talvez esteja aí o drama e a beleza da vida humana. Entre todos os bens esquecidos no mundo moderno, talvez seja o amor o primeiro que a espiritualidade agostiniana possa reavivar. O amor é o fio condutor, o princípio e o fim de tudo o que pulsa. Agostinho começa sua investigação por essa pergunta e talvez seja também um bom ponto de partida para nós, perdidos entre algoritmos, ruídos e ansiedades. Uma vez que o plano de Deus, é antes de tudo um plano de amor, capaz de reconstruir o homem fragmentado entre o medo e a pressa.

Desde o atentado às Torres Gêmeas fala-se em “nova ordem mundial”, mas as guerras continuam, os desequilíbrios aumentam e a humanidade parece girar em círculos. Santo Agostinho provavelmente responderia que o que falta não é uma nova ordem, mas uma nova medida de amor, sem amor, a história asfixia e com o amor, respira.
Para o bispo de Hipona, a história da salvação é o método de Deus para ensinar a amar, não é amor em conceito, é amor em movimento, o amor que cria, corrige e sustenta. É nesse gesto que o ser humano encontra o espelho do divino: Deus é amor, e o homem, quando ama, participa desse mesmo movimento criador. Se fomos feitos à imagem de Deus e Deus é amor, então somos também amáveis e capazes de amar, e esse amor não é solitário, é comunhão. Agostinho descobriu, na experiência pessoal e em sua busca interior, que amar é o modo mais alto de conhecer, “Assim como o Pai me amou, também eu vos amei. Permanecei no meu amor”, diz o Evangelho de João (15,9), o filósofo lia essas palavras como uma herança viva, fomos criados por amor, para o amor e no amor.
Nesse sentido a perfeição tende para o amor, quem deseja compreender até onde chega a misericórdia divina precisa aprender a amar, porque o amor é o único idioma que Deus fala fluentemente. Ele é misericordioso e perdoa, e, por isso, também nós podemos ser assim. Amar é mais do que poder, é necessidade e criação. Quanto ao homem não apenas pode amar, mas ele precisa amar. Desse modo o problema, não é amar, mas amar mal, amar o que não deve ser amado ou amar fora de medida.
O amor é a marca da Trindade dessa tríade em movimento o amante o pai, o amado, o filho e o amor o Espírito Santo impressa em nós. Assim o amor é relacional, sobe a Deus, volta-se a si mesmo e se estende ao próximo. “Se o ser criado é imagem de Deus”, escreve Agostinho, “então também se pode dizer que é amor.” Amar, para ele, é governar a criação com cuidado, libertar com ternura e ordenar com justiça. Assim, a frase “Deus é amor” (1Jo 4,8) não é metáfora, mas definição do próprio ser divino. O amor é a substância de Deus, a força pela qual Ele cria, sustenta e redime o mundo. É o princípio e o fim de tudo, causa, meio e destino, “Tu nos fizeste para Ti, e inquieto está o nosso coração enquanto não repousa em Ti” (Confissões, I,1). Essa inquietude nasce do amor pois o coração deseja o que o criou.
A alma humana é trinitária, memória, inteligência e vontade correspondem ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo — e é no amor que essas três potências se unem. “A alma humana está estruturada de modo que nunca deixa de lembrar-se, compreender-se e amar-se” (A Trindade, XIV,14,18). No plano ético, o amor é o critério de todo agir humano. Por isso Agostinho formula o conceito de ordem do amor (ordo amoris): a virtude consiste em amar cada coisa conforme o seu valor. “Viver bem é amar ordenadamente” (A Cidade de Deus, XV,22). Amar a Deus acima de tudo, o próximo como a si mesmo e as coisas segundo sua utilidade e verdade — eis a harmonia da alma. O pecado, ao contrário, é o amor desordenado (amor inordinatus), quando se ama o que é inferior como se fosse supremo.
O amor é também a força que organiza o mundo e distingue os caminhos humanos, duas cidades nascem de dois amores: a Cidade de Deus, do amor de Deus até o desprezo de si, e a Cidade dos Homens, do amor de si até o desprezo de Deus. O amor, portanto, não é apenas sentimento, é princípio de construção social e horizonte último da história. Embora nem todo amor seja igual, Agostinho não faz distinção essencial entre as palavras amor, caridade e dileção; todas podem ser boas ou más, conforme o objeto amado.
“Fizeste-nos para Ti, e inquieto está o nosso coração enquanto não repousa em Ti” (Confissões, I,1). Assim diz Agostinho — e assim digo eu. Sabe aquele desejo de comer algo que não se sabe o que é? Para ele, isso seria um sinal da insatisfação constante do homem. Vamos a um restaurante, amamos o sabor, e logo ele já não nos satisfaz. Dizemos: era tão bom, mas mudou. Mudou mesmo, ou o gosto primeiro se perdeu porque tudo o que é belo e prazeroso neste mundo se esgota? O hotel maravilhoso já não basta, o amor dos enamorados, quando vivido de perto, se cansa. E assim vamos passando de um desejo a outro, até compreender que só Deus é o sabor que não muda, o amor que não se consome.
Uma só alma e um só coração orientados para Deus: eis o ideal cristão e o carisma agostiniano que o papa Leão XIV é chamado a reavivar em nosso tempo. Em meio a um mundo fragmentado e apressado, esse carisma recorda que a verdadeira reforma da Igreja e do coração humano começa na comunhão. Agostinho, que se assinava “servo dos servos de Cristo”, nunca aspirou a títulos nem a poder; desejava apenas viver em fraternidade. A finalidade da vida é a comunhão: viver juntos, tendo Deus como centro. Não se trata de uma convivência superficial, mas de uma unidade que nasce do Espírito e refaz o tecido humano rasgado pela solidão. Permanecer em comunhão com o Pai, o Filho e o Espírito Santo é o modo mais alto de existir. Desde cedo, Agostinho compreendeu que a vida cristã é essencialmente comunitária. Isto é, uma busca contínua pela unidade, onde o amor não se diz apenas, mas se torna forma de vida. Nesse espírito, o papa Leão XIV é herdeiro e continuador de um chamado: fazer do mundo uma casa habitada pelo amor, onde cada coração, unido a outro, reflita o rosto de Deus.
Falar em amor pode parecer pueril, no entanto, se não for no amor, em que mais podemos confiar? Na razão? Ela já nos mostrou o quanto pode criar maravilhas… e também monstruosidades. Na guerra? Só o amor cura o que a força fere. O amor é a única perfeição que nos transporta. Quem observa o mundo com um mínimo de lucidez percebe: quando alguém alcança o cume do poder, do dinheiro, do prestígio, se ainda guarda um pouco de alma, sente o impulso de devolver, de repartir, de fazer o bem. É como se, ao tocar o limite de si, o ser humano intuísse o divino. Na cidade dos homens, esse gesto já é raro e belo; na Cidade de Deus, é plenitude. As almas razoáveis descobrem cedo ou tarde que a felicidade não está em possuir, mas em servir. Porque o amor, ao contrário do ouro e do tempo, não se gasta — multiplica-se.
Ana Kelly Souto, professora da PUC-Goiás, é doutora em Ciências da Religião. É colaboradora do Jornal Opção.
