A Música Como Encontro da Forma com o Trauma

27 dezembro 2020 às 00h00

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Entrevista com o compositor Paulo Guicheney, por Cristiano Pimenta
Especial para o Jornal Opção

O professor (Escola de Música e Artes Cênicas, UFG) e compositor goianiense Paulo Guicheney acaba de lançar, juntamente com a pianista Luciane Cardassi, um álbum de composições para piano, voz e música eletroacústica, intitulado “Mer” (o link para acesso ao album se encontra no final da entrevista). Luciane Cardassi, residente no Canadá, onde foram feitas as gravações em alta qualidade técnica, observou numa entrevista recente, que foi utilizada para as peças com eletroacústica e piano uma técnica de gravação chamada REAMP, pela qual a música que está no album resulta de uma gravação da propria música tocada em várias caixas acústicas de alta qualidade numa sala de também alta qualidade acústica. O resultado, segundo Luciane, “é uma coesão impressionante do piano com a eletrônica”.
Por outro lado, a entrevista que segue, deve-se dizer, tem um viés bem definido. Paulo Guicheney possui uma formação intelectual profundamente atravessada pelas elaborações de Freud e Lacan. Isso permitiu que as indagações colocadas por mim a ele abordassem sua música mais além da pura elaboração formal. A entrevista abaixo se revela, assim, como uma importante contribuição para o estudo dos fundamentos da composição musical na atualidade.
Cristiano Pimenta: Prof. Paulo, a primeira coisa que nos chama a atenção no álbum que você acaba de lançar em parceria com a pianista Luciane Cardassi é a capa, que é uma fotografia de sua própria autoria, onde nós vemos uma mulher que é uma mãe olhando no seu celular deixando o filhinho dela meio esquecido no carrinho de bebê. O título desse álbum se chama justamente, “Mer”, palavra francesa que significa “mar” mas que também remete a palavra “mãe” em francês “Mère”, que é homófona ao título. Qual é a relação dessa fotografia que compõe a capa, juntamente com o título, com as obras musicais que se encontram nesse álbum?
Paulo Guicheney: “Mer” é o título de uma das peças do álbum e acabou sendo também o título do álbum. Isso é uma referência ao livro O amante de Marguerite Duras, no qual encontramos uma utilização desse significante que, em francês, é homófono à palavra mãe. Duras faz nesse livro uma associação muito interessante do mar, isso que é completamente incontrolável e ao mesmo tempo fascinante, com a história que ela tem com a mãe dela, ou pelo menos a personagem tem com a mãe, uma história terrível. Eu achei que era um título apropriado para a peça e também para o álbum que inclui outras peças além dessa.
Cristiano Pimenta: Como você vê a relação da música propriamente dita com os nomes que essa música recebe? Além de “Mer” – que é composta por 7 movimentos, sendo que cada uma recebe um título poético, por assim dizer – encontramos no álbum “afloat”, “ILUMINURAS I. A silent fjord” e “A floresta de ossos”. Dito de outro modo, essas músicas que encontramos poderiam existir sem esses nomes?
Paulo Guicheney: Não, não poderiam. Porque quando eu inicio meu processo de composição a primeira coisa que me vem é o título da composição, e só depois vem uma ideia musical. Já tem sido assim para mim há um bom tempo. Então essas peças não seriam o que elas são sem os títulos. Me agrada muito a ideia de que minha obra se refere a outras obras e toda essa conexão metafórica, metonímica que existe entre a composição seja com o título, seja com uma obra literária ou com imagens. Inclusive a capa do álbum é isso também, essa mãe displicente com o filho.
Cristiano Pimenta: Então poderíamos dizer que, tomando o caso da música “Mer”, ela tem uma relação com aquilo que você vivenciou e experimentou na obra de Duras, “O amante”? E, mais ainda, sua música teria ecos, igualmente, vindos da sua relação com sua própria mãe?
Paulo Guicheney: Com toda certeza alguma relação tem (risos). Por outro lado, eu não sei a importância que isso teria na percepção da peça, mas que existe relação existe. Poderia dizer que em tudo o que eu componho há algo de autobiográfico. Toda minha obra é assim. Agora, como isso chega para quem recebe a peça, para quem a escuta, eu não sei se é importante ou relevante.
Cristiano Pimenta: Por outro lado, a referência na sua obra não é somente à mãe, pois encontramos também a referência à mulher, como na peça “A floresta de ossos” que se inicia com a personagem dizendo que uma mulher entra numa floresta de ossos e nela se perde. Então estamos entre a mãe e a mulher?
Paulo Guicheney: É um álbum sobre o feminino. Eu o vejo assim, porque você tem uma mãe na capa; tem esse título com uma palavra que se refere tanto a mar quanto a mãe; a primeira obra é o texto de uma mulher, a Margueritte Duras; a segunda obra trás um texto de outra autora, Sylvia Plath; tem uma pianista que executa todas as peças, a Luciane, e você tem a voz dela em três dessas peças. Então as referências à mulher e ao feminino são enormes. Acho que todo o disco é permeado por isso, por algo que no feminino é inexplicável, algo que, como o trecho que você citou de “A floresta de ossos”, se perde, se vai, se esvai.
Cristiano Pimenta: Sim. Então você acha que podemos pensar que a forma como você constrói a sonoridade de cada música, o sentido musical, a forma como, digamos, o som acontece em cada peça, está ligada à experiência com o feminino, à experiência com uma mulher?
Paulo Guicheney: Eu não tenho dúvida. Provavelmente devo ter me tornado compositor por causa disso.
Cristiano Pimenta: E me pareceu que nesse nível da forma musical nós encontramos os sons, os acordes, os “clusters”, nos quais a sonoridade faz um movimento de se esparramar numa continuidade que tende a romper os limites do som, em direção aos harmônicos, aos ruídos, aos sussurros, quem sabe em direção ao infinito nesse movimento de continuidade. Inclusive há uma peça em “Mer” cujo título se refere a um para além da forma, “La mer, sans forme, simplement incomparable”.
Paulo Guicheney: Me agrada a ideia de que o som tem uma vida que é própria. Pode parecer absurda essa ideia de que um compositor é alguém que faz um registro, uma espécie de fotografia disso que é “sans forme”, como se o som fosse livre na Terra, no nosso mundo. Mas me agrada esta ideia.
Cristiano Pimenta: Por outro lado, esse som não seria tão livre assim na medida em que a sua construção musical visa traduzir essa experiência da relação possível e impossível com uma mulher.
Paulo Guicheney: Certamente que a relação com uma mulher é algo de uma complexidade sem fim, é completamente imprevisível.
Cristiano Pimenta: Mas a sua música não diz algo disso, não é daí que ela se alimenta?
Paulo Guicheney: Espero que sim, espero que ela fale sobre isso. Por outro lado, penso que minha música se alimenta basicamente de duas coisas, e existe uma dialética nisso. Uma parte é o que eu falei a respeito do título do meu álbum, ou seja, há algo que me arrebata nesse nível, pode ser um significante, uma imagem, uma lembrança. A outra coisa é algo que é puramente sonoro. E é a junção entre esses dois mundos que faz com que minha composição nasça.
Cristiano Pimenta: Sim, então o puramente sonoro não se sustentaria na medida em que as peças necessitam do sentido que esses títulos rementem.
Paulo Guicheney: Não existe o puramente sonoro na percepção de uma obra. Há algo aí que é interessante. O músico que foi o meu professor, Estércio Marques Cunha, cria títulos que tentam não remeter a nada. Por exemplo, as peças para piano eram “música para piano número x”. E ele já deve ter “música para piano número 99”, pois compõe muito. Isso era motivo de discussão entre nós porque ele acredita que você tem uma experiência “per se” com o que é sonoro. Isto me parece ser uma negação do título, é como se se dissesse “não associe a música com nada”. Eu não vejo isto como coisa possível.
Cristiano Pimenta: Isso nos remente a uma questão importante: qual é a sua referencia sonora, qual o som que você está buscando quando você constrói seus acordes, quando você concatena todos os sons que entram na sua música? Tem um compositor que é referência?
Paulo Guicheney: Me parece que a resposta mais simples a essa pergunta seria dizer que minha referência é a música que de alguma maneira me traumatiza, ou já traumatizou. Aí há “n” compositores clássicos, a música japonesa, etc. Por outro lado, há a resposta mais difícil, a referência talvez fosse a ideia da criação de um som que desse algum sentido para minha própria vida. Esta seria a resposta mais difícil.
Cristiano Pimenta: Se sua música não tem a pretensão de ser uma música pura, que pudesse ser nomeada por números, então poderíamos dizer que ela seja também uma tradução das experiências traumáticas da sua intimidade, do encontro com uma mulher e até mesmo o encontro com a mãe, pois esta é a primeira mulher na vida de um homem? Penso aqui na sonoridade que você cria em que os sons parecem que, se assim posso dizer, se esparramam numa duração que tende a ir até o limite do que os instrumentos podem ir, de modo que a sua música vai ganhando uma consistência mais na continuidade dos sons que vão se esparramando como água do que uma música que tenha característica rítmica predominante. Como você vê esse meu comentário?
Paulo Guicheney: Eu não tenho a menor dúvida de que quando eu componho há uma tentativa de lidar com eventos traumáticos e é isso que faz de mim um criador. Acho que sou habitado por algo inominável – de maneira geral acho que todas as pessoas o são, ainda que elas possam não saber disso, mas eu sei. Há algo inominável dentro de mim. E uma possibilidade de lidar com isso, ainda com muita dificuldade, é através da composição. Partindo do princípio que eu falo de algo que é traumático, seja a relação com a mãe – toda relação com a mãe é algo traumático –, seja a relação com uma mulher.
Cristiano Pimenta: Sim, é bom não esquecermos que a mãe é também uma mulher, a primeira mulher.
Paulo Guicheney: Com certeza. Eu não concebo que uma composição que trate de coisas que são tão profundas e que nos estruturam e nos fazem ser quem nós somos, possa ser óbvia. Então, isso que surge nesse nível não pode ser tão claro e tão óbvio. É necessário um tipo de movimento, e talvez essa referência ao mar diga respeito a algo que me é muito nebuloso. Certamente isso me orienta na estruturação da minha música, quando eu a crio, quando eu intento um determinado tipo de som.