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Marcio Fernandes

Especial para o Jornal Opção

Ponte de Lima é uma vila de Portugal fundada no século 12, mas sua história civilizatória retrocede ao primeiro centenário da era cristã por estar na rota da Via Romana XIX, estrada que ligava Braga (Portugal) a Astorga (Espanha), construída por ordem do imperador Augusto. O maior testemunho desta extraordinária obra ainda em uso é a majestosa ponte erguida em arcos com 500 metros de vão.

Ponte erguida em arcos com 500 metros de vão Foto de Marcio Fernandes 2025
Ponte erguida em arcos com 500 metros de vão | Foto: Marcio Fernandes/2025

Eu já havia passado por lá duas vezes ao fazer a pé o Caminho Português de Santiago e guardava a impressão de uma vila de temperamento manso e calmo de quatro mil habitantes situada na margem sul do Rio Lima. Desta vez, voltei ao lugar para participar dos festejos das Feiras Novas do Alto Minho. Simplesmente havia alguma coisa próxima de 30 mil pessoas a ocupar as ruelas sinuosas do vilarejo. A festa, com duração de cinco dias, consagra a celebração de Nossa Senhora das Dores e se constitui na maior romaria minhota de Portugal. No calendário, além dos serviços religiosos, ocorre uma enorme manifestação dos valores culturais do norte de Portugal com inúmeras apresentações musicais, folclóricas e gastronômicas.

Festejos em Ponte de Lima vila de Portugal
Festejos em Ponte de Lima, vila de Portugal | Foto: Marcio Fernandes/2025

No sábado, 13, estava reservada a passagem do cortejo de bandas e carros alegóricos com todos os passistas a ostentar os sofisticados trajes típicos do Minho. Homens, mulheres e crianças, com muita honra desfilam a representar especialmente as tradições rurais centenárias como a vindima, o debulhar do milho, a moagem do trigo, o pastoreiro, bem como lavadeiras, rendeiras e uma infinidade de manifestações da realidade socioeconômica da região.

Consagrada Patrimônio Cultural Imaterial de Portugal, as Feiras Novas são um evento de impressionante sofisticação musical com emprego de instrumentos que vão da percussão ao acordeão, passando pela clarineta e o violino. Os carros alegóricos não têm nada da ostentação do Carnaval do Rio de Janeiro. Ao contrário, são extremamente simples e arranjados sobre pequenos caminhões, tratores e trazem toda simplicidade dos ornamentos do meio rural. A organização da festa é tamanha que os banheiros instalados são muito limpos e contam com espaço reservado para a lavagem das mãos.

Festa de Ponte de Lima disputadíssima Foto Marcio Fernandes 2025
Disputadíssima, festa consagra a celebração de Nossa Senhora das Dores | Foto: Marcio Fernandes/2025

A multidão emocionada se aglomera nas calçadas, a maioria sentada em bancos vendidos a 4 euros, a acompanhar o cortejo sob um entusiasmo absolutamente ordeiro e devotado. Não se vê drogados nem confusão entre os festeiros. Bonecos gigantes puxam uma das colunas do cortejo e são celebrados como se tivessem vida própria no imaginário popular.

As margens do Rio Lima são cobertas de barracas a vender produtos alimentícios típicos do Minho, mas prevalece mesmo uma quantidade imensa de artigos de vestuário, em um templo de produtos falsificados de marcas famosas da Europa e dos Estados Unidos. Os mercadores anunciam as suas ofertas em voz alta, em espécie de canto incompreensível para atrair os festeiros em busca de mercadorias baratas. Nada que desnature a originalidade da festa com seus componentes religioso e profano.

Tradição do Minho influencia bonecos de Olinda

Ao observar os costumes e a gastronomia minhotas ressalta o quanto a cultura popular brasileira, especialmente a nordestina, é derivada de Portugal. Vem do Minho a tradição dos bonecos de Olinda (Pernambuco). O duelo poético improvisado dos repentistas do Nordeste também tem origem por aqui com o nome de desgarrada. Na mesa é a mesma coisa: o feijão tropeiro é chamado de migas de feijão, a galinhada se assemelha muito ao arroz de cabidela, o baião de dois tem correspondência com extraordinário arroz de feijão e por aí vai. Só o vinho nacional que não há como comparar com as preciosidades da vinicultura portuguesa, assim como a porcaria do pão brasileiro que não chega aos pés do aroma, da textura e do sabor da tradição lusitana de panificação.

José Antônio Corrêa Foto de Marcio Fernandes 2025
José Antônio Corrêa: pão do Minho é de alta qualidade | Foto: Marcio Fernandes/2025

Eu tive oportunidade de conversar com o senhor José Antônio Corrêa, 66 anos, um limarense raiz, em uma minúscula padaria que exalava um cheiro fresco e perfumado de centeio, trigo e milho. Ele conta com os olhos cheios d’água que abriu o negócio desde a morte de sua mãe, em 2001, no mesmo lugar em que nasceu. O comerciante se lembra da serraria (sarração em português local) que pertenceu à família, bem como o quanto era gostoso o tempo em que o porco era criado, abatido e tinha cada parte do animal tratada para sustentar a casa durante o prolongado e rigoroso inverno de Ponte de Lima.

Bonecos do Minho Foto Marcio Fernandes
Bonecos da festa das Feiras Novas | Foto: Marcio Fernandes/2025

Eu havia atravessado a ponte romana em perseguição de quatro peregrinas espanholas que faziam o Caminho de Santiago só para trazer de volta, em poucos segundos, as sensações maravilhosas que tive em busca de Compostela. Do nada, sai da porta da Igreja de Santo Antônio da Torre Velha o féretro, possivelmente de um militar de alta patente, em solene ritual com destino à morada eterna. Foi particularmente chocante observar os prantos dos familiares, amigos e colegas de farda em meio ao regozijo da festa. Esta é uma dor que me espera, pois meu pai tem 88 anos e estou a caminho do formidável enterro da minha última quimera, como mais ou menos escreveu Augusto dos Anjos.

Depois segui em busca do cortejo que se anunciava com o rufar estridente dos tambores e encontro uma livraria aberta na qual não havia vendedor. Você simplesmente escolhe o exemplar e deposita o valor indicado em uma caixa de madeira, sob a supervisão da escultura de Dom Quixote. Algo impensável para o Brasil repleto de crime organizado e desorganizado sob o comando de malandros de todo gênero. Em seguida, me deparei com grupo de ciganas embriagadas em uma saliência que destoava da natureza da festa.

Rua do Arrabalde em Portugal 1
Rua do Arrabalde de São João de Fora | Foto: Marcio Fernandes/2025

Ao final, atravessei a multidão em direção da Rua do Arrebalde de São João de Fora em busca do ângulo ideal para fotografar os bonecos gigantes no final do cortejo. Gostei tanto do nome do logradouro público que decidi morar por lá, ainda que seja na minha pobre imaginação de sem-teto no Alto Minho.

Marcio Fernandes, jornalista, é colaborador do Jornal Opção.