A Força das Ideias na História: Tolstói, Jung e as Relações Internacionais
29 agosto 2025 às 09h46

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Gismair Martins Teixeira e Letícia Martins Lima*
Especial para o Jornal Opção
Um dos nomes mais aclamados da literatura universal, praticamente uma unanimidade, é o russo Leon Tolstói. A sua dimensão literária pode ser medida tanto pelo conjunto da sua obra quanto por um de seus romances mais célebres, o extenso “Guerra e Paz”, um calhamaço de quase duas mil páginas que narra as incursões guerreiras de Napoleão Bonaparte pelo interior da Rússia oitocentista.
Após mobilizar várias e várias centenas de personagens no teatro bélico retratado por sua narrativa, Tolstói interrompe o fluxo magistralmente sustentado pelas suas mais de mil páginas para trazer uma conclusão que contempla de forma excepcional o gênero ensaístico em sua formatação breve. No fecho de seu romance, o gênio russo aborda a disciplina da história, trazendo uma visada original para esta disciplina que na contemporaneidade representa importante papel acadêmico.
Em seu ensaio de natureza histórico-filosófico, o autor de “Guerra e Paz” critica a visão tradicional dos historiadores de relacionarem visceralmente o desenrolar dos fatos históricos a individualidades que os teriam posto em movimento. Não que a história não seja marcada por personagens carismáticas nos mais diversos campos, mas haveria um certo exagero em atribuir-se a este ou aquele nome de maneira totalmente determinante a ocorrência de cadeias de acontecimentos registrados na escrita historiográfica.
Segundo Leon Tolstói, os acontecimentos magnos da historiografia se prendem mais a uma ebulição, por assim dizer, de ideias que empolgam de maneira subconsciente o espírito das massas que, aí sim, encontraria em determinados indivíduos a sua oportunidade de materialização em atos substanciais a definirem o momento histórico. Na visão de Tolstói, portanto, a história redundaria da soma de infinitas vontades individuais que se juntam para a transformação coletiva das massas.
Considerando-se que a vida é um fenômeno que se manifesta do indivíduo à coletividade, que muitas vezes apresentam uma dinâmica psíquica bastante semelhante entre si, é de supor-se que Leon Tolstói tenha chegado a essas ilações em virtude de uma prevenção, aqui entendida como antipatia mesmo, pelo guerreiro francês Napoleão Bonaparte, ao mesmo tempo em que pode ter derivado de intensa reflexão em torno das palavras de outro francês, o escritor Victor Hugo, a quem é atribuída a paráfrase de que nenhum exército é mais poderoso do que uma ideia cujo tempo é chegado.
Diversas passagens de “Guerra e Paz” sustentam esta perspectiva, pois em vários momentos da extensa narrativa o autor apresenta um Napoleão bastante preocupado em jogos teatrais de aparência e presunção quanto a sua própria genialidade militar em estratégias. Publicado em 1867, “Guerra e Paz” dialoga de maneira transversal não só com o pensamento hugoano, mas também com o conceito que será formulado no âmbito da psicologia coletiva pelo psicólogo suíço Carl Gustav Jung em seu livro de 1959, “Os Arquétipos e O Inconsciente Coletivo”, onde desdobra o conceito formulado em ensaio de 1916, a que denominou “A Estrutura do Inconsciente”.
Definível nos escritos junguianos como “camadas mais profundas do inconsciente formadas por instintos e arquétipos, imagens primordiais que pertencem à humanidade como um todo e que são herdadas de nossos antepassados”, o inconsciente coletivo, em sua conceituação, mostra-se como um plausível desdobramento do que Tolstói apresenta no final de “Guerra e Paz” em relação à gênese desse estranho e onipresente fenômeno da guerra na saga da humanidade sobre este torrão cósmico batizado de Terra.
No texto que constrói em torno da vontade das massas e sua transferência para indivíduos, escreve Leon Tolstói em “Guerra e Paz” em tom questionador: “Durante as revoluções palacianas, nas quais participam por vezes duas ou três pessoas, a vontade das massas transfere-se também para uma nova personagem? Nas relações internacionais, a vontade das massas do povo transfere-se para o seu conquistador? Em 1808, a vontade da Liga do Reno foi transferida para Napoleão. A vontade das massas havia-se transferido para Napoleão em 1809, quando as tropas russas, aliadas aos franceses, iam bater-se contra a Áustria?”
Nesta alocução sobre o processo psíquico de transferência da vontade das massas para um indivíduo específico, Leon Tolstói menciona uma locução nominativa que mais tarde se transformaria em disciplina acadêmica, justamente por conta da sanha guerreira logo no início do século 20, quando a Primeira Grande Guerra vai dar surgimento à disciplina acadêmica que vai receber o nome de Relações Internacionais, muito por conta da necessidade de institucionalizar-se o estudo em torno da geopolítica e diplomacia mundiais em sua expressão multidisciplinar com a finalidade de que conflitos como o vivido pela humanidade no começo do século passado fossem evitados.
Conforme a história registra, os esforços não tiveram a eficiência almejada de início, pois em 1939 o mundo entraria novamente em um conflito armado de proporções globais; no entanto, a necessidade de buscar compreender o fenômeno da guerra para tentar minorá-lo e/ou suprimi-lo permanece como uma necessidade incontornável, sobretudo nos conturbados dias da atualidade, quando a polarização geopolítica se intensifica através dos principais atores mundiais da geopolítica, esgarçando-se por seus satélites ideológicos.
Captar no ar a possibilidade teórica daquilo que viria a tornar-se estudo acadêmico um pouco mais tarde, após o hercúleo esforço intelectual de mobilizar um sem número de personagens em diversos espaços da gigantesca Rússia, só referenda a dimensão desse notável gênio das letras. Não é aleatório, portanto, que escritores canônicos como Thomas Mann viam em Leon Tolstói um gênio da raça, dotado de uma finíssima sensibilidade psicológica, uma visão ampla da vida, além de um raro cultor da linguagem estética em sua mais ampla manifestação.
*GISMAIR MARTINS TEIXEIRA é Doutor em Letras pela UFG com Pós-Doutorado em Ciências da Religião pela PUC-GO; professor e pesquisador.
LETÍCIA MARTINS LIMA é Bacharela e Mestranda em Ciência Política e Relações Internacionais pela Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás.
