“A décima quarta estação”, a primeira ópera goiana, de Miguel Jorge e Estércio Marquez

16 julho 2023 às 00h01

COMPARTILHAR
Rafaela Duarte
A ópera é um gênero do teatro onde o protagonismo é o canto. Esse estilo teatral nasceu em Florença durante a apresentação de uma tragédia grega realizada de forma recitativa em uma declamação que se aproximava do canto. No Brasil as primeiras apresentações de ópera chegaram com a colonização portuguesa e é costume citar “A Noite de São João” de José de Alencar com música de Elias Álvares Lobo como a primeira ópera de produção brasileira que aconteceu no ano de 1860. A primeira ópera de produção goiana aconteceu em 2019, intitulada “A décima quarta estação” com música do compositor goiano Estércio Marquez e libreto do poeta, teatrólogo, romancista e contista Miguel Jorge, baseado no conto homônimo de seu livro “Avarmas”.
Miguel Jorge possui formação em Farmácia e Bioquímica pela Universidade Federal de Minas Gerais, e em Direito e Letras Vernáculas pela Universidade Católica de Goiás. Atuou como professor em ambas as áreas. Além da ópera, é autor de diversos contos, ensaio biográfico, romances, livros de poesia, peças de teatro e novela infanto-juvenil, onde se destacam as obras: “Ana Pedro”, “Veias e Vinhos” e “Pão cozido debaixo de Brasa”. Também foi um dos fundadores do Grupo de Escritores Novos (GEN), que presidiu por dois períodos; também foi presidente por dois mandatos da União Brasileira de Escritores, Seção de Goiás; dirigiu, em duas ocasiões, o Conselho Estadual de Cultura e integra os quadros das Associações Brasileira e Internacional de Críticos de Arte.

Além de ser um escritor versátil, também possui experiência no cinema, elaborou o roteiro do curta-metragem “Watáu”, que foi filmado às margens do rio Araguaia, sob a direção de Débora Torres e recebeu o Prêmio de Incentivo Cultural do Ministério da Cultura. Possui um projeto de sete roteiros de curta-metragem, intitulado “Linguagem Nova”, aprovado pela Lei Goyazes, da Agência Goiana de Cultura. Dentre eles já foram gravados: “A Janela”, sob a direção de Pedro Diniz, com atuação de Marcela Moura, Flávio Miguel e André Pimenta, e “Promessa”, sob a direção de Gel Mess e Ângela Torres, tendo Mauri de Castro como protagonista. Também escreveu com João Batista de Andrade o roteiro do filme “Veias e Vinhos”, baseado no seu romance homônimo. O filme foi gravado em São Paulo, em abril e maio de 2004, e lançado em 2006, tendo em seu elenco os atores: Leonardo Vieira, Simone Spoladore, Eva Wilma, José Dummont, Celso Frateschi, Kaio Pezzutti, Marcela Moura, Mauri de Castro e Ailton Graça, com a direção de João Batista de Andrade. Miguel também foi o idealizador do FestCine Goiânia, e muitos de seus escritos sobre artes visuais foram publicados no livro “Da Caverna ao Museu: Dicionário das Artes Plásticas em Goiás”, de Amaury Menezes.
O escritor também foi muito premiado e homenageado pelos seus trabalhos, como o Prêmio ABCA para o romance “Veias e Vinhos”, Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional, para o romance “Pão Cozido Debaixo de Brasa”, 2º Prêmio Centro Oeste da FUNARTE com a peça de teatro “Matilda” e o Prêmio Machado de Assis, concedido pela UBE do Rio de Janeiro, para a obra “Minha Querida Beirute”. E neste ano de 2023 está sendo celebrado o ano cultural Miguel Jorge, uma homenagem da Academia Goiana de Letras.

A ópera “A décima quarta estação” aconteceu nos dias 1 e 2 de outubro de 2019, na abertura das comemorações do aniversário de 86 anos da capital Goiânia, e sua gravação foi apresentada posteriormente no evento: Semana de 22, 100 anos depois, realizado na UBE de Goiás. A concepção da primeira ópera de produção genuinamente goiana foi um grande marco cultural para o estado. O conto do qual proveio o libreto é baseado em uma história real ocorrida em Catalão na década de 1930. O personagem principal, Antero da Costa Carvalho, foi um farmacêutico com aspirações humanitárias e políticas da cidade de Catalão, ele foi preso e morto após ter sido acusado de ser mandante do assassinato de Albino Felipe, um rico fazendeiro da região, pelo coronel Rufino, que tinha inveja da popularidade de Antero. Apesar de ser benquisto entre os locais, por não cobrar tratamentos e medicações das pessoas mais necessitadas, Antero foi tirado da prisão por jagunços e populares da cidade e posteriormente arrastado e linchado pelas ruas onde acabou morrendo. O arrastar de Antero pelas ruas lembrou a Miguel Jorge a via Sacra de Jesus Cristo e em função dessa semelhança, o conto foi escrito com o título: “A décima quarta estação”.
Devido a forma que Antero morreu, muitas pessoas que foram favorecidas por sua generosidade e acreditavam em sua inocência passaram a lhe atribuir acontecimentos sobrenaturais, e construíram uma capela no local de sua morte, fazendo com que ele começasse a ser parte da história e memória de Catalão, sendo considerado por muitos um santo popular. A história de Antero está diretamente ligada com o forte coronelismo presente no estado, em uma cidade considerada uma terra sem lei àquela época. O conto retratado traz à tona importantes temas da cultura goiana, como a religiosidade, a tradição e o coronelismo.
A transposição do conto em ópera foi uma ideia que nasceu em 2013 com a professora e, até então, presidente do Conselho Estadual de Cultura, Annunziata Spencieri de Oliveira, que sugeriu a realização de uma ópera baseada no conto. No entanto a apresentação teve de superar muitos desafios antes de sua estreia, sendo o maior deles a falta de financiamento, pois a obra contou com uma equipe de mais de 100 pessoas. A apresentação só foi possível após conseguir o apoio da Lei Goyazes além de outras parcerias, públicas e privadas.
A ópera traz uma abordagem contemporânea sobre um tema tradicional de forma inovadora. Explorando elementos artísticos e estéticos recentes para apresentar essa narrativa. Toda a equipe por trás da produção buscou trazer uma abordagem nova ao retratar os eventos da história. A música, composta por Estércio Marquez, apresenta uma fusão de estilos musicais que mescla elementos clássicos e contemporâneos, criando uma trilha sonora única e envolvente com um fluir rítmico-sonoro que contorna a ação teatral e a recitação dos personagens. O libreto de Miguel Jorge, oferece uma visão atualizada dos temas presentes na história. Da mesma forma o maestro Elizeu Ferreira, o diretor de cena Jonatas Tavares, a coreógrafa Luciana Caetano e a regente de coro Katarine Araújo, a partir de suas experiências, produziram essa obra moderna que busca trazer uma nova perspectiva para um tema tradicional, conectando o passado com o presente e proporcionando uma vivência artística relevante para o público contemporâneo. A encenação da ópera também segue uma abordagem moderna, incorporando elementos visuais impactantes e inovadores. O cenário, os figurinos e a iluminação são projetados para criar uma atmosfera única que complementa a narrativa e mergulha o público na história de Antero. Através de diálogos e letras de música cuidadosamente elaborados, a ópera explora as questões contemporâneas que ainda ecoam nas sociedades, como justiça, poder e a luta contra o abuso de autoridades.
Rafaela Duarte é mestranda em Sociologia e Humanidades pela UEG.