A circularidade histórico/literária de Salatiel Correia

23 agosto 2025 às 21h00

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Eurípedes Leôncio
Especial para o Jornal Opção
Cultura é reunião de padrões, de identidade de uma cidade, estado, ou de um país, onde a somatória de valores étnicos, sociais, históricos, artísticos estão vinculados a sua formação de vida. Sendo assim, cultura é inclusão de valores intrínsecos e extrínsecos ao tempo e ao espaço em que se manifestam, onde a verdade de cada momento só a ela pertence.
Dentro dessas considerações se encaixa o excelente e surpreendente livro.
“Entre a Toga e o Perdão”, do notável escritor, intelectual, jornalista, engenheiro Salatiel Soares Correia que narra a saga da formação das cidades do interior, no Estado do Tocantins, antes norte de Goiás, através de migrantes, em busca de uma nova vida, para a região de Porto do Vau, hoje Itacajá e as cidades circunvizinhas Pedro Afonso e Miracema, principalmente, na primeira metade do século XX.
A aventura para se chegar neste distante espaço, onde se vislumbrava somente a carência de tudo, Salatiel conecta com a Odisseia nas aventuras de Ulisses, de Homero e Riobaldo, de Guimarães Rosa, sobreviventes de todos os perigos e aventuras. Assim, são vários núcleos familiares com suas ações, reféns às amarras do subdesenvolvimento. Um pequeno espaço isolado no sertão, Itacajá torna-se universal ao ser interligado numa circularidade que se identifica com a vida em Macondo, do espantoso realismo mágico do romance Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Márquez e de Carlos Drummond de Andrade, nos versos do poema Cidadezinha Qualquer: “Um homem vai devagar/um cachorro vai devagar/um burro vai devagar: Devagar..as janelas olham/Êta vida besta meu Deus”. E ali, a saga da família de Salatiel se firmando e afirmando pela educação e na trajetória da busca do saber, da formação Universitária, como personagem central da história, Pedro Soares Correia, pai de Salatiel, numa verdadeira Odisseia de Itacajá ao Recife, e na circularidade para Miracema, Pedro Afonso, Luziânia, Goiânia, entre outras cidades como Juiz de Direito e depois Desembargador, nesse novo patamar da família e na continuidade a do filho Salatiel, nome do avô, de Goiânia para Santa Rita do Sapucaí, Minas Gerais, cursando Engenharia; mestrado em Campinas São Paulo, Administração de Empresas pela PUC-GO.

Portanto, o texto de Salatiel é sua biografia diária, ou um diário da existência ao atravessar desertos, viver conflitos familiares, existenciais, sem perder a lucidez de anunciar e permanecer na circularidade histórica e literária apreendendo e direcionando os enigmas da vida como neste monumental livro “Entre a Toga e o Perdão”: de camponês, nas áridas terras do Tocantins, a desembargador: histórias de poder, corrupção e família, nas macondos do Brasil. Neste livro, o autor demonstra plena consciência da técnica narrativa e domínio do discurso polifônico, num misto de pessoas do discurso, conseguindo gerar impressões objetivas e subjetivas num tom confessional, como quem busca a própria identidade. Salatiel com vários livros publicados e jornalista com o ofício do escrever e publicar nos jornais de grande circulação em Goiás e no Tocantins, como no Livro “Cheiro de Biblioteca”, análise das grandes obras, autores e personagens que influenciam nossa época, além do intercâmbio cultural com grandes centros europeus. Assim, consegue nesta obra envolver o leitor cosendo os fios do mundo das contradições, das insinuações, dos questionamentos, misturando o psicológico, social, transcendental. Inseparáveis e ao mesmo tempo inconciliáveis ao ponto de vista do sonho e da realidade.
Nesta circularidade, observa-o encontro entre Drummond, Gabriel García Márquez e Salatiel Soares, pois buscam um ponto de partida para atingir a verticalidade, onde a dor, o desabafo, o desalento engendram marcas nas frustrações humanas, mas que são armas poderosas para a reflexão sobre a vida e suas mil curvas, formam portanto um elo de grandeza na literatura brasileira e universal.
Sendo assim, Itabira esteve sempre presentificada na vida de Carlos Drummond de Andrade, podemos chamar de antropologia drummondiana: sua origem, seu lirismo, sua resistência ao sofrimento, sua crença, dignidade pessoal, altivez, sua confidência: “Alguns anos vivi em Itabira,/ principalmente nasci em Itabira,/ por isso sou triste, orgulhoso: de ferro,/ noventa por cento de ferro nas calçadas,/ oitenta por cento de ferro nas almas”.

E no final dessa confidência do itabirano: “Tive ouro, tive gado, tive fazendas./Hoje sou funcionário público./ Itabira é apenas uma fotografia na parede./ Mas como dói”.
Eis a circularidade de Drummond, pois Itabira, metafisicamente, se transmuta numa ressurreição anunciada, ponto de partida e chegada, é a vida preservada, longe do entrechoque brutal, do mundo urbano. Evidencia, também, nessa circularidade histórico/literária de Salatiel, a justificada presença da saga que envolve o leitor e faz coro ao poema de Drummond, tudo também, em Macondo. Estando, pois, Drummond, Gabriel García Márquez e Salatiel, na mesma circularidade, num espaço, mesmo distante,” universalmente se unem, onde a vida supera a arte, onde tudo começa, como diz Salatiel: “Num mundo como esse, o tempo passa devagar, muito devagar, sem perspectivas de futuro. Num mundo como esse, as pessoas migram durante dias semanas e meses, de barco, a cavalo ou até mesmo a pé, em busca da promessa de uma vida melhor. É, exatamente, num mundo como esse, numa Macondo chamada Porto do Vau, posteriormente, Itacajá, que esta história se inicia. É lá, na Fazenda São José, no dia 28 de junho de 1926, numa casa de palha de chão batido, que nasceu o personagem cuja história será aqui contada: Pedro Soares Correia”: “Entre a Toga e o Perdão”. Por certo, o leitor, também, se emocionará nessa circularidade histórico-literária onde desfilam, os grandes escritores da Literatura Universal e Brasileira e se debruçará sobre os grandes acontecimentos políticos, sociais, culturais do sec. XX, tudo tendo como centro irradiador a inteligência e criatividade de Salatiel Soares nos espaços da América Latina, Itacajá, Itabira, Macondo.
Eurípedes Leôncio é professor, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-GO, jornalista, membro da UBE-GO, do Icebe, da Associação Nacional de Escritores e da Academia de Letras e Artes de Brasília.