A beleza de Goiânia e lições de olhares e aves

23 agosto 2025 às 21h00

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Chris Resplande
Especial para o Jornal Opção
Vou me atrever a parafrasear o poeta Fernando Pessoa e dizer que Goiânia, minha aldeia, é mais bela que todas as aldeias, porque Goiânia é a minha aldeia. Seu nome origina-se do Tupi-guarani – Goyanna – “terra de muitas águas”, e, de fato, é prodigiosa em cursos d’água, cortada por vários ribeirões e córregos. Ela me conta segredos de cimento e mãos, de redemoinhos dos ventos de agosto, de flamboyants floridos a flamejar desde outros tempos.
Esta minha aldeia, de tão próxima que “ninguém nunca pensou no que há para além”, faz-me entender que é preciso um olhar atento sobre nosso lugar — não importa qual — e jamais dele perder o espanto. Se em “Cidades Invisíveis”, de Italo Calvino, o famoso viajante Marco Polo a descrevesse, de que modo a apresentaria? Talvez como as cidades ali descritas, com possibilidades infinitas como qualquer outra, mas que paradoxalmente tornam cada uma única, superando o conceito geográfico para se tornar um espelho da existência humana.
Ilustro estas minhas reflexões com uma pequena história: em 2015 acompanhei um casal de turistas italianos – que depois tornaram-se grandes amigos – em um giro por Goiânia. Amáveis e muito interessados em conhecê-la, levei-os a alguns pontos históricos, marcos iniciais de sua construção.

Fomos ao Teatro Goiânia, à antiga estação ferroviária, o Coreto e chegamos à Praça Cívica. Escutavam atentos minha fala sobre os edifícios e sua arquitetura Art Déco, e alguns dados sobre a cidade que, de tão jovem, nos fez sorrir ao falarmos de Roma e o velho mundo.
A praça ainda não havia passado pela última reforma, que veio a ser finalizada em agosto de 2016. O calçamento estava esburacado, os bancos quebrados, plantas destruídas, as construções sujas, paredes descascadas, uma desolação. O retrato do descaso com o patrimônio público, fato comum que vem se arrastando ao longo da história.
Encontrava-me constrangida e envergonhada quando, naquele momento, bandos de pássaros começaram a chegar e a fazer a algazarra do entardecer. Pousavam e voavam novamente; dezenas de periquitos barulhentos recolhendo-se às árvores, cujos galhos, qual grandes asas maternas, os abrigavam. O som de metrópole adolescente é abafado pela festa das aves. Os turistas ficaram encantados. Embevecidos, olhavam o espetáculo que, segundo eles, era de uma beleza imensa e de uma riqueza incalculável. Sentados em um banco torto, agradeceram a oportunidade que lhes proporcionei, e, em silêncio, esperamos o sol se pôr.
Pensei em meu próprio embotamento; meu olhar miúdo. Compreendi que ter um estranhamento diante do cotidiano ou nele reparar melhor deve ser um exercício constante. É o que propõe Roberto da Matta, em sua obra ‘Relativizando’: o antropólogo deve transformar o exótico em familiar e o familiar em exótico, pois ao olharmos para a própria cultura, uma certa falta de visão nos embota, por estarmos habituados a ver como natural o social e o histórico.
É como manter um primeiro amor aceso; desacostumarmo-nos de seu rosto e a cada dia enxergar a beleza e as razões de ter-se enamorado. Então recordei-me de um episódio ocorrido com um poeta e jornalista goiano: certa feita, em suas andanças por entre as matas observando e registrando a natureza em sua câmera, fotografou várias vezes o mesmo passarinho. A pessoa que o acompanhava, certamente considerando enfadonha a empreitada, questionou a repetição, afinal era o mesmo passarinho. Respondeu o poeta que então não poderia mais olhar a tal pessoa, pois já a havia visto antes.
Voltando à praça e minhas elucubrações, pensei o quanto amo esta cidade de belezas e lugares insuspeitados, de surpresas que descubro ao passar pelas calçadas, bosques e avenidas, ouvir seu burburinho que canta em harmônica dissonância. Por ela se caminha a passos rápidos, o ponteiro do relógio sem tempo para meninices.
Seus braços abraçam a lua inteira e dialogam, relembrando um tempo em que a terra era nua e a cidade-embrião dormia, alheia ao que viria. Sua história vem até a mim como uma tela de cinema: como se junto com ela tivesse nascido uma ponte que liga o cerrado ao moderno; o verde ao concreto; o migrante ao seu porto.
A praça cresceu em mim de um modo tão especial que sempre que passo por ela sinto uma revoada de pássaros em meu peito. Em segundos acalmo a alma, sinto-me em casa, e, se pudesse, abraçaria Goiânia inteira.
Chris Resplande é funcionária pública do TRE, produtora cultural e poeta. É colaboradora do Jornal Opção.