20 anos sem Caio F.

23 dezembro 2016 às 10h01

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Escritor de amor e solidão, o autor gaúcho se mantém cada vez mais vivo com seu legado literário dado às gerações
Márwio Câmara
Especial para o Jornal Opção
“E te cuida, por favor, te cuida bem. Qualquer poço mais escuro, disque 05 12-33-41-97. Eu posso pelo menos ouvir. Não leve a mal alguma dureza dita. É porque te quero claro. Citando Guilherme Arantes, pra terminar: ‘Eu quero te ver com saúde/sempre de bom humor/e de boa vontade'” —
Caio Fernando Abreu
Há 20 anos morria um dos grandes nomes da literatura brasileira contemporânea do último século, Caio Fernando Abreu. De lá para cá, surpreendentemente, a obra do autor gaúcho, natural de Santiago do Boqueirão, se popularizou em número e grau pelo Brasil, mostrando-se cada vez mais lida e presente do que em outrora, sobretudo entre os jovens.
Consagrado ainda em vida, com inúmeros prêmios literários acumulados, adaptações cinematográficas e textos também voltados para o teatro, Caio F. (como se autoalcunhava em cartas assinadas para os mais íntimos) foi um artista intenso e apaixonado, e que descobriu desde muito cedo sua vocação para a literatura.
Prosador, jornalista, cronista e dramaturgo, ele começou escrevendo suas primeiras estórias nas aulas de redação e em concursos do colégio; no entanto, sua verdadeira estreia como prosador se deu em 1970, com o livro “O inventário do (Ir)remediável”, seleta de contos que já aparece na cena literária gaúcha laureada com o Prêmio Fernando Chinaglia da União Brasileira dos Escritores.
Claramente influenciado por Clarice Lispector, sua declarada musa literária, e também por autores da safra latino-americana, os contos do livro já demonstravam qualidade e irreverência nas técnicas adotadas pelo jovem autor iniciante, embora cambaleante em alguns momentos, com altos e baixos.
Na seleta, é possível encontrar textos arrebatadores, com passagens impressionantes, trabalhadas com profunda pungência e lirismo, tais quais como: “A quem interessar possa”, “O mar mais longe em que vejo” e “A chave e a porta”. Mas será no segundo trabalho, o intitulado “Limite Branco” (1970), um romance de verniz semiautobiográfico, onde a personalidade do escritor começa seguramente a aparecer. A obra trata das descobertas e transformações na vida do jovem Maurício ante a sua interioridade dicotômica concomitante ao mundo.
A escritora carioca Myriam Campello se lembra do dia em que conheceu o autor, quando ele ainda cursava Letras e Artes Cênicas, em Porto Alegre: “O jovem de vinte e poucos anos que vi pela primeira vez tinha olhos intensos e uma placidez doce de menino nascido em cidade pequena. Com o cantado sotaque gaúcho que sempre me encantou, disse que queria escrever e mostrou um texto em progresso. Não foi preciso mais para que eu reconhecesse seu talento”.
Prosador de solidão
Desde o seu prodigioso “Inventario”, Caio não parou mais e levou verdadeiramente a sério toda a sua paixão pela literatura, trabalhando com verdadeira dedicação e afinco. Produziu romances, crônicas e textos dramatúrgicos, mas se tornou mais conhecido pela sua veia de contista. Entre alguns de seus livros do gênero que merecem destaque, estão “Pedras de Calcutá” (1977), “Morangos Mofados” (1982) e “Os dragões não conhecem o paraíso” (1988).
O segundo citado foi sucesso de público e crítica e um dos mais conhecidos da bibliografia do autor. A seleta traz um recorte espirituosamente nostálgico da geração beatlemaníaca seguida a do desbunde, tecido ainda por dramas existenciais vividos por jovens dos anos 1960/70, mas que de forma alguma se tornaram obsoletos ou restritivamente datais. A beleza e o frescor de seus morangos, mesmo que mofados, de nada foram perdidas. Muito ao contrário, continuaram se comunicando de forma muito íntima e aberta às gerações posteriores.
Para o professor de literatura da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), o escritor Otto Leopoldo Winck, Caio foi um típico filho da revolução dos anos 1960, dentro daquele universo de drogas, rock’n’roll e misticismo: “Mas ele também se diferenciava de muitos desses eufóricos filhos, trazia uma sólida bagagem literária e, como escritor, mostrou que não estava só de passagem. Seu recado ficou, e parece que tinha uma vocação póstuma: é hoje um dos escritores mais citados na web. E não só. Continua sendo lido e conquistando novos escritores que se identificam com sua temática e sua pegada meio teen”.
E completa: “No entanto, seus morangos eram mofados, pois além da herança sessentista, o clima de dream is over dos anos 1970 contaminava sua prosa e lhe conferia certo sabor cítrico — como toda grande prosa, cujo objetivo não é nos conformar com a vida, mas nos ensinar a olhá-la de viés, com olhos de estranhamento”.
Já o jovem escritor paulista Rodrigo Maceira confirma que foi em “Morangos Mofados” que ele teve a sensação de que os diálogos são o lugar mais triste da linguagem: “Dentro e fora da literatura, quando a vida vai mal, ou mesmo quando as coisas parecem estar vingando. Com o estilo do Caio, também aprendi muito sobre o sentido da forma, na prosa. Os períodos longos, os assíndetos, polissíndetos e os paralelismos são tão o humor e o desencantamento dos personagens. Acho que tem muito disso no que eu escrevo”.
Outro destaque de suas publicações em prosa trata-se de “Triângulo das Águas”, que possui uma forte ligação com a astrologia. O conjunto, composto por três novelas que simbolizam os signos da água (peixes, escorpião e câncer), apresenta narrativas evanescentes e perturbadoras, intituladas: “Dodecaedro”, “Marinheiro” e “Pela noite”.
A primeira construída simbolicamente dentro de um aposento confinado por uma turma de jovens da flower-power generation, que ritualiza uma orgia pagã dentro de uma atmosfera de repressão externa, enquanto alguns cachorros latem e rosnam, do lado de fora — uma autêntica alusão aos assombrosos anos de chumbo da Ditadura Militar. A segunda, uma das mais caras e belas narrativas do livro, trata-se da degradação psíquica de um homem solitário que numa típica noite de chuva é recebido por uma visita misteriosa. Já a terceira novela, que fecha a vértice do triângulo, explora a noite gay paulistana, com magníficos jogos de linguagem.
O livro deu a Caio o seu primeiro Prêmio Jabuti de Literatura, em 1984, e pode ser caracterizado, dentro do conjunto da obra, como o início do amadurecimento do escritor, que se dividiu entre São Paulo e Rio de Janeiro, durante o processo de produção de suas respectivas narrativas presentes no livro.
A jornalista Vanessa Souza, mestre em Psicanálise e Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), acredita que Caio conseguiu expressar, como poucos, o retrato de uma geração, sobretudo a que viveu entre 1960 a 1990: “As narrativas do escritor mergulham abissalmente na dureza do homem contemporâneo: a solidão e a clausura dos tempos modernos e as fantasias e os sonhos que vão sendo dilacerados, pouco a pouco, nas histórias de personagens marginais: homossexuais, prostitutas, mochileiros, presidiários e pessoas comuns, que vivem no limiar tênue de um cotidiano razoavelmente sadio e com a loucura à espreita”.
Mas a mesma jornalista, que defendeu uma dissertação acerca de sua obra sobre um viés psicanalítico, acredita que: “Esse olhar do escritor, através de suas personagens de retinas fatigadas, buscava apenas uma coisa: amor”. E relembra um trecho em que o autor diz: “A gente, quando tenta analisar qualquer problema, sempre vai aprofundando, até que chega nesse fundo que é amor sempre”.
Jornalismo e AIDS
Ao longo da vida, Caio passou pelos mais variados e relevantes veículos de imprensa do país, embora não fosse um típico jornalista padrão. Caio não gostava de acordar cedo e sempre teve problemas em se adequar às rotinas das redações, ainda que tenha trabalhado com grande desenvoltura no meio jornalístico.

Certamente, o ofício de profissional de imprensa lhe caiu mais como um meio de sobrevivência. Ainda muito jovem, passou no processo seletivo da primeira equipe de jornalistas da revista Veja. Ao assumir a posição de cronista no jornal O Estado de São Paulo, Caio pareceu se sentir mais confortável para falar sobre temas e assuntos de seu interesse e que variavam de política à música, literatura, cinema e televisão, além de cenas triviais do seu dia à dia na cidade, com doses de humor e acidez em certos momentos, característicos de sua forte personalidade.
Foi em suas crônicas que Caio passou a falar sobre a doença que vinha matando de forma nefasta e progressiva milhares de pessoas pelo mundo, sobretudo os homossexuais, a AIDS. Em sua conhecida crônica, intitulada “Primeira carta para além do muro”, publicada em 21 de agosto de 1994, o autor divulgou para o país sua atual condição sorológica, após se descobrir portador do vírus HIV.
Num relato corajoso e emocionado, Caio diz: “É com terrível esforço que te escrevo. E isso agora não é mais apenas uma maneira literária de dizer que escrever significa mexer com funduras — como Clarice, feito Pessoa. Em Carson McCullers doía fisicamente, no corpo feito de carne e veia e músculos. Pois é no corpo que escrever me dói agora. Nestas duas mãos que você não vê sobre o teclado, com as suas veias inchadas, feridas, cheias de fios e tubos plásticos ligados a agulhas enfiadas nas veias para dentro das quais escorrem líquidos que, dizem, vão me salvar. Dói muito, mas eu não vou parar”.
É válido ressaltar que, já na década de 1980, Caio abordou sobre a problemática da doença, no universo literário de suas personagens, como é o caso do conto “Linda, uma história horrível”, onde um jovem soropositivo retorna para a casa de sua mãe, a fim de visita-la. A velha cachorra da família que se encontra com a saúde debilitada, de certa forma, faz uma alusão à própria decadência imunológica da personagem, que, com alguns quilos a menos, se despe diante do espelho, encontrando manchas vermelhas em seu corpo.
“Ele foi um dois primeiros escritores a abordar o tema do HIV na literatura brasileira. Em suas histórias encontramos a dor e o medo que estavam nos primeiros anos da epidemia do HIV/AIDS. Hoje, felizmente, a ótica dos anos 1980, em relação ao HIV/AIDS, tem se modificado. Escritores e artistas buscam representações mais luminosas, com a melhoria da perspectiva de vida que os medicamentos trouxeram. Uma literatura ‘pós-coquetel’, como classifica o professor Alexandre Nunes (UFBA), onde a representatividade aborda, por exemplo, relações sorodiscordantes. A linguagem é o verdadeiro vírus; podemos ressignificar o imaginário do HIV”, explica o poeta e jornalista Ramon Nunes Mello, que se declarou soropositivo em 2015, durante o Dia Mundial da Luta Contra a AIDS, no site da revista Carta Capital.
Mello, além de ter tido sua primeira obra poética diretamente influenciada pelo autor, intitulada “Vinis Mofados” (2009), fez parte este ano da organização do projeto “Palavra Líquida — Caio F. Epifanias”, realizada pelo Sesc Rio, que contou com exposição, mostra de filmes, shows, peças de teatro e mesas com diferentes temas acerca do universo do escritor.
Caio badalado

Nos últimos anos, diferentes exposições, peças teatrais e até um documentário foram produzidos em homenagem ao escritor que faleceu de forma prematura aos 47 anos de idade, deixando como obra póstuma a seleta de contos “Ovelhas Negras”, que lhe concedeu o Prêmio Jabuti de Literatura pela terceira vez. A seleta se trata de textos inicialmente ignorados pelo autor e que, no fim da vida, foram editados e organizados por ele próprio.
Entre os dias 23 e 27 de novembro em São Paulo, a Balada Literária, promovida pelo escritor e agitador cultural Marcelino Freire, prestou uma grande homenagem aos 20 anos de morte de Caio, com uma programação feita em diferentes pontos da cidade, levando para a roda algumas personalidades da cena literária, além de familiares e amigos do escritor.
Durante o evento, Freire constatou o quanto o autor continua vivo, atual e pulsante: “Um exemplo tocante foi o de um jovem, de 18 anos, que veio, trazido pelas mãos do pai, direto do Rio de Janeiro, só para acompanhar a Balada em homenagem a seu ídolo. Caio é isto: o leitor dos primeiros leitores. Porque ele é sincero. Ele é inovador, desbravador. Fala diretamente no coração e no juízo de quem lê. E transforma, com suas palavras, nosso destino amoroso. Caio fez isso comigo quando era adolescente no Recife. Ele foi meu companheiro afetivo. Ele me deu afeto e me estendeu a mão”, disse.
Não apenas uma pandemia de exposições sobre o escritor foi realizada, como também novas edições de suas obras têm sido publicadas nos últimos anos pela editora Nova Fronteira (atual detentora dos direitos autorais do escritor), que, inclusive, reuniu grandes materiais em prosa, poesia e cartas, divididas entre as décadas de 1970, 1980 e 1990, com o título de “Essencial”, além da coletânea “O melhor de Caio Fernando Abreu”, que faz um breve recorte panorâmico de sua carreira em diferentes anos, através de textos significativos de sua produção.
No final de 2016, por exemplo, saíram duas obras que contemplam as missivas escritas pelo autor. A primeira, organizada por Italo Moriconi, chamada “Cartas de Caio Fernando Abreu”, esgotada há alguns anos, e que agora ganha uma bela reedição em formato digital, através da e-galáxia. O volume remonta de modo quase romanesco aspectos da vida e da personalidade de Caio, através das inúmeras cartas assinadas para familiares e amigos, diante de um invejável acervo que o pesquisador teve acesso.
Já a jornalista Paula Dip lançou recentemente o “Numa Hora Assim Escura — A Paixão Literária de Caio F. e Hilda Hilst”, que reúne as missivas trocadas entre os dois autores. O livro, editado pela José Olympio, traz um registro documental valioso frente à vida e à criação artística sobre a ótica dos dois escritores, além dos laços de amizade que os uniam.
“Para mim, o mais significativo nessa correspondência é o fato de o Caio ser um menino: ele tinha apenas 19 anos, quando foi morar na Casa do Sol. O Caio que conheci tinha 30 anos, um homem maduro, escritor conhecido e premiado. O menino que conhece Hilda e vai morar na casa dela, ainda nem tinha voz grossa, estava começando a sua carreira. Já tinha livros escritos desde os 16, e Hilda o ajudou muito a se tornar um escritor. Ele foi seu assistente, seu secretário, amigo e confidente e eles se influenciaram mutuamente”, comenta a jornalista, que também foi curadora da exposição “Caio Mon Amour”, voltada à temática homoafetiva na vida e na obra do escritor gaúcho.
Para a escritora Myriam Campello, Caio foi um guerreiro apaixonado pela literatura, vencendo todas as dificuldades que vida poderia lhe proporcionar unicamente pelo seu ofício: “O que ficava por provar (e isso só o tempo diz) era sua insistência na literatura, a capacidade de resistir às enormes pressões da vida em função do objetivo escolhido. E isso o tempo provou. Porque a suavidade de Caio era a de um guerreiro em repouso, mas sempre pronto a lutar com firmeza por sua vocação. Quando morreu, absurdamente aos 47 anos, seus contos, romances e peças atestavam, com felicidade, que ele se tornara exatamente o que tinha querido ser: um escritor”.
Márwio Câmara é jornalista e pesquisador nas áreas de Literatura e Cinema. Mora no Rio de Janeiro.

Minhas palavras a Caio F.
O meu encontro com Caio Fernando Abreu se deu com a leitura do conto “Por uma tarde de Junho”, que pertence a uma fase furiosa e experimental do autor diante da metalinguagem. Escrito em 1976, o conto me trouxe muitas referências, ideias dissolvidas, descobri no meu impacto a profundidade das palavras e das ações criadas pela escrita de Caio. Esse meu diálogo com ele foi se intensificando com o livro “Morangos Mofados” e mais precisamente com os contos “Terça-feira gorda” e “Além do ponto”.
Depois, deitei-me no sofá e botei na vitrola o disco da Angêla Rô Rô para tocar. A primeira vez que eu li Caio, eu senti que estava me comunicando com alguém com quem posso tecer um diálogo breve e profundo.
Alex Andrade, escritor e arte-educador
O próprio Caio afirmou que “O ovo apunhalado” é um livro que “marcou a transição entre certo amadorismo dos livros anteriores para uma espécie de profissionalismo”. O que, em certa medida, pode se depreender da obra é o seu pleno amadurecimento como autor, principalmente pela linguagem acurada (ainda que despojada) que sedimenta um estilo que marcaria para sempre a literatura brasileira. Em releitura recente, fiquei impressionado com a construção da tensão entre imanência e transcendência na narrativa, explorando situações e personagens situados no limite da irrealidade que desvelam com demasiada precisão o absurdo do nosso tempo.
Alex Tomé, escritor
Meu primeiro contato com a escrita de Caio foi com o conto “Terça feira gorda”. Toda vez que o releio, emergem em mim ondas de dor, de fascínio e surpresa; é quase como se um curta-metragem passasse nas minhas entranhas — e pela primeira vez. O suor daqueles homens, a excitação, os extremos entre a vida e a morte falam tanto com a nossa realidade e as vidas das pessoas LGBTs de ontem e de hoje; é impressionante.
Cris Judar, escritora e jornalista
Fomos muito amigos, trabalhamos juntos, fomos confidentes. Ele fez a minha cabeça, abriu meus olhos para os livros, para a escrita, para um jeito novo de olhar a vida.
Paula Dip, jornalista e escritora
O escritor foi um crítico que vislumbrou a vivência de sua geração e também um autor que a soube retratar com propriedade, pois o fez retratando muito de si mesmo. O reflexo dessa geração, na escrita de Caio, trazia a desesperança e o horror que a população brasileira viveu durante e depois dos anos de chumbo. Desde que me deparei com o clássico “Morangos mofados”, na biblioteca da Universidade Regional de Blumenau (FURB), há cerca de duas décadas, sabia que sua escrita iria me marcar indelevelmente como leitora. Na época, sugeri que meus amigos lessem seus livros — nenhum deles, até então, tinha a menor ideia de quem era o autor gaúcho.
Vanessa Souza, jornalista e escritora