A captura climática: como o Brasil financia destruição com discurso de salvação
19 novembro 2025 às 18h44

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A COP30 poderia ser um momento simbólico de reflexão global: a conferência acontece na Amazônia — epicentro da crise climática — e deveria mobilizar debate honesto sobre como preservar florestas, proteger comunidades tradicionais e restringir a voracidade das cadeias poluentes. Mas, ao invés disso, a cúpula ambiental revela que quem mais paga para fazer parte dessa narrativa são justamente os responsáveis por grande parte da destruição.
Empresas como Vale, JBS, Hydro, Suzano, Ambipar e até a Philip Morris estão entre as grandes patrocinadoras da cobertura da COP30 por veículos de comunicação de peso — Folha, O Globo, Valor Econômico, CBN, Veja, entre outros. Segundo o levantamento do Intercept, essas corporações poluidoras estão “comprando” visibilidade em meio a pautas ambientais. Isso não é apenas marketing convencional, é uma forma estratégica de associar sua marca à “solução climática”, mesmo quando seu histórico contradiz essa imagem.
Vale, por exemplo, tem no currículo as tragédias de Brumadinho e Mariana, eventos que mataram vidas e devastaram ecossistemas. Mas agora usa a conferência para reforçar uma narrativa de mineração sustentável — um discurso cuidadosamente calibrado para suavizar sua reputação. A JBS, por sua vez, a maior proces-sadora de carne do mundo, com impacto enorme em emissões de gases e desmatamento, patrocina a cobertura para projetar uma imagem de agronegócio sustentável.
Este tipo de patrocínio não é neutro: ele molda a forma como a COP é impressa nos olhos da população. Mesmo que os veículos afirmem que não existe interferência editorial, a mera presença financeira dessas empresas pode gerar autocensura, diluir críticas contundentes e reforçar discursos convenientes.
O financiamento público paradoxal
Se a presença dessas empresas na cobertura da COP30 já é preocupante, a situação se agrava quando constatamos que elas também estão recebendo bilhões em dinheiro público para desenvolver “soluções climáticas”. Segundo reportagem do Intercept, seis de sete empresas que receberam financiamento do Fundo Clima por projetos de etanol de milho tinham registro de infrações ambientais ou trabalhistas.
Esses projetos somam nada menos que R$ 2,5 bilhões aprovados via BNDES para subsidiar usinas de etanol de milho — uma imagem elegante de “descarbonização” que esconde um passado de multas por desmatamento, trabalho escravo e fraude ambiental. Entre as empresas beneficiadas estão nomes como São Martinho, Coamo, 3Tentos e FS, todas com histórico problemático:
- A Coamo já foi multada pelo Ibama por infrações ambientais na Mata Atlântica.
- A São Martinho tem histórico de violações trabalhistas, que incluíram condições degradantes para trabalhadores.
- A FS Bioenergia já foi autuada por apresentar dados falsos em guias florestais, além de ter sócios com fazendas sobrepostas a terras indígenas.
- A 3Tentos, por sua vez, foi investigada por uso de mão de obra análoga à escravidão em canteiros de obra.
Mesmo com esse histórico, o BNDES justificou a concessão dos créditos argumentando que todas as empresas passaram por análise cadastral e não tinham “processos transitados em julgado” que impedissem o financiamento. Mas essa justificativa é, no mínimo, insuficiente: não basta que as infrações não tenham sido finalizadas juridicamente, é preciso questionar a lógica de dar dinheiro público para quem já demonstrou desrespeito ambiental ou social.
A trapaça simbólica e econômica nas negociações climáticas
O que vemos, portanto, não é apenas greenwashing: é uma verdadeira captura climática. As empresas mais poluidoras estão integrando a narrativa de descarbonização ao seu branding público, enquanto continuam operando com práticas predatórias — agora legitimadas por dinheiro público e por visibilidade na mídia.
Na COP30, elas se pintam como solução. Nos bastidores, elas garantem políticas, financiamento e discursos favoráveis. A mídia, financiada por essas mesmas empresas, se torna parte desse ecossistema simbólico: um veículo para tornar aceitável o inaceitável.
Isso mina a confiança pública no processo climático. Como discutir metas reais, ambiciosas e justas para o clima se parte significativa do debate está sendo moldada por quem tem interesse direto em manter o status quo destrutivo? Como exigir responsabilidade climática se as vozes financeiras mais poderosas nessa COP são justamente os grandes emissores históricos?
O impacto real para quem importa
Enquanto Vale, JBS e outras empresas conquistam espaço nas capas dos jornais e recebem bilhões de reais para financiar seus “projetos sustentáveis”, quem sofre diretamente são as comunidades vulneráveis, os trabalhadores rurais e as florestas. O dinheiro público que deveria impulsionar a transição ecológica está sendo canalizado para estratégias de reputação, em vez de transformação sistêmica.
O resultado é cruel: desmatamento e poluição são naturalmente menos visíveis quando há “bons discursos” patrocinados. A destruição continua, mas a narrativa pública muda de tom.
O que deveria acontecer
- Exigir transparência total nos patrocínios de empresas poluidoras para coberturas jornalísticas de eventos climáticos;
- Revisar os critérios de concessão do Fundo Clima, de modo a impedir que empresas com histórico grave de infração recebam verbas sem garantias reais de mudança;
- Fortalecer mecanismos de controle e responsabilização socioambiental, inclusive para que projetos financiados pelo Estado sejam auditados de forma independente;
- Promover um jornalismo climático crítico e independente, capaz de questionar os discursos de “sustentabilidade corporativa” sem constrangimento.
A COP30 deveria ser uma oportunidade de virar a página — uma chance de reafirmar que a Amazônia, o clima e as comunidades tradicionais estão acima dos interesses corporativos. Mas, se o debate climático virar uma vitrine para quem mais destrói, corremos o risco de transformar a cúpula em mais uma fachada de greenwashing.
A crise climática exige mais do que discursos bonitos: exige coragem, integridade e ação real. E, sobretudo, exige que quem destrói o planeta pague para mudar, e não para lavar a própria imagem.
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