Movimento da População em Situação de Rua denuncia “morte não matada” e cobra Centro Pop 24h em Goiânia
08 novembro 2025 às 21h00

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Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
Manuel Bandeira
Entre a chuva, a burocracia e o preconceito, quatro pessoas em situação de rua – Hugo Deleon, Djalminha Junior, Rubi Corrêa e Patrícia Silva – contam o que as trouxe até ali, o que as mantém vivas e por que a solução nunca é só “tirar da rua”.
Imagine acordar e não ter uma torneira para lavar o rosto ou um fogão para esquentar o café. Viver na rua é abrir os olhos todo dia pensando na próxima refeição e nunca na próxima semana. É calcular o clima, o olhar dos outros, o humor da polícia, o horário do Centro Pop, o dia que a equipe voluntária passa. É também lidar com o que ninguém vê: luto, rompimento, abuso, família distante, burocracia que empurra de um guichê a outro. “A gente já viu que não vale mais a pena ficar insistindo. A maioria da gente que está na rua não tem mais esperança. Você desiste”, resumiu Hugo Deleon.
Goiânia, como tantas cidades brasileiras, durante anos nem soube dizer quantas pessoas estavam vivendo assim. E sem controle, não há medidas eficazes. No Seminário Povos de Rua, organizado pelo Movimento Nacional da População em Situação de Rua de Goiás (MNPR-GO), quatro dessas pessoas sentaram, lembraram, choraram, riram e falaram de futuro. São histórias muito diferentes – de um montador de carros que perdeu a família, de um catador criado na rua, de uma mulher trans que decidiu amar e ser amada, e de uma poliglota que dança Juanes no meio da entrevista – mas todas mostram a mesma coisa: ninguém está na rua porque “gosta da rua”.
Hugo Deleon – o homem que perdeu tudo

Na noite de quarta-feira, 5 de novembro, Goiânia alagou. Árvores caíram, ruas viraram córrego. Hugo Deleon, 40 anos, tem mobilidade reduzida por causa de um acidente antigo, procurava onde dormir quando viu um homem sendo arrastado pela enxurrada. O homem não tinha uma das pernas, se debatia e pedia socorro. “Ninguém ajudou”, conta. “Depois que ajudei ele chorei igual uma criança.”
Esse contraste – o homem da rua que socorre e a cidade que finge não ver – atravessa toda a história de Hugo. Ele já viveu em casa, já teve emprego fixo, já foi casado, já saiu das drogas. E já perdeu quase todo mundo.
“Em 2007 eu era uma pessoa normal, dentro do que a sociedade acha que é normal”, ele conta. A vida virou quando o pai entrou com o carro embaixo de um caminhão de cana. Morreram o pai, a mãe e dois irmãos. Hugo também estava no carro. Sobreviveu, mas perdeu parte do movimento da perna.
Quando eu voltei pra sociedade, eu não queria mais estar no mundo. Pra mim o mundo não me servia.
Nesse buraco entrou a droga. Depois veio Vanessa. Ele saiu das drogas por ela. Casaram, viveram juntos até a pandemia. “Ela me tirou das drogas”, diz. Aí veio a Covid em 2020. Vanessa sentiu febre, ele levou ao hospital, a saturação já estava em 72%. Entubaram. Em três dias, ela morreu. Enterro sem velório, caixão lacrado. “Foi assim que eu fui enterrar a minha esposa.”
Ele para, respira e desaba:
“Eu não sei o que a vida tem contra mim. Contra as pessoas que eu amo. De deixá-las perto de mim.”
Sem ela, Hugo voltou para a rua. Vendeu o que tinha, passou a rodar entre abrigos e calçadas. A irmã o chamou para morar, o cunhado ajudou, mas ele não parou. “Parece que quatro paredes pra mim não servem. Eu não quero estar preso ainda.” Não é que ele goste de morar na rua. É que, depois de tanta perda, ele ainda não achou “o lugar no mundo”.
“O que você está procurando da sua vida?”, questiono. E ele responde: “Meu lugar no mundo. Que eu ainda não achei.”
Hugo fala sem raiva de Deus. Diz que não culpa Deus por nada. Culpa escolhas e gente ruim. E fala com respeito de quem atende na ponta – especialmente o Centro Pop e servidores que tiram do bolso para comprar remédio. Mas é duro com o poder público que anuncia o fim da população de rua até dezembro. “Eles não oferecem o mínimo, que é moradia, alimentação, emprego.”
Ele conhece abrigos. E não romantiza. “Você chega dentro da casa de acolhida, o povo tá fumando crack indiscriminadamente. E não tem ninguém lá pra organizar. Os funcionários têm medo. Então eles pensam: se não estão se matando, problema deles.” Por isso, preferiu voltar pra calçada.
E ainda assim, ele acredita. “Eu não tenho escolha, sou brasileiro. Brasileiro nasceu pra acreditar e ter fé.”
Djalma Junior – catador de recicláveis
Se Hugo fala como quem já viveu duas ou três vidas, Djalminha (como gosta de ser chamado) fala como quem ainda está tentando ter a primeira. Tem 29 anos, diz que foi criado na rua, que hoje cata reciclável, que quer carteira assinada pela primeira vez. Ri das próprias tragédias, mas admite: “A gente sobrevive. Não vive.”

Ele também passou pelas casas de acolhida da prefeitura. Contou que roubaram até chuveiro. “Roubam roupa. Roubam o chuveiro. Roubam as cobertas pra trocar com traficante.” Diz que quem quer “um pouco de sanidade mental” não fica na CA 1 (Casa de Acolhida). Na CA 2, onde ficam famílias, dormiu uma noite e achou mais tranquilo.
Mas o que marca na fala dele é o básico faltando: banho, água de noite, lugar pra lavar o uniforme.
Uma vez eu não tava aguentando meu próprio cheiro.
Uma mulher se afastou e pediu para ele ficar longe porque o cheiro estava forte. “Eu falei: eu sei disso. Mas não tem onde tomar banho.”
Às vezes chega do trabalho de reciclagem de madrugada, cansado, com fome – e não tem água. “‘Devia ter pelo menos bebedor público’, né?”, ele disse. Porque o amigo que é cozinheiro e já arrumou emprego “passa do horário do próprio de comer” e dorme com fome.
Mesmo assim, ele quer trabalhar. “Eu vou arriscar. Primeira vez que vou trabalhar de carteira assinada.” Diz que quer ganhar pelo menos o que um servente ganha. Diz que topa serviço pesado. Diz que queria ter uma mulher, mas não dá: “Como eu vou ter uma mulher se eu não tô cuidando nem de mim?”
É questionado sobre a inclusão recente da população de rua no Programa Minha Casa Minha Vida. E, como todos os outros, bate na parede da burocracia e da promessa. “De promessa o inferno tá cheio. O governo faz muita promessa. Eu nunca vi quase nada sair do papel.”
Ao mesmo tempo, Djalminha tem essa ética da reciprocidade, que nasce da rua:
Tudo que a gente faz, a gente colhe. Se você joga o bem, ele volta. Se joga o mal, volta mais forte.
Não é discurso de igreja – aliás, ele critica igrejas que “vivem num mundinho cor-de-rosa”. É só a forma que ele encontrou de organizar o caos.
Rubi Corrêa – mulher trans que transformou dor em cena

Rubi começa se apresentando do jeito certo: “Rubi é a mulher que eu escolhi ser. Correia é o sobrenome do homem que me fez ser a mulher que eu sou.”
É uma mulher trans, de 29 anos, que passou anos na rua, que já teve outros nomes porque a rua exige máscaras, mas que hoje mora de aluguel com o marido e quer ser vista como trabalhadora e artista.
E artista ela é. Dona de uma voz potente, atriz e diretora natural, Rubi atua e improvisa como ninguém. Foi ela quem promoveu o teatro que emocionou a todos no Festival Povos de Rua — uma apresentação feita com moradores e moradoras, que arrancou aplausos e lágrimas.
Enquanto esteve na rua, ela era “a doidona” para ninguém mexer.
Eu era mal porque eu não queria que fossem maus comigo.” Era defesa. Por trás, tinha medo, tinha choro. “Eu sempre fui ser humano.
Rubi saiu da rua porque teve uma coisa que quase ninguém em situação de rua tem: uma rede afetiva que não desistiu dela. A família ajudou dentro do que dava, mas quem colocou a cabeça dela no lugar foi o marido. “Hoje eu não tomo remédio pra parar de usar droga. Ele é o meu remédio.” Ela fala isso como só quem só quer ter comida quente pra receber o marido quando chegar do trabalho.
Mas esse lar ainda é precário: é um barracão de aluguel que molha, faltam torneiras, faltava até chuveiro até ontem. A geladeira ficou dias vazia. Ela ficou sete dias em Goiânia comendo farinha e água. E mesmo assim diz: “É mil vezes melhor passar fome dentro de casa do que sair e fazer besteira.”
Como trans, ela puxa o debate do banheiro. Homem de rua não pode usar, mulher de rua não pode usar, imagina mulher trans. “Não tem uma porta específica que ela pode entrar e se sentir à vontade.” E ela amplia: na rua tem cadeirante, tem cego, tem surdo. Não dá pra fazer política pública olhando só pra um tipo de morador de rua.
Rubi não quer esmola. Quer oportunidade. “A gente não quer pegar o peixe pronto. A gente quer pescar, limpar, temperar e cozinhar.” Sonha com salão de beleza, teatro, cinema, curso. Diz que pode até ensinar outras mulheres trans, outras mulheres de rua, se tiver três secadores. É projeto de reintegração feito por quem sabe o que é não ter nada.
Patrícia Silva – professora que fala 4 idiomas

Patrícia parece personagem de outro lugar. Fala português, espanhol, francês e inglês. Já morou na Espanha e atuava como professora lá. Tem um filho de 21 anos estudando na França. Tem família estruturada – cuiosamente uma irmã que trabalha na Agência Goiana de Habitação (AGEHAB).
Ainda assim, vive na rua por causa da dependência química. Patricia é um nome fictício porque ela foi a única que não quis ser identificada.
“Por conta do vício não consigo arrumar emprego”, contou. Faz tratamento no CAPS. Evita falar de traumas – foi abusada aos 8 anos. Durante a entrevista, ela fazia pausas para colocar músicas no celular, entre elas “La Camisa Negra”, de Juanes, que ela cantava baixinho enquanto sorria.
De repente, puxou o companheiro Jonas pra dançar e chamou todo mundo que passava. Era como se dissesse: eu não sou só a minha dor.
O desejo que ela guarda mais fundo é reencontrar o filho, que não vê há mais de 10 anos. Chora quando fala nele. Não é que a família não exista – é que a droga, a vergonha, a distância foram comendo os vínculos. E há um detalhe quase simbólico: ter uma irmã na habitação popular e, ao mesmo tempo, não conseguir sair da rua mostra que o problema não é só “ter alguém na prefeitura”.
No fim da conversa, ela testou o preconceito da forma mais direta possível: “Você pode me abraçar ou tem nojo de mim?”
Essa pergunta resume boa parte do que as pessoas em situação de rua sentem na cidade: não é só a falta de casa, é a falta de afeto.
A rua que eles descrevem
Os quatro contam de violência policial: tapa na cara, colchão queimado, pancada por estar dormindo na praça. “Para a polícia, somos vagabundos. Nos chamam de lixo”, desabafou um deles, no limite da indignação, contrastando com a abordagem mais técnica da Rotam, que revista e vai embora. É gente que apanha só porque está visível.

Falam também do preconceito cotidiano: gente que esconde o celular, que segura a bolsa, que atravessa a rua. Hugo, de novo: “Eu tenho 40 anos. Nunca tive passagem pela polícia. A senhora acha que eu vou sujar minha ficha por causa de um celular?”
Mas não é só rejeição. Eles valorizam muito quem ajuda de verdade. Falam de grupos espíritas que passam às 3h com sopa e não só com sopa, com tempo. “Eles não vão embora enquanto você não matou sua fome”, contou Hugo. Falam de servidores do Centro Pop que levam coisa de casa. Falam de um maçom que viu um deles com fome e, no meio de uma festa, deu R$ 2 mil “como se estivesse dando um papel de hino”.
Ao mesmo tempo, há uma crítica muito clara à ideia de “recolher todo mundo até dezembro”. A rua não é depósito. “Eles querem construir um lugar e jogar todo mundo lá como se fosse contenção.” E aí entra um ponto jurídico que eles conhecem bem: direito de ir e vir. “A gente matou o argumento deles dizendo: ‘eu não vou’. E a gente não foi.
Um fio que aparece nas quatro narrativas é o cansaço de rodar órgão público sem resolver nada. Hugo contou que num dia foi ao Ministério Público, depois à Defensoria Pública do Estado, depois à Defensoria da União, só para tentar organizar documentos e dar entrada no BPC (benefício a pessoas com deficiência). Saiu rindo, cansado: “Vivi o teatro de ser jogado de um lado pro outro de novo.”
É aí que muitos desistem. “Se você marcar um encontro com morador de rua, ele vai na primeira vez. Se você não for, na segunda ele não vai mais.” Quem vive na rua não tem fôlego para insistir em nada.
Movimento que veio do sangue e ficou de pé
Quando a gente escuta Hugo, Djalminha, Rubi e Patrícia, parece claro que nenhuma dessas histórias se resolve só com “abrigo hoje e marmita amanhã”. E é justamente dessa percepção que nasce – e se mantém – o Movimento Nacional da População em Situação de Rua em Goiás, que completa 10 anos, do qual o educador social Eduardo de Matos faz parte da coordenação.
Ele mesmo viveu rua, passou por violências, por prisão, por vínculos rompidos. Hoje integra uma equipe de consultório na rua da Secretaria Municipal de Saúde e faz a ponte entre quem está na calçada e um Estado que, muitas vezes, desaparece. “A gente chega no sujeito, estabelece vínculo e, a partir do contexto que levou ele à rua, pensa alternativas. É dignidade e direito”, ele resume.

A história em Goiás está ligada à história nacional. O movimento nasce no Brasil como reação à violência – especialmente depois da chacina da Praça da Sé, em 2004, em São Paulo, quando pessoas em situação de rua foram espancadas enquanto dormiam. Em 2005, o MNPR se consolida nacionalmente. Em 2015, Goiás se torna o 12º estado a integrar oficialmente o movimento, durante o II Seminário “Povos de Rua”. Aqui, a faísca foi outra tragédia: 47 assassinatos e 7 tentativas de homicídio contra pessoas em situação de rua em 2012.
Nossa camisa é vermelha pelo sangue derramado desses 47 assassinatos no ano de 2012.
E faz questão de deixar claro: não é bandeira partidária, é memória. É a mesma lógica que levou outros estados a usar rosa (feminicídio), azul (pedido de paz), preto (luto). Em Goiás, é sangue. É o lembrete de que gente que mora na rua também é alvo e que essa violência não aparece na estatística do telejornal.
Essa visão dialoga com o que disse Anderson Miranda, coordenador nacional do movimento: “Os poderes públicos precisam parar de invisibilizar o morador de rua. Não somos objetos nem números: temos nome e história.”
Perguntado sobre qual é hoje a principal violência contra a população de rua em Goiânia, Eduardo não falou de tiro nem de facada.
Falou de “morte não matada”
É um conceito forte: é a morte que não sangra, mas que vai apagando a vida aos poucos. Ele diz assim:
- quando o Centro Pop só funciona até 17h e não garante comida, banho, acolhimento e escuta à noite e no fim de semana;
- quando não há aluguel social nem política habitacional pensada para quem já perdeu tudo;
- quando ninguém pensa que morador de rua também precisa de lazer, cultura, esporte;
- quando todo mundo só enxerga “usuário de droga” e não enxerga o nome e a história.
“É como se sábado e domingo a população de rua não precisasse beber, comer, tomar banho, viver. Isso é morte não matada”, diz Eduardo.
Por isso uma das pautas centrais do movimento em Goiás hoje é simples, concreta e possível: Centro Pop 24 horas. Não é luxo. É reconhecer que quem mora na rua mora 24 horas na rua. É também uma pauta inteligente: o movimento pede que moradoras e moradores de rua sejam qualificados e contratados para atuar no atendimento da própria entidade.
Eduardo insiste o tempo todo que “o olhar sobre a questão da população em situação de rua deve ser múltiplo, envolvendo família, órgãos públicos e entidades privadas.” Porque não adianta só a prefeitura recolher se a família não estiver minimamente fortalecida; não adianta só a igreja oferecer sopa se não houver documento; não adianta só o MP cobrar se não houver vaga em moradia.
Enquanto isso, a cidade cresce. Quem anda por Goiânia percebe que em cada esquina tem um apartamento novo em construção. Ao mesmo passo que aumentam também os desabrigados. A desigualdade social é gritante. É o contraste mais visível da urbanização brasileira: concreto subindo de um lado, gente dormindo do outro.
“Movimento”, diz Eduardo, “é esse aqui que sai daqui e vai pra ali. E social é esse que envolve toda a sociedade.” Ele fala com uma firmeza mansa de quem já viu o pior, mas não perdeu a ternura. E completa: o objetivo dele talvez nem se cumpra na geração dele – e tudo bem. O importante é iniciar.
E ele fecha com Mário Quintana, do jeitinho que falou na entrevista:
“Um dia pronto, me acabo, pois seja o que tem de ser. Morrer, que me importa. O diabo é deixar de viver.”
