Goiânia vive um novo capítulo na educação pública desde que a Lei nº 15.100/2025 entrou em vigor, proibindo o uso de celulares em todas as etapas da educação básica. A norma, que afeta mais de 47 milhões de estudantes em todo o Brasil, redesenhou a rotina escolar e trouxe reflexos para salas de aula, corredores e até no recreio. Se antes o aparelho era quase uma extensão do corpo de crianças e adolescentes, agora a vida escolar passou a resgatar algo que parecia perdido: a convivência e a concentração nos estudos.

O Jornal Opção percorreu três colégios estaduais de Goiânia para capturar o reflexo dessa transformação. A reportagem acompanhou de perto o cotidiano, conversou com gestores, professores e estudantes, e encontrou relatos que revelam tanto a resistência inicial quanto os efeitos positivos que já se fazem sentir nas rotinas escolares.

No Centro de Ensino em Período Integral Pré-Universitário, a mudança antecipou a legislação. A gestão escolar, em um movimento corajoso, implementou a restrição já no início de 2024. A coordenadora pedagógica Luciane de Oliveira Rodrigues narra o processo meticuloso que levou ao consenso. “Primeiro, foi uma reunião interna com os professores. Foram unânimes: o celular atrapalhava muito, especialmente no período da tarde. A falta de atenção era muito maior”, relata.

O próximo passo foi conquistar os pais. De aproximadamente 250 presentes, apenas uma mãe se opôs. O argumento da escola foi pedagógico e socioemocional: o prejuízo na aprendizagem, no relacionamento interpessoal e o alarmante estado da saúde mental dos adolescentes.

Coordenadora pedagógica, Luciane de Oliveira Rodrigues | Foto: Fábio Costa/ Jornal Opção

A resistência, previsivelmente, partiu dos alunos. Eles formaram comissões, pediram para voltar atrás. A escola manteve a firmeza. O protocolo foi estabelecido: os celulares são retidos na entrada com uma ficha de identificação e devolvidos ao final do dia. A exceção só ocorre para atividades pedagógicas previamente comunicadas.

Armário em que os celulares dos alunos ficam confiscados | Foto: Fábio Costa/ Jornal Opção

“Depois daquela primeira fase, foi muito bom. Percebemos que elevaram o nível de conhecimento e a interação entre os próprios estudantes”, comemora Luciane. Os professores relatam salas de aula mais participativas. A indisciplina que persiste, garantem, é de outra natureza, não mais alimentada pela distração digital.

O período de adaptação demandou paciência: cerca de três meses difíceis, todo o primeiro semestre de 2024. Hoje, a prática está internalizada. Tentativas de burlar a regra são eventuais e, curiosamente, denunciadas pelos próprios colegas. “Os próprios alunos denunciam. Eles já sabem”, diz a coordenadora.

A mudança de comportamento é visível até no horário do almoço. “Hoje em dia, os estudantes querem atividades mais lúdicas. Você vê rodas conversando, jogando baralho, dançando, lendo. Aumentou muito”, observa.

A escola, atenta ao turbilhão emocional adolescente, complementou a medida com suporte psicológico. Uma parceria com a PUC traz estagiários de Psicologia para conduzir sessões de terapia coletiva e orientação de futuro, focando no controle das emoções e na construção de projetos de vida.

“O professor em sala identifica uma possível fraqueza do estudante, passa para a gente, e a gente repassa. E eles trabalham essas emoções”, explica Luciane.

A voz dos alunos confirma a narrativa dos gestores. Helline Rodrigues Viana, 15 anos, do 1º ano, descreve o “primeiro impacto” como um susto. “Todo mundo achou muito ruim. Todos os adolescentes de hoje em dia têm muita abstinência no celular”. Seu colega David dos Santos, 16 anos, lembra que a transição foi gradual, mas a sensação inicial foi a mesma. A clareza, porém, veio com o tempo. “As pessoas têm a tendência de prestar mais atenção sem o celular, sem aquilo que te vicia, que te puxa a atenção”, analisa Helline.

Helline Rodrigues Viana | Foto: Fábio Costa/ Jornal Opção

David traz um testemunho sobre a qualidade do aprendizado. Ele cita uma colega transferida de São Paulo. “Lá ela pegava todas as respostas no ChatGPT, no Google. E aqui não tem isso. A proibição dos celulares realmente faz a gente pensar e é muito melhor na aula”.

Helline complementa, valorizando o esforço cognitivo: “Quando a gente tem o celular, as coisas são muito práticas. A gente não precisa tanto pensar… é muito melhor você procurar e o seu conhecimento vai crescendo”.

A sociabilidade é o outro pilar dessa transformação. “Sem o celular, automaticamente você tem que conhecer as pessoas”, reflete Helline. David observa a dinâmica nas eletivas: “Quando era o momento sem o celular, o pessoal interagia, ria, brincava”. Ele próprio teve uma experiência marcante: uma colega que, no 8º ano, “ficava só no celular, tipo, o tempo todo”. Com a proibição, ela começou a interagir, a fazer amizades. “A gente foi conhecendo mais ela”.

David dos Santos | Foto: Fábio Costa/ Jornal Opção

O professor de matemática Roldair dos Passos Filho, com 15 anos de casa, atesta a mudança da perspectiva docente. “A relação professor-aluno melhorou bastante”. Ele vê os alunos formando grupos de estudo, colaborando uns com os outros. “Por exemplo, questões que eles poderiam estar procurando no celular… eles perguntam para mim”.

O ambiente anterior era de dispersão constante. “Muitos pegavam para ficar jogando… era bastante complicado”. Ele também nota uma melhora no humor geral dos estudantes. “Mesmo com o celular que eles tanto gostam, parece que sem o celular o humor melhorou”.

Roldair dos Passos Filho | Foto: Fábio Costa/ Jornal Opção

No Colégio Estadual Nazir Safatle, a história se repete com nuances próprias. A proibição também foi antecipada, iniciada em fevereiro de 2023 após um processo de convencimento. “Não foi imposta. A gente conversou com eles”, afirma a coordenadora pedagógica Naiara Fernandes de Oliveira Ferreira.

A adaptação, segundo a auxiliar de coordenação Daiane Felix de Almeida, foi surpreendentemente rápida: “questão de um mês, dois meses no máximo”. Os próprios alunos, dizem, vieram reconhecer a melhoria.

O método de guarda é similar: celulares depositados em caixas na entrada, que são trancadas em um armário e só são liberados na saída ou para fins pedagógicos. A gestora Camila Noleto Guimarães Talon destaca que muitos sequer trazem os aparelhos. “Aqui tem quase 450 alunos em apenas 1 turno. Ali na caixa deve ter uns, no máximo, 100 celulares”. 

Ela credita a adesão ao ambiente acolhedor. “Eles entendem que a gente quer o bem deles. A gente nunca teve que ficar brigando por causa do telefone”.

A melhoria no foco e na interação social é o ponto unânime. “Antes, com o celular, eles ficavam todos ali. Cada um no seu mundo”, diz a coordenadora pedagógica, Silvaneide Morais Romeiro, a Sil Moraes. Sem os aparelhos, “eles conversam entre eles, eles fazem barulho, eles andam, eles circulam dentro da escola, fazem amizades. Melhorou bem”.

Camila revela que a medida não foi inicialmente consensual entre os professores. “Uns 30, 40% não concordavam. Achavam que a gente estava regredindo”. Dois meses depois, os mesmos professores elogiavam a decisão. “A melhora na sala de aula é visível”.

O vácuo deixado pelo celular foi preenchido por uma efervescência cultural espontânea. Daiane descreve um renascimento do Recreio Cultural, onde talentos dos estudantes surgem. “Eles trazem violão, coisas que não aconteciam antes… percebo muito mais interesse em atividades culturais”. 

Ela enumera: livros, dominó, cubo mágico. “O acesso à biblioteca também melhorou. Muito”. Naiara aponta uma mudança de hábito: o fim da “foto da tarefa”. “Eles tiravam foto do quadro. Não copiavam. Esperavam o professor responder, tiravam a foto, passavam no grupo… a sala inteira se acostumou com essa facilidade”. Agora, sem a muleta digital, “eles participam mais da aula, eles fazem atividade na aula junto com o professor”.

Os professores Victor Hugo Oliveira Magalhães (inglês), Katharine Nolasco da Silva (biologia) e Matheus Mendes de Castro (matemática) corroboram as observações. Victor relembra o desgaste constante de chamar a atenção. “Os meninos não sabiam como ficar nem 10 minutos sem olhar para o celular”. Katharine sente “uma diferença muito grande” no foco e na interação.

Matheus, que chegou quando a regra já vigorava, percebe “a grande diferença daqui para outros colégios”. Katharine destaca o fim da desculpa da “foto perdida”. “Agora eles só têm o momento da aula para fazer as anotações… eles precisam prestar atenção”.

Professores do Colégio Estadual Nazir Safatle | Foto: Guilherme Alves/ Jornal Opção

Victor faz uma ressalva importante, lembrando que a escola não opera um milagre isolado. “Os meninos ainda estão com esse déficit de atenção altíssimo que vem dos momentos em casa”. Matheus introduz um conceito compondo o pensamento dos colegas: “o tédio é importante porque cria a liberdade criativa”.

Os alunos Gabriel Oliveira Venâncio, de 16 anos, Rafaelly Oliveira dos Santos, de 17 anos, Marcos Pedro de Jesus Silva Martins, também de 16 anos, Kaio Gabriel Nunes Martins, de 17 anos, Ana Julia Guimaraes da Silva, de 17 anos e  Clara Venâncio Ramos, de 16 anos, ecoam o coro de adaptação inicial difícil seguida de reconhecimento dos benefícios. Gabriel, que vai direto para o trabalho, viu-se inicialmente “pasmo”. Marcos, que gostava de gravar videos esportivos, ficou “bravo”. Kaio, que depende do celular para seus cursos, levou um “choque”.

A percepção da melhoria, porém, é unânime. Gabriel fala da socialização redescoberta: “tem colega meu que falou, ‘nossa, tem uma mesa de pebolim aqui’. Porque quando tava com o celular, não tínhamos nem visto”.

“Ninguém fazia barulho, conversava, fazia nada. Aí no primeiro ano, quando eu vim pra cá, na época que ainda podia, eu percebi que ou ficava na sala, ou ia pra fora mostrar vídeo, gravar trend, essas coisas. Aí agora é muito melhor ter a barulheira, gente conversando pra lá e pra cá, é bem melhor”, completementa Marcos.

Para Kaio, a mudança também foi pessoal: “Quando eu cheguei aqui, eu só ficava no celular. Era um aluno muito quieto que não participava de quase nenhuma atividade com os professores, nem com os alunos. Então, tirar o celular fez eu abrir uma nova porta de possibilidades pra gente conseguir conversar e dialogar.”

Já Rafaelly faz uma análise aprofundada sobre o novo momento e conta que “o celular tirou bastante do retardamento mental dos alunos… a escola começou a voltar a ter aquele barulho que a gente tinha quando a gente era pequeno”. Ela ainda conecta a dependência ao trauma pandêmico: “a única forma de a gente se comunicar era pelo celular… ele acabou virando o nosso apoio emocional… um remédio para os nossos sentimentos”.

“Eu acho que é aquele ditado, né? A necessidade faz o sapo pular. A gente estava tão habituado com o celular o tempo todo ali, já acorda o celular na mão. E quando você vem para a escola e não tem o celular, a gente consegue se adaptar, eu consigo me socializar, eu tenho pessoas à minha volta especiais que eu posso manter uma amizade fora das telas”, diz Ana Júlia.

“Às vezes poderíamos usar o celular em datas específicas, alguma comemoração, alguma pessoa que vem aqui pra gente memorizar aquela confraternização ali, mas pelo contrário acredito que não daria muito certo. Se a gente pudesse voltar a usar o celular, seria em pior”, reflete Clara.

O ápice desta reportagem talvez esteja no Centro de Ensino em Período Integral Ary Ribeiro Valadão Filho, onde a proibição não é novidade, mas uma política de décadas. A coordenadora Denyse Vieira Agostinho, há 16 anos na unidade, afirma com naturalidade: “Desde sempre a gente prega esse não uso”. Lá, os alunos simplesmente não trazem os aparelhos. “Já faz parte da rotina”.

O espaço vazio é preenchido por uma infraestrutura de alternativas: pebolim, tênis de mesa, quadra, e acesso pedagógico à internet através de Chromebooks fornecidos pela escola.

“A gente tem, assim, um nível de conscientização muito grande. Quando eles estão ali, você pode ter certeza, eles estão ali fazendo o que é para ser feito. E quando não estão, ou quando surge algum que tenta não cumprir com o que é estabelecido, eles mesmos identificam”, afirma Denyse.

Denyse explica que o CEPI aposta no protagonismo dos estudantes como estratégia de engajamento. Um dos exemplos é o clube Ary News, projeto de comunicação que existe há dois anos.

Coordenadora Denyse Vieira Agostinho | Foto: Guilherme Alves/ Jornal Opção

“Então, a Escola Período Integral, ela tem um clube de protagonismo, que é o que a gente chama de PJ, né? Protagonista Juvenil. (…) Um desses clubes é chamado Ary News, que é o clube de comunicação da escola. Então, eles são alunos que são responsáveis por realizar as atividades dentro da escola de comunicação. Eles fazem os vídeos que a gente posta no Instagram, não qualquer vídeo, mas vídeos com uma pauta”, explicou Denyse.

O projeto já mobiliza alunos do nono ano ao terceiro ano do ensino médio, que produzem vídeos, campanhas educativas e registros de eventos escolares. Essa vivência, além de enriquecer o ambiente de aprendizado, prepara os jovens para desafios acadêmicos e profissionais.

Fernanda da Silva, Letícia da Silva, Clara Ferreira, João Pedro, Breno de Souza Nunes e Luiza Monteiro, integrantes do grupo, são a prova viva de que a proibição não significa alienação digital, mas sim seu uso consciente e produtivo.

“Eu acho que é muito importante a gente ficar sem o celular aqui, e isso já tem muito tempo. (…) Inclusive, eu tenho um amigo, que ele foi para outra escola e lá era permitido usar o celular, e ele falou como as pessoas não interagem assim, igual aqui”.

Luiza lembrou que, em sua escola anterior, o celular atrapalhava a convivência. “Acabava que, realmente, o que ela falou de não ter tanta interação. Quando eu vim para cá, eu percebi que eu converso muito mais com os colegas do que na outra escola. Além de que a chance de ter tanta fofoquinha rolando pela escola é bem menor”.

Para João Pedro, a participação no clube abriu até uma perspectiva de carreira: “Eu quero seguir nessa área de mídia, porque sempre tive interesse. Gosto de gravar, pegar ângulos bons. Isso é mais o meu hobby também, eu gosto muito”.

Eles também relatam uma mudança significativa em seus hábitos externos. “Eu, por exemplo, era muito viciada no meu celular. E aqui na escola… acaba que não sente falta”, confessa Leticia. Breno compartilha uma experiência pessoal: “Na pandemia, tive sérios problemas com isso… prejudiquei a minha visão. Hoje em dia… mexo no máximo umas três horas por dia”.

O CEPI Ary Ribeiro Valadão Filho conta com cerca de 660 estudantes distribuídos entre o ensino médio, séries finais do fundamental e cursos técnicos integrados. Ao longo de nove horas diárias, os alunos se dividem entre aulas regulares, disciplinas integradoras, estudo orientado e projetos de protagonismo.

O diferencial, segundo Denyse, está no clima da escola: “Eu acredito que o CEPI, ele proporciona ao aluno essa ideia do protagonismo. Então, eles se veem como fruto do próprio trabalho. (…) Eu acredito que seja uma escola que é referência na nossa região em relação a tudo que é planejado”.

As escolas públicas de Goiânia, cada uma à sua maneira, demonstram que é possível, sim, desconectar para reconectar. E nesse silêncio dos smartphones, ouve-se novamente o aumento do legado preciso e precioso dos colégios: o aprendizado e convivência.

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