Elder Dias e Marcos Aurélio Silva

Thiago Arantes respira futebol e jornalismo desde criança. Goianiense, filho de Orlando Carmo Arantes – repórter que marcou época na imprensa goiana –, ele mora desde 2013 em Barcelona, para onde seguiu com um interessante desafio: acompanhar de perto, pela ESPN, a carreira internacional do jovem Neymar, que deixava o Santos para jogar com Lionel Messi no lendário clube catalão.

Com graduação em Jornalismo pela Universidade de Brasília (UnB), Thiago já estava em São Paulo antes mesmo de concluir o curso. Sempre na área esportiva – também cobriu Fórmula 1 e automobilismo em geral –, tem no currículo, a partir de 2006, coberturas em Copas do Mundo e Jogos Olímpicos, trabalhando para Folha de S.Paulo, Agência Estado, ESPN e outros veículos. Depois de três anos na Catalunha, já fluente no idioma local, se tornou figura presente na mídia espanhola, comentando jogos e atuando como freelancer.

Agora, na Copa do Mundo, ele divide atenções entre o portal UOL e participações na TV, principalmente para falar da seleção brasileira. Mas, e então, o hexa vem? Nesta entrevista ao Jornal Opção, Thiago obviamente não garante nada, mas é taxativo: é a melhor seleção desde 2002. Naquele ano, o Brasil conquistou o penta. De certo, um alento para o futuro do esporte: “Tem uma geração nova muito boa que está chegando para substituir Messi e Cristiano Ronaldo.”

Casado com uma catalã, o jornalista fala também de outra paixão, não tão “correspondida”: o Goiás, seu único clube do coração, que um dia “in loco” em Avellaneda, na Grande Buenos Aires, viu ser derrotado pelo Independiente na fatídica final da Copa Sul-Americana, em 2010. “Até hoje, se encontro por aqui algum argentino torcedor do Independiente, digo que sou Racing [o arquirrival da mesma cidade]”, brinca.

Elder Dias – A seleção brasileira chega para esta Copa do Mundo melhor do que estava quatro anos atrás?

Chega melhor do que quatro anos atrás, do que oito anos atrás, do que doze anos atrás e até do que dezesseis anos atrás. Naquele ano de 2006 [Copa do Mundo da Alemanha], havia muitos nomes consagrados, mas num elenco que não funcionava bem e era um tanto descomprometido. Era um time que chegava àquele Mundial com muito favoritismo, com três craques que haviam sido ou seriam melhores do mundo – Ronaldo [Bola de Ouro em 1996, 1997 e 2002], Ronaldinho Gaúcho [2004 e 2005] e Kaká [2007] –, enfim, um nível muito alto. Só que não funcionou. Já sobre este time do técnico Tite, eu considerava que estava bem, pelos jogos das Eliminatórias, mas não estava achando que fosse alguma coisa extraordinária. Mudei de opinião ao acompanhar de perto, pelo UOL, os dois últimos amistosos, em Le Havre e Paris, contra Gana [vitória de 3 a 0] e Tunísia [goleada de 5 a 1]. Ali, pelo que observei nos treinamentos – também nos jogos, mas mais ainda nos treinos –, percebi que o Brasil está melhor do que eu imaginava. Chega melhor do que nas últimas quatro Copas. Se vai ter um desempenho melhor é outra coisa, não dá para saber. Mas, em termos de preparação e de nível atual dos jogadores, é o melhor Brasil dos últimos 20 anos, desde a seleção de 2002, que ganhou o penta.

Jornalista Thiago Arantes, em live do UOL sobre a contusão de Neymar em seu 1º jogo na Copa | Foto: Reprodução

Enganaram-se ao supor que a Copa levaria à abertura do Catar para o mundo

Marcos Aurélio Silva – A Copa ainda está na primeira semana, mas já podemos falar em alguma surpresa positiva ou decepção, dentro e fora de campo?

Se formos falar de tudo o que envolve o evento, a maior decepção é com certeza toda a polêmica dos direitos humanos no Catar. Algumas pessoas se enganaram ao supor que a Copa seria algo para levar à abertura do Catar para o mundo. Isso não vai acontecer e já é uma decepção fora de campo. Falando de futebol, especificamente, gostei da Inglaterra. Apesar dos dois gols que sofreu do Irã [o placar final foi 6 a 2 para os ingleses], é uma seleção de que eu tinha menos expectativas. Também a Espanha me agradou na estreia contra a Costa Rica [goleada de 7 a 0]. Embora o adversário seja a pior equipe ou, pelo menos, uma das três piores da Copa, já vi os espanhóis jogarem contra seleções ruins e não fazer o que fez nesse primeiro jogo, em que tudo funcionou muito bem.

Já a decepção do início é, sem dúvida, a Argentina – eu poderia até citar também a Alemanha, que perdeu para o Japão de virada [2 a 1], mas a seleção estava bem até a metade do segundo tempo, mas a mudança que o treinador [Hans Flick] fez não funcionou. Sobre os argentinos, achava – ainda acho, mas achava mais – que eles seriam um time para chegar no mínimo até uma semifinal, mas não funcionou absolutamente nada. Contra a Arábia Saudita [derrota por 2 a 1, também de virada], foram presos por uma estratégia que não tinha nada de extraordinária: o técnico adversário [Hervé Renard] avançou sua linha de zagueiros, afastando os atacantes da Argentina do gol e, com isso, conseguiu anulá-los de uma forma muito fácil.

Elder Dias – Os sauditas, que usaram uma estratégia camicase com essa linha de impedimento, têm uma particularidade que parece ser uma vantagem: a base da seleção titular é formada por um só time, o Al-Hilal.

Todo o elenco da seleção joga na Liga Saudita, 12 ou 13 no mesmo time. Jogam juntos há muito tempo, se conhecem, e tiveram 40 dias para treinar antes da Copa. Isso com um técnico que já dirigiu várias seleções do mesmo nível nesta vida, que conhece como fazer esse tipo de trabalho funcionar, como aquela linha de impedimento arriscada. É uma questão de inteligência em uma Copa em que foi lançado o impedimento eletrônico, que é ainda mais preciso, que pega diferença por centímetro. Em um cenário assim, poderia ser uma boa ideia adotar a linha contra a Argentina, como foi. Não se sabe se vai dar certo também contra Polônia e México.

Já do outro lado, para comparar a questão de preparação, o Messi estava jogando na liga francesa dez dias atrás. Além disso, a Argentina perdeu o [meia] Lo Celso porque se machucou na preparação.

Elder Dias – A seleção da casa também teve bastante tempo para se preparar. Mas o Catar passou a impressão de muito nervosismo. Não que se esperasse muito, mas os anfitriões já estão eliminados. Decepcionaram?

Eu fui um dos que caíram no conto do Catar. Achei que, por ter tido mais tempo e, em tese, por ter mais conjunto – estão treinando há três meses –, se sairiam melhor. Ora, fizeram amistosos contra seleções europeias, contra sul-americanos. No segundo tempo contra o Equador, o Catar melhorou um pouco diante do desastre do primeiro [derrota por 2 a 0, com gols na etapa inicial], mas realmente foi uma estreia muito ruim. E eu foi bem cobrado por alguns amigos porque um dia antes falei que a seleção deles não seria tão ruim quanto parecia. Mas justifico: um dia antes do jogo contra o Equador, eu assisti o vídeo da final da Copa da Ásia de 2019, quando o Catar ganhou o título derrotando por 3 a 1 esse mesmo Japão que venceu a Alemanha agora. Mas isso é o bonito do futebol, você pode procurar lógica, mas não vai encontrar nenhuma.

Pelé foi para os EUA há quase 50 anos e lá ainda não aprenderam a jogar

Elder Dias – Uma questão que esbarra nisso é o “enigma”, vamos dizer assim, de países que investem muito dinheiro no futebol, mas suas seleções parecem nunca evoluir e geralmente fracassam totalmente nas Copas. As ligas árabes, em geral, são muito ricas. China e Índia são superpopulosas e têm ligas bilionárias. O que faz essas nações gigantes não evoluírem no futebol de seleções, enquanto o Uruguai, com seus 3,5 milhões de habitantes – a metade da população de Goiás –, lá atrás ganharam duas Olimpíadas e duas Copas do Mundo, mas sempre foram uma equipe respeitada?

Se pegarmos os dez maiores times da liga chinesa – hoje menos, talvez, porque financeiramente houve uma redução –, vamos ver que os cinco melhores jogadores de cada um são de fora, vêm do exterior. Futebol se aprende indo aonde se joga bem, não importando jogadores de qualquer jeito, para que, de repente, eles “ensinem” os atletas locais. Zico [maior jogador da história do Flamengo e principal nome da seleção brasileira nos anos 80] foi para o Japão 30 anos atrás e eles continuam sem chegar a uma fase de quartas-de-final numa Copa do Mundo. Pelé foi para os Estados Unidos há quase 50 anos e lá ainda não aprenderam a jogar futebol nem mesmo em 10% do nível que ele tinha.

Ao mesmo tempo, se olharmos para o que o Uruguai tem, vemos Valverde [meia] como titular do Real Madrid; Betancur [meia] está no Tottenham [da Premier League, Inglaterra] Darwin Núñez [atacante] joga no Liverpool [também da Premier League]. O segredo é ir aonde se joga o melhor futebol do mundo. A Índia e a China não fazem isso, os países árabes, também não. Como já falamos, a seleção inteira da Arábia Saudita atua na própria liga. É preciso estar onde estão os melhores, onde há mais estrutura, mais tradição, melhores jogos. Não adianta um time chinês ter quatro jogadores da seleção brasileira, mas tendo lá outros sete chineses que só jogaram futebol na China a vida inteira. Sem intercâmbio assim, é muito difícil.

Os selecionados africanos não são mais aquilo que diziam deles – “inocentes”, “ingênuos”, “irresponsáveis”, coisas assim – no início dos anos 90, quando havia muitos atletas jogando em seu próprio continente. Isso não existe mais. Hoje, o Senegal tem Koulibaly [zagueiro], que era capitão do Napoli [Itália] e agora está no Chelsea [da Premier League]; tem Gana Gueye [volante], que agora está no Everton [também da Premier League], depois de muito tempo como titular do PSG [França]. Já o Marrocos tem Hakimi [PSG], por exemplo, talvez o melhor lateral-direito do mundo hoje, ou pelo menos um dos três melhores. Então, o segredo é jogar onde estão os melhores.

Elder Dias – No Grupo G, em que o Brasil está, a Sérvia, que o Brasil venceu, seria mesmo o adversário mais perigoso?

Sim, a Sérvia é a seleção mais forte do grupo depois do Brasil. Mais do que isso, entre as seleções que podemos considerar como a “segunda linha” da Europa, é uma das mais destacadas. É mais forte do que a Croácia, por exemplo e, no mínimo igual à Bélgica de hoje – não a Bélgica de 2018. Os sérvios têm dois atacantes que são de nível muito alto no futebol europeu: Mitrovic [do Fulham, que disputa a Premier League, 1ª divisão da Inglaterra], aquele tipo de jogador que as pessoas dizem que “fede” gol; e Vlahovic, da Juventus, que só entrou no segundo tempo contra o Brasil, mas tem bastante vigor, é jovem, alto e muito rápido, um dos que mais lembram Haaland [atacante norueguês do Manchester City, uma das maiores revelações do futebol mundial dos últimos tempos] – que não está na Copa, não sei se felizmente ou infelizmente (risos). Em relação às demais equipes do grupo, Suíça e Camarões, vejo a Sérvia bem para passar para a próxima fase.

Elder Dias – Depois de uma semana de Copa, dá para ter alguns sinais sobre os rumos que a competição vai tomar, em termos de competitividade?

É difícil ter conclusões muito fechadas ainda neste começo, mas podemos dizer alguma coisa. A primeira conclusão desde já é que o futebol está muito mais universal. Hoje tem uma Arábia Saudita que vira um jogo para cima da Argentina, um Marrocos que joga de igual para igual com a Croácia, um Canadá que ameaça a Bélgica. Não gosto daquela frase “não tem mais bobo no futebol”, porque é muito manjada. Não é isso, claro que tem “bobo” – tem o Catar que fez um jogo horrível, ou a Costa Rica, que levou 7 da Espanha. Mas hoje o Japão tem vários jogadores no futebol alemão, ou a seleção do Canadá tendo o Alphonso Davies [lateral-esquerdo] no Bayern de Munique e o Stephen Eustaquio [meia], que joga no Porto. Não acho que alguma dessas seleções vão chegar a uma final ou semifinal, mas vemos que o futebol tem se democratizado um pouco mais. Só que antes a gente via um índice de 70% ou 80% de vitorias de europeus e sul-americanos sobre as seleções de outros continentes, hoje isso é bem menor. Veja a Dinamarca, com todo mundo dizendo que seria uma grande seleção nesta Copa e estreou empatando com a Tunísia [placar de 0 a 0].

Vivemos uma Copa de passagem, de transição de gerações

Marcos Aurélio Silva – Há uma nova geração de muitos talentos em vários países se apresentando em campo, também.

Essa é a segunda conclusão que podemos tirar. Tem uma geração nova muito boa que está chegando para substituir Messi e Cristiano Ronaldo, que estão fazendo a última Copa. Não sabemos ainda quem vai se firmar ao longo dos anos, mas o Brasil tem Vinícius Júnior, Rodrygo [atacantes, 22 e 21 anos respectivamente, ambos do Real Madrid], Anthony [atacante, 22 anos, Manchester United] e outros; a Inglaterra traz, por exemplo, Bellingham [meia, 19 anos, Borussia Dortmund]; a Espanha tem Pedri e Gavi [ambos meias do Barcelona, 20 e 18 anos respectivamente], dois garotos, também; a Alemanha mostra Musiala [meia, 19 anos, Bayern] e Mokouko [atacante, 18 anos, Dortmund], que até outro dia estava no sub-16 de sua seleção. E temos o maior jogador jovem de todos – que nem falamos mais dele assim, porque já parece que tem 25 anos, apesar de só ter 22 –, que é Mbappé [atacante, PSG], que na estreia da França [4 a 1 sobre a Austrália] já mostrou do que é capaz, mesmo ofuscado pelos dois gols de Giroud, e é alguém que está no Catar para ser uma das estrelas. Vamos viver uma Copa de passagem, de transição de gerações.

Marcos Aurélio Silva – E o desempenho da seleção brasileira em si e em relação às demais concorrentes ao título?

Contra a Sérvia, a seleção confirmou a condição de uma das favoritas nesta Copa. Se formos pensar nas quatro equipes que jogaram acima da média – também Inglaterra, Espanha e França –, o Brasil é de longe o que teve o adversário mais complicado. Os sérvios, por mais que tenham jogado de forma defensiva, fora de sua característica, fizeram o Brasil sofrer no primeiro tempo, coisa que nem Austrália, nem Irã nem Costa Rica conseguiram contra França, Inglaterra e Espanha, respectivamente. Vamos ter uma dimensão maior do que foi essa vitória brasileira caso a Sérvia confirme a expectativa e faça uma boa Copa do Mundo. Pensando em geral, a Espanha é a que mais encantou nesse começo porque teve um rival que deu lhe espaço para fazer exatamente o que queria. A seleção brasileira não teve isso, teve de forçar para conseguir, fazendo com que o time sérvio começasse a ter de correr demais atrás da bola. Daí, o sistema defensivo foi desmoronando, com os jogadores brasileiros encontrando os espaços. A Espanha e a França não tiveram essa dificuldade, nem mesmo a Inglaterra. Nesse começo, vejo que a os espanhóis jogaram o futebol mais vistoso – o que obviamente pode mudar com a sequência – e o Brasil confirmou a condição de favorito ao título, porque venceu bem o melhor adversário.

Marcos Aurélio Silva – Como você vê toda essa tecnologia cada vez mais “dentro” do futebol? É algo que chega para ficar e, mais do que isso, para contribuir mesmo?

A gente está no meio de um processo que vai ser um pouco traumático. É o de as grandes competições de futebol terem cada vez mais a ajuda da tecnologia. Sei que têm erros, não sou fã cego do VAR [“árbitro assistente de vídeo”, em inglês], mas vejo com bons olhos essa etapa. Estamos dentro de algo que vai acabar funcionando, de uma forma mais fluida.

Hoje, as pessoas reclamam do pênalti marcado por um empurrão em um escanteio, porque, dizem, se for assim vão ter de marcar cem pênaltis por jogo. Não, se começarem a marcar um ou dois pênaltis no mesmo jogo não vão apitar cem vezes, porque os jogadores vão parar de se segurar nos escanteios. Não está na regra do jogo que é permitido abraçar seu rival para ele não pular quando for cobrado um escanteio. Foi uma regra não escrita “criada” pelos próprios atletas porque ninguém marcava pênalti nesse tipo de lance. Agora que estão marcando, vejo que é interessante, porque beneficia o ataque, já que o jogador que abraça o outro é quase sempre o defensor. Se começa a haver punição, o ataque será privilegiado.

Ainda tem muita coisa a melhorar – o gráfico do chamado impedimento automático, por exemplo, ainda é um pouco confuso –, talvez devessem ter testado as novidades antes da Copa. Competições como a Eurocopa ou a extinta Copa das Confederações poderiam servir para isso, mas não sou “anti-VAR” como muita gente, gosto da tecnologia. Prefiro ficar dez minutos esperando o VAR a passar a vida inteira reclamando de um erro de arbitragem.

Elder Dias – Qual sua visão sobre uma Copa do Mundo com 48 seleções, como a Fifa já decidiu que será a partir de 2026?

Não gosto. Copa do Mundo precisa ser uma coisa exclusiva. A gente tem de ter orgulho de estar na Copa, precisa ter prazer em falar que vem de um País que é o único a ter participado de todos os mundiais, como falo para meus amigos estrangeiros aqui. Se a Conmebol [Confederação Sul-Americana de Futebol] tiver direito a sete ou oito vagas, isso vai deixar de ser um orgulho. Outra questão é que o nível técnico cai muito. É importante dar chance a seleções menores de participar da festa do futebol, mas não em uma Copa do Mundo. Talvez a saída seria criar um novo torneio com quem não vai à Copa, mas aumentar o número de participantes me parece um erro terrível, como disse, não só pela questão técnica em si, mas também pelo formato: estão querendo fazer 16 grupos de três times cada, com classificação dos dois primeiros, aumentando um jogo de mata-mata. Se hoje já há dificuldade na fase de grupos, com equipes jogando com um medo danado de perder o primeiro jogo, imagine então como ficará mais grave a situação de uma fase em que só há dois jogo para cada time. No primeiro, vai todo mundo estar com as costas na parede, porque, se perder, já acabou.

Tentei pensar em ideia pior que essa (Copa de 2 em 2 anos), mas não consegui

Elder Dias – Outra ideia que passou pela Fifa é a de transformar a Copa em um torneio bienal. Enfim, uma Copa do Mundo de dois em dois anos. Essa ideia ainda persiste?

Acho que sim, ainda, mas não se fala mais tanto nisso. Tentei pensar nos últimos anos em uma ideia pior do que essa, mas não consegui. Se alguém quiser destruir a Copa do Mundo, esse é o caminho. É que, ao mesmo tempo, acaba com a expectativa em torno do evento, no sentido de ter de esperar quatro anos, de fazer um ciclo de preparação, Eliminatórias, tudo que circula a Copa e que já ficará abalado com um Mundial tendo 48 seleções. Só que de dois em dois anos acabam também Eurocopa, Copa América – que, aliás, já está bem sem graça, quase todo ano tem. E a Champions League, como vai se organizar no calendário?

Eu entendo a ânsia de algumas pessoas em querer ver Copa a cada dois anos, parece legal. Só que, na verdade, é muito legal porque Copa ocorre a cada quatro anos. Se for pensar na própria vida, em cada Copa você vai estar em uma fase diferente. Tem a Copa dos 7 anos, a primeira que você vive; depois, vem a Copa dos 11 anos, da adolescência; depois a dos 15, quando você começa a se interessar por outras coisas, mas ainda gosta do torneio; depois tem a Copa da faculdade, a do começo no trabalho e assim em diante. A gente, que gosta de futebol, vai marcando a própria vida em torno das Copas do Mundo. De repente, se lembra que, quando estava se casando, era na época daquela Copa, e se lembra da anterior, a última como solteiro. Fazer isso de dois em dois anos é destruir esses ciclos. E o ciclo da Copa é muito importante para quem gosta de futebol.

Elder Dias – Os acontecimentos políticos no Brasil dos últimos tempos envolveram a apropriação da camisa da seleção brasileira por um dos lados da disputa, extremamente polarizada. Até que ponto isso pode ter realmente chamuscado a paixão das pessoas em relação a torcer numa Copa?

Realmente isso deixou sequelas. Não acho que isso vá mudar de uma hora para outra, mas espero que a Copa seja um começo dessa reconquista da camisa da seleção brasileira por toda a população. E é algo que precisa ser feito, porque ela é do povo brasileiro em sua totalidade, não é de 49,1% dos votos válidos em uma eleição. A camisa precisa ser recuperada.

Na Espanha ocorre algo semelhante. Os partidos de extrema-direita capturaram a bandeira nacional, os símbolos espanhóis, da mesma forma. Na Catalunha, região de Barcelona, é ainda pior, porque é um lugar que tem um conflito, onde há uma parte da população que quer a declaração de independência. No Brasil, o fato de ter uma Copa logo após uma eleição ajuda positivamente nessa reconquista. E isso será muito mais fácil se Tite e seus 26 convocados também ajudarem em campo. Se o Brasil cai cedo na Copa, fica sem sentido. Mas, com quase um mês de Brasil na Copa do Mundo, pouco a pouco vamos conseguir reconquistar a união por essa camisa.

Elder Dias – A torcida brasileira nunca teve com um jogador tal relação de amor e ódio como tem com Neymar. Seu posicionamento nas eleições [o craque apoiou e fez campanha nas redes sociais por Jair Bolsonaro (PL)] só agravou esse quadro. Como analisar esse “personagem”, que às vezes parece tão vazio e ao mesmo tempo tão complexo?

Neymar inaugura uma nova era não só na seleção, mas no futebol e no esporte brasileiro, na qual há um superídolo sobre o qual se sabe a opinião dele sobre tudo. Não era assim quando Romário ou Ronaldo jogavam, que tipo de posicionamento político eles tinham. Hoje nós sabemos o posicionamento político de Romário [hoje político, senador do Podemos do Rio e apoiador de Bolsonaro], mas em 1994 nós não sabíamos. E era um tempo em que isso não faria diferença, não seria nem mais amado nem mais odiado por isso se ele votasse em Lula ou em Fernando Henrique [candidatos nas eleições presidenciais de 1994].

Antes de ser um grande jogador de futebol, Neymar é um pop star. Se vai a um grande evento, fica no camarote de artistas famosos mundialmente, de gente como Lewis Hamilton [piloto inglês, oito vezes campeão de F-1]

Tem toda a questão de publicidade e do dinheiro que ganham com isso. É outro tempo, outra época, e Neymar é um produto desta época. Isso faz com que ele esteja sempre mais exposto, é o jogador brasileiro mais exposto de todos os tempos. Todos têm uma opinião sobre Neymar, todos sabem a opinião dele sobre tudo e todos querem comentar a opinião dele sobre tudo. Uma vez ele disse que “era muito difícil ser Neymar”. Parece vitimismo, mas realmente é difícil, porque é ele quem abre esse caminho no Brasil, como LeBron James [jogador de basquete da NBA] fez nos Estados Unidos e, talvez, como Rafael Nadal, na Espanha.

Neymar está sendo julgado e será sempre julgado por seus atos, positiva ou negativamente, e isso cria essa dicotomia como você falou, de um personagem ao mesmo tempo tão vazio e tão rico. Talvez no futuro vamos avaliar o caso de Neymar como existe hoje com Michael Jordan [considerado o maior jogador de basquete de todos os tempos], para a questão do marketing esportivo e até para nós, que trabalhamos com jornalismo esportivo. É um personagem que, nesse sentido, tento sempre estudá-lo, porque é um ponto de vista fascinante.

Marcos Aurélio Silva – Como jornalista, sua saída do Brasil mudou sua visão sobre o futebol e a própria imprensa esportiva?

É uma boa pergunta. Creio que não tem como mudar, porque é uma questão de perspectiva: estando no Brasil, a visão sobre a cobertura é uma, “de dentro”; quando a gente sai, de fora o olhar muda. É como se você estivesse jogando em campo e, depois, sair e ver o mesmo jogo da arquibancada. O panorama é totalmente outro. O que pude observar, de fora, é que a imprensa brasileira é muito boa. Comparando-a à mídia espanhola, aqui tem uma coisa que não gosto, mas que funciona para eles e faz vender: o jornal – não apenas um jornalista – totalmente torcedor, institucionalizado para defender um time. Nos principais jornais da Catalunha – o “Sport” e o “Mundo Deportivo” –, se o Real Madrid for campeão mundial e o Barcelona contratar um lateral-esquerdo reserva no mesmo dia –, a manchete será sobre o nome reforço do Barcelona. São institucionalizados para o time da região, e da mesma forma acontece com os veículos de Madri.

Continuando a falar primeiro da parte ruim (risos), as mesas-redondas aqui têm uma cultura de debate esportivo em que sempre há um comentarista torcedor de cada time, alguém que toda vez vai falar bem do Barcelona e outro que sempre vai falar bem do Real Madrid. Para a cobertura é algo ruim porque deixa tudo muito polarizado. Muita história boa dos demais times acaba perdida.

Por outro lado, vejo aqui algumas iniciativas que não existem no Brasil, porque infelizmente não têm público nem investimento. Na Espanha, temos duas revistas mensais de futebol, a “Líbero” e a “Panenka”, que saem com perfis de jogadores, com entrevistas grandes. São publicações que tentam trazer para o futebol um pouco de “new journalism”, como havia nos Estados Unidos dos anos 50 e 60. Acho muito válido. Há outras iniciativas, como o “The Players’ Tribune”, um site que reúne depoimentos em primeira pessoa de jogadores, e o “The Athletic”, que faz uma cobertura mais aprofundada de vários temas dentro do esporte. Eu diria que aqui tem muita coisa que poderia inspirar a imprensa brasileira – embora possa ser que não haja tanto público para isso, mas é preciso tentar – e também tem muita coisa que mostra para o Brasil como “não” fazer. Estando aqui, vejo que o jornalismo profissional brasileiro é muito bem feito. Poderia ser melhor, mas, pensando no que eu vejo aqui em relação a clubes médios, por exemplo, por mais que a gente reclame – e eu me incluo nisso, no fato de que a ESPN ou a Globo não dê ao Goiás uma cobertura maior, ou ao Bahia ou Sport, ou outros times fora do Eixo –, eu vejo que aqui é bem pior nesse sentido e que, no Brasil, quando fazem, sai bem feito.

Na Premier League também torço para o Goiás

Elder Dias – Você é torcedor “monogâmico” do Goiás Esporte Clube. Como é ser esmeraldino na Europa?

Não tenho outro time. Então, quando eu falo que torço para o Goiás, geralmente a primeira reação do sujeito é – caso goste muito de futebol e, por isso, tenha alguma referência do time – se lembrar “ah, o Goiás, aquele time que mandou uns caras para o PSG no início dos anos 90?”, ou algo assim. Se a conversa evolui nesse assunto, então me perguntam: “Tá, mas e na Premier League, você torce para quem?” Ora, lá eu também torço para o Goiás (risos). Para mim, tem sido mais fácil ser esmeraldino aqui na Espanha e eu explico por quê: é que infelizmente o torcedor do Goiás sofre vendo o time jogar nos últimos tempos e, por causa do horário, eu tenho assistido menos aos jogos. Vejo os melhores momentos no outro dia, ou algo assim, leio alguma coisa, acompanho o noticiário, mas não consigo ver todas as partidas na íntegra como antes – até montei um equipamento para isso, mas não tenho como acompanhar sempre.

Meu círculo de amigos aqui tem muita gente que vive o futebol e é legal para eles falar que conhecem um brasileiro torcedor do Goiás. É como encontrar um espanhol no Brasil que não fosse nem Barcelona nem Real Madrid, que torcesse para o Celta, ou para o Elche ou, ainda, para o Eibar (risos). Acabo sendo visto como um “personagem de referência”, alguém diferente nesse sentido. Aqui na Espanha, sobre o futebol brasileiro, fala-se muito do Santos, por causa de Pelé – que arrastou essa fama até hoje –, e, por conta da transmissão da Copa Libertadores pela TV, conhecem Palmeiras, Flamengo, Corinthians, São Paulo. Só tenho problemas mesmo aqui quando fico conhecendo algum argentino que torça para o Independiente [clube argentino de Avellaneda, região metropolitana de Buenos Aires, que derrotou o Goiás na final da Copa Sul-Americana de 2010]. Para eles, eu digo que sou torcedor do Racing [maior rival do Independiente, também de Avellaneda]. É meu segundo time. (risos)

Elder Dias – Uma pergunta tão clássica quanto óbvia para um amante do futebol: você tem de escolher um na pelada da turma, Messi ou Cristiano Ronaldo?

Já me fizeram essa pergunta várias vezes e sempre a respondo de um ponto de vista absolutamente pessoal: eu ficaria com Messi, mas entendo totalmente quem escolheria Cristiano Ronaldo. São jogadores de estilos muito diferentes. Cristiano Ronaldo se transformou em um fazedor de gols, depois de começar a carreira como um ponta driblador. Messi iniciou jogando pelos lados, depois virou o chamado “falso 9” e hoje, além de fazer gols, serve a todo o time, dá muitos passes. Como eu gosto de ser centroavante, de fazer gols quando jogo futebol, eu preferiria Messi, porque ele me daria a bola para meus gols.  

Entendo perfeitamente os argumentos de quem é pró-Cristiano Ronaldo. A escolha é totalmente pessoal e penso que não existe uma diferença muito grande entre os dois no futebol. E acho também que ambos são enormes na história do esporte e que só vamos entender essa dimensão quando eles pararem, um momento que está cada vez mais próximo. Fazer lista de todas as épocas é sempre algo muito difícil, mas em várias delas os dois estarão entre os dez maiores da história, talvez até entre os cinco.