Nelson Galvão e Werikson Rodrigues: “Servidores heroicos do Ibama evitaram situação calamitosa”

01 outubro 2023 às 00h01

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Edson Leite Junior, Italo Wolff e Ton Paulo
Nelson Galvão tomou posse no dia 18 de setembro como novo superintendente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em Goiás. Nomeado pela ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva (Rede), por indicação de Adriana Accorsi (PT), Galvão assume o órgão que, segundo ele próprio, foi desmontado e utilizado com fins políticos nos anos do governo de Jair Bolsonaro (PL). Seu desejo, ele afirma, é contribuir com o fortalecimento do instituto e melhorar seu relacionamento com outros entes governamentais.
Werikson Rodrigues Trigueiro é o atual superintendente substituto do Ibama em Goiás e atuou como superintendente interino por nove meses. Assumiu em janeiro de 2023, quando o antigo superintendente foi afastado por denuncias de assédio moral aos servidores do órgão e por fazer uso político de recursos apreendidas pelo Ibama. Werikson Rodrigues Trigueiro é servidor de carreira, mestre em Recursos Naturais do Cerrado pela Universidade Estadual de Goiás (UEG) e já foi fiscal e gestor ambiental nas unidades do Ibama em Mato Grosso.
Nesta entrevista ao Jornal Opção, a dupla explica o funcionamento do órgão e enumera seus principais desafios. Da interlocução com as esferas locais à recomposição orçamentária, as lista de prioridades do instituto é tão extensa quanto as responsabilidades de seus servidores.
Ton Paulo — Em qual situação o senhor encontrou a superintendência do Ibama em Goiás?
Nelson Galvão — Não está diferente dos outros órgãos federais em Goiás. Nos quatro anos que precederam o governo Lula da Silva (PT) houve um sucateamento a olhos vistos. Hoje, a superintendência do Ibama no estado se encontra com problemas de falta de estrutura e de pessoal, além de um desânimo muito grande pelo período de desmonte das políticas ambientais. Se não fosse pelos servidores heroicos que brigaram para manter o órgão funcionando, a situação estaria calamitosa.
Chegamos ao cúmulo de os servidores pedirem a saída de um superintendente que agia para tirar as coisas dos trilhos. O governo anterior colocou muito muitos dirigentes que não tinham nenhuma experiência de administração pública e que, pior, agiam de má fé. Isso penaliza o servidor de carreira, que quer fazer um trabalho sério. A má fé é pior do que a inexperiência com a área, porque é possível aprender a ser um administrador público, mas os princípios éticos são mais difíceis de se ensinar.
Italo Wolff — A principal razão que causou o afastamento do ex-superintendente do Ibama em Goiás foi a falta de critérios para destinação de bens apreendidos. Há possibilidade de adotar maior transparência nessa destinação sumária?
Werikson Rodrigues Trigueiro — Sim, existe uma forma de dar mais transparência a este processo. Há uma instrução normativa de 2014 que prevê a criação de um sistema informatizado para controle e destinação de bens apreendidos. No entanto, a instrução normativa foi criada, mas o sistema eletrônico não; e tudo atualmente é feito de forma manual.
Por exemplo: se a prefeitura de Goiânia pedir madeira ao Ibama, ela vai para um cadastro de solicitação de madeira, onde listamos em planilhas os pedidos desse recurso e sua finalidade. O que aconteceu na gestão passada foi a manipulação dessa lista pelo gestor e o direcionamento dos recursos apreendidos para quem ele queria. Quando se fazia a doação de madeira, o deputado que havia indicado o ex-superintendente ia aos municípios fazer propaganda política com a madeira doada pelo Ibama.
Acontecia de esse gestor enviar a madeira para locais distantes de onde acontecia a apreensão. Isso trazia custos e riscos para o Ibama, que precisava destacar um servidor para levar a madeira a até 500 km de distância. Não é fácil transportar toneladas de uma carga apreendida, frequentemente acima do peso suportado pelo caminhão interceptado. Frequentemente o caminhão estragava no caminho.

Entretanto, os critérios para destinação são bem definidos e levam em conta a proximidade do local da apreensão e a data que cada entidade fez o pedido do recurso. No entanto, o sistema eletrônico que permitirá a publicidade e transparência a esse processo ainda não foi criado.
O Ibama deveria fazer um contrato com uma a empresa que irá criar esse sistema eletrônico, mas ainda não tivemos recursos ou a autorização para fazer esse contrato. O governo federal nos deu a previsão de que poderemos fazer isso no futuro com recursos do Fundo Amazônia.
O Ibama não tem benefícios por fazer a doação. Na verdade, o benefício é pra sociedade, e até por isso a prioridade não é promover um leilão com madeira apreendida, mas fazer a doação, para que a sociedade seja compensada pelo prejuízo que sofreu com aquela degradação ambiental.
Ton Paulo — O senhor pretende fazer alguma reformulação na pasta?
Nelson Galvão — Não é necessário, pois as mudanças emergenciais já foram feitas. A superintendência do Ibama desenvolveu uma organização desde sua criação, em 1989, que funciona. Com o passar do tempo, seus procedimentos de trabalho e estruturas vão se aprimorando no regimento interno de forma que cada superintendente não precisa modificar a estrutura quando assume.
Edson Leite Jr — Além do sucateamento, qual o maior desafio do Ibama hoje?
Nelson Galvão — O maior desafio dos órgãos de defesa do Meio Ambiente, não só em Goiás mas em todo o mundo, é a emergência climática. São as mudanças no clima provocadas pela ação humana que implicam justamente na necessidade de uma fiscalização mais rígida e de cobrança maior para que sejam cumpridas as leis que existem. O Brasil tem leis ambientais rígidas, mas temos dificuldades para garantir seu cumprimento.
Então, hoje, temos conflitos com o Estado em função do cumprimento da legislação. Somos o órgão executor, não definimos essas leis rígidas, mas os estados e os municípios têm criado leis conflitantes com esferas superiores e esse atrito causa a dificuldade na atuação dos fiscais. Hoje, a legislação federal dá um poder grande ao fiscal, o que é justo e necessário para que possa agir, mas o Executivo local ameaça responsabilizá-lo pelo descumprimento dessas leis conflitantes.
Como é que faz? Nós temos de sentar à mesa e conversar com órgãos do estado e municípios para encontrar um meio de garantir a defesa do meio ambiente. Precisamos que as providências sejam tomadas, em muitos casos com regulamentação dessa legislação.
Edson Leite Jr — Na opinião do senhor esse desalinhamento foi causado por uma legislação frouxa nos estados e municípios?
Nelson Galvão — Foi causada porque temos três esferas de leis feitas por entes com interesses próprios. Não vou falar da legislação estadual e nem municipal. Posso falar da legislação federal, que é a esfera onde o Ibama está inserido e posso falar do problema, que é o conflito. Onde tem conflito, todo mundo perde, principalmente o cidadão, que perde o patrimônio ambiental.
Italo Wolff — Para que fique claro: o senhor se refere, por exemplo, à Lei Estadual 22.107/23 que instituiu a “nova Política Florestal de Goiás” e que está sendo analisada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), provocado por Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI)?
Werikson Rodrigues Trigueiro — Sim. Em nível federal, há o Cadastro Ambiental Rural (Car) desde 2012. O que eles fizeram agora foi criar paralelamente um registro estadual, chamado Declaração Ambiental do Imóvel (Dai). É uma nova forma de regularização de áreas desmatadas que o estado criou. Já existia o cadastro federal e o estado não analisou as solicitações de validação. Analisar essas solicitações poderia gerar pendências como passivos ambientais nos imóveis de produtores. Criar a Declaração Ambiental do Imóvel foi uma forma de fazer a regularização que não estava prevista na legislação federal.

Italo Wolff — Qual a perspectiva para esse conflito?
Nelson Galvão — O Ibama é apenas o órgão executor. Agora, vamos esperar uma definição do Judiciário, que é quem vai se pronunciar quanto a isso. O STF foi acionado pelo partido Rede Sustentabilidade nessa ADI e o ministro Cristiano Zanin solicitou mais informações. Quando esses conflitos acontecem, as pessoas interessadas que estão com alguma pendência ambiental pensam que são os órgãos executores que estão causando problemas, mas dependemos de uma determinação legal.
Ton Paulo — Às vésperas de sua posse no instituto, o senhor se reuniu com a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. Como foi essa conversa? O senhor ficou incumbido de alguma missão específica?
Nelson Galvão — Não. A minha ida ao Ministério do Meio Ambiente teve o propósito de me apresentar à ministra, porque fui nomeado por ela. Sou o superintendente estadual e a minha subordinação hierárquica é diretamente ao presidente do Ibama, mas a nossa subordinação política é à ministra do Meio Ambiente, e há uma integração total nessa área. As diretrizes e objetivos são os mesmos.
O cargo foi disputado. Vale lembrar que nós não temos uma base confortável no Congresso Nacional e os cargos deste escalão estão em negociação política. Aliás, Lula ainda não equacionou totalmente a questão da entrada dos partidos na base de seu governo. Então, essa disputa pela superintendência do Ibama em Goiás passou também pela composição da base no Congresso Nacional.
Quanto as ações, estas continuam sendo as que já foram definidas e estão sendo muito bem implementadas pela equipe do Ibama. O planejamento é pensado em longo prazo.
Ton Paulo — Acredita que a ministra Marina Silva tenha conseguido colocar a pauta ambiental na lista de prioridades do governo?
Sem dúvidas. A ministra Marina Silva é mundialmente respeitada porque tem uma vida dedicada à defesa desta causa. Politicamente, é uma pauta muito complicada de se defender, porque há diversos interesses contrários, mas a ministra é uma pessoa muito combativa, firme e competente.
A dificuldade é lidar com os interesses do Congresso, que tem uma força cada vez maior nesse nosso presidencialismo. Mas a questão é que Marina Silva defende um tema de interesse mundial, e não de interesse de setores do Congresso. O planeta precisa que o Brasil encare o tema das mudanças climáticas.
Edson Leite Jr — Qual o tamanho do Ibama em Goiás?
Werikson Rodrigues Trigueiro — No início de outubro, será chamado o restante dos aprovados no último concurso de técnico ambiental, e só então será possível a autorização para se realizar um novo concurso público. Nesse chamamento, são mais de mil e duzentas vagas para o Brasil todo, que não foram distribuídas. Temos 90 servidores no total, e 12 agentes ambientais. Porém, desses 90 servidores que existem aqui, dez são autoridades julgadoras que recebem processos inclusive da Amazônia.
Ton Paulo — Esse quantitativo está abaixo do necessário?
Nelson Galvão — Muito abaixo, se pensarmos em todas as atividades que o Ibama desempenha. Licenciamento, fiscalização, prevenção ao fogo, o centro de triagem de animais silvestres (Cetas), qualidade ambiental, educação ambiental, atendimento de emergências ambientais. Temos setores funcionando com dois servidores apenas. Quando você fiscaliza, o que acontece? Se gera um processo cuja tramitação demanda não apenas o fiscal que lavrou a multa, mas o técnico administrativo, o pessoal da área jurídica e por aí afora.
Edson Leite Jr — Como esses agentes têm atuado?
Werikson Rodrigues Trigueiro — No primeiro semestre deste ano, o Ibama se concentrou no combate ao desmatamento da Amazônia. Pela questão política, o governo assumiu essa responsabilidade e fez campanhas internacionais para demonstrar resultados nessa área. O resultado desse esforço foi a redução histórica do desmatamento em 66% na Amazônia, mas houve aumento de 21% do desmatamento ilegal no Cerrado.
Agora, as atenções se voltam também para o Cerrado, inclusive com a retomada do Plano Operativo PPCerrado que havia sido paralisado no governo. Esse Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento no Cerrado é o programa de combate a devastação e já tem ações previstas para este segundo semestre. Já no mês que vem retomamos a Operação Cariocar e vistorias de cumprimento de embargo, que sempre resultam em apreensões de grãos e gado com intuito de dissuadir quem produz em área degradada. Estimamos um volume grande de irregularidades acumuladas no período de 2019 até 2023.

Italo Wolff — Existe uma exigência pela valorização desses profissionais que estão com plano de carreira defasado. Como está a perspectiva para essas reivindicações? O orçamento não foi recomposto com Lula?
Nelson Galvão — Não é só é uma exigência do Ibama, é uma demanda geral no serviço público federal. Na verdade, desde 2016 o servidor público federal recebeu em média 9% de aumento e a inflação acumulada no período foi muito grande. Se estima que a defasagem seja de 53%. O principal interesse da categoria é negociar a reestruturação do plano de carreira, mais do que a questão salarial, que normalmente é tratada em reajustamento equitativo para todas as categorias de servidores públicos federais.
O orçamento deste ano foi feito pelo governo de Jair Bolsonaro (PL), mas foi em parte recomposto com a PEC da transição aprovada após outubro de 2022. Foram feitas algumas alterações que melhoraram a situação, mas aind anão é o orçamento de 2024, que ainda vai ser levado à votação. Segundo o novo arcabouço fiscal, a perspectiva de investimentos no Ibama, como nos demais órgãos federais, depende da melhora da economia de forma geral.
Italo Wolff – Estamos na época do aumento no número de queimadas. Como está funcionando o Prevfogo?
Werikson Rodrigues Trigueiro — A todo vapor. O Prevfogo tem foco na prevenção, que já foi feita nos meses de maio e junho, quando fizemos o manejo integrado ao fogo para evitar os incêndios de grande proporção, que realmente prejudicam o bioma. Fizemos as queimas prescritas nos locais onde há risco de acúmulo de material inflamável na seca, quando podem ocorrer as queimadas descontroladas.
Nos meses de maio e junho, há umidade no solo, de forma que conseguimos controlar a queima e a vegetação pode se regenerar facilmente. Há espécies no cerrado que estão adaptadas às chamas e se beneficiam do manejo integrado do fogo. Há plantas que precisam do fogo para completar seu ciclo reprodutivo.
Agora, estamos concentrados no monitoramento. Existem sete brigadas do Ibama em Goiás preparadas para atuar na prevenção do incêndio florestal de grandes proporções.
Edson Leite Jr — No ano passado tivemos incêndios de grandes proporções em áreas de preservação, como a Chapada dos Veadeiros, Parque Altamiro de Moura Pacheco e Serra das Emas. Ao que o senhor atribui isso?
Werikson Rodrigues Trigueiro — O Ibama atua nas áreas federais, como na área do quilombo Kalunga, terras indígenas e em um assentamento do Incra, mas em áreas de conservação o ICMBio é o responsável. A maior parte da chapada é de responsabilidade do ICMBio. Dentro do ICMBio, ainda existem grupos resistentes ao manejo integrado do fogo. Há ainda quem não faça essa prevenção. Mas esse não é o caso do Parque Nacional das Emas, onde o ICMBio faz corretamente as queimas prescritas.
Italo Wolff — Por que não fazer o manejo integrado do fogo?
Werikson Rodrigues Trigueiro — Há quem acredite que é melhor deixar o ambiente lidar naturalmente com os incêndios. Mas há diversos estudos demonstrando os benefícios do manejo integrado do fogo, então eu particularmente acredito que esta é a forma ideal de prevenção. De toda forma, o Ibama está sempre disposto a apoiar e trabalhar em conjunto com o ICMBio. Principalmente em unidades de conservação com extensão gigantesca, é necessário unir os esforços.
Ton Paulo — O Ibama fica impedido de atuar em regiões fora de sua competência?
Werikson Rodrigues Trigueiro — Não. Não ficamos impedidos, mas não montamos brigadas por uma questão de prioridade. Nos assentamentos do Incra, por exemplo, fazemos orientações e treinamos os assentados, para que eles mesmos possam combater o fogo. Nosso projeto é que os municípios mantenham essas brigadas contra incêndio florestal e possam promover com seus recursos ações contra o fogo e de conscientização. Neste ano, estamos formando brigadistas município de Mundo Novo, e nossa intenção é montar a brigada em outro assentamento no ano que vem para podermos ir passando a informação.