Karla Maria Silva de Faria é pós-doutora em Geografia. No Projeto Pamira, que é desenvolvido desde 1998 no Laboratório de Geomorfologia, Pedologia e Geografia Física (Labogef), Karla Faria estuda as grandes bacias de Goiás, focando na perda de solos, processos erosivos e processos de fragmentação, como o desmatamento e suas consequências. . 

Na Agência Municipal de Meio Ambiente (Amma) da Prefeitura de Goiânia, Karla Maria atualizou o cadastro de áreas afetadas e trabalhou na recuperação de locais degradados, gerenciando projetos de contenção de processos erosivos. Ainda na Prefeitura, trabalhou na temática de impactos urbanos solucionando problemas de inundação, alagamento, ocupação de Áreas de Preservação Permanente (APP) e temas afins por dez anos.

Nesta entrevista ao Jornal Opção, a cientista aponta os principais problemas ambientais ligados ao solo em Goiás hoje. A pesquisadora analisa ainda o Plano Diretor de Goiânia e prevê: “Terei muito trabalho acompanhando e propondo soluções para os problemas que vão surgir em decorrência deste Plano Diretor”. 

Estamos vendo a degradação de duas bacias importantes em função da atividade agrícola. Uma é do Rio Vermelho e a outra é do João Leite. Nós ainda não conseguimos conciliar o desenvolvimento da agricultura com a sustentabilidade? Há saída para essa situação?

Eu vejo que este processo de conciliação ainda está em desenvolvimento. Existem muitos produtores que entendem a necessidade da adoção de práticas sustentáveis. Essa consciência não está restrita às práticas ambientalistas, mas também se estende às práticas produtivas da agricultura, que resultam em uma atividade econômica sustentável. Mas existe um grande grupo de  que ainda pensa conforme o modelo exploratório e predatório dos recursos. 

A conciliação entre produção e sustentabilidade envolve fornecer assessoria técnica, levar o conhecimento a esse local que está sendo ocupado por atividades. Seja nas pastagens ou seja na produção agrícola, existem formas de manejo sustentável e existe o conhecimento sobre esses ambientes. Hoje Goiás não tem um mapeamento de aptidão agrícola em nível detalhado. 

Não temos um zoneamento ecológico e econômico elaborado, que identificaria quais seriam as áreas mais aptas e quais seriam as áreas de maior suscetibilidade ambiental. Esse mapeamento poderia orientar a ocupação. Deveríamos ter um modelo mais esclarecido do que aquele que atualmente está sendo empregado, da ocupação desordenada, que nos levou aos processos erosivos, por exemplo. 

A ciência já tem estratégias de manejo de solo a serem implementadas. Há proprietários que adotam boas práticas e há proprietários que não adotam. Aqueles que adotam, o fazem por conta própria, porque já entenderam a necessidade; muitas vezes nem usam o termo “sustentabilidade”, mas usam práticas sustentáveis porque percebem que é vantajoso para eles próprios. O outro grupo, que usa a terra sem apoio técnico, de forma atrasada, causa grandes danos ambientais pelos quais todos nós vamos ter de pagar. 

“Tendemos a pensar que o pequeno agricultor, por não ter recursos, seria ignorante ou incapaz de proteger sua propriedade dos danos ambientais. Isso é um mito”, diz Karla Faria | Foto: Acervo Pessoal

Os grandes fazendeiros ou grandes empresas agropecuárias possuem maior extensão de terras. Esses grandes proprietários estão se modernizando?

Tendemos a pensar que o pequeno agricultor, por não ter recursos, seria ignorante ou incapaz de proteger sua propriedade dos danos ambientais. Isso é um mito. A ideia de que quem tem mais capital possui acesso às melhores tecnologias não leva em consideração as linhas de financiamento que estão à disposição dos dois proprietários.

Hoje, a legislação brasileira é muito robusta no que diz respeito a impedir o crédito a quem não possui certidões ambientais adequadas. Se o produtor tem algum tipo de atividade que precise de licenças, ele só é capaz de contrair crédito ao apresentar seus cadastros de APP, de reserva legal, de boas práticas. O banco financiador recebe a documentação e disponibiliza o recurso — em teoria, funciona bem. Eventualmente ouvimos denúncias de créditos liberados para desmatadores, mas a fiscalização dessa documentação e processo são outra questão.

Há arcabouço que auxilia os pequenos produtores a ter acesso a conhecimento e recursos para preservação. Por exemplo, o programa “Produtor de Águas”, que atende pequenos proprietários com tecnologia e orientação técnica para manejo agrícola em bacias importantes de Goiás. 

Houve um trabalho muito grande de pesquisa e de recuperação da bacia do Araguaia. Conseguimos recuperar a região?

Houve um processo de recuperação. Por estar envolvida no projeto Pamira desde a graduação, observo uma mudança positiva na região da nascente do Araguaia. Essa foi uma das áreas alvo de intervenção via Delegacia Estadual de Repressão a Crimes Contra o Meio Ambiente (Dema). Ali, a Dema fez construção de terraços, remoção do gado, remoção da área da agricultura e revegetação. Hoje, vejo que a vegetação nativa voltou a sua oferta de serviços ecossistêmicos e proteção do solo.

Em outras regiões, em especial do lado goiano do rio, também foram adotadas práticas para minimizar a evolução do processo erosivo. O custo económico e o custo ambiental de recuperar um processo como a Chitolina é gigantesco. Chitolina é o apelido da mais famosa vossoroca, que vem sendo monitorada. Ali, se fez o cercamento da área e o gado parou de chegar até o até o local. Nas áreas de escoamento dos trilheiros, foi feita a recomposição de vegetação com espécies nativas. Hoje, você olha para a área e ainda percebe a feição erosiva, mas está minimizada.

Qual a maior preocupação quando se combate erosões?

Na minha opinião, é preocupante que Goiás esteja perdendo terras produtivas. Estamos perdendo solo assoreando os canais de drenagem. Os cursos hídricos carregam sedimentos, ocasionando um efeito em cadeia. O próprio prejudicado é o produtor que ocasionou a erosão, e a sociedade como um todo.

Primeiro, alguém desmatou uma área que não poderia ser desmatada. Depois perde o solo produtivo — ou em processo laminar, que lava a superfície, ou em processo linear, que gera ravinas e canais de drenagem. Essas ravinas podem se tornar voçorocas, ou seja, canais que atingem o nível do lençol freático e se tornam incontroláveis. Quando se chega nesse ponto, as paredes da erosão solapam muito rápido e a erosão fica sempre muito úmida. 

A dinâmica de erosão quando chega nesse ponto é difícil de conter. Tanto é assim que não dizemos que a erosão está sob controle; pois uma chuva intensa pode reabrir a erosão. Ela pode se tornar ativa, apesar de estar em processo de recuperação. 

Onde estão os principais problemas de Goiás?

Em Goiás, isso está acontecendo muito no Entorno de Brasília. As bacias da região têm o solo fácil de ser erodido. Na região da bacia de Piracanjuba, afluente do Meia Ponte, isso também acontece. Morrinhos tem voçorocamentos muito expressivos.

O Nordeste goiano é arenoso, o que favorece a formação de voçorocas. Nesta semana, se descobriu na Aréa de Proteção Ambiental das nascentes do Rio Vermelho um desmatamento onde já há voçorocamento. que eles descobriram essa semana. Na região próxima à Bahia, em Buritinópolis, existem tais processos. No rio Araguaia, existem outras voçorocas menos famosas do que a Chitolina. 

“Em áreas urbanas, é muito complexo cessar e reverter a prática de crescimento da cidade. Nesse caso, esbarramos no Plano Diretor”, diz Karla Faria | Foto: Acervo Pessoal

Em Goiânia, temos uma área que se recuperou muito rapidamente. Ao lado do campus, na região da Vargem Bonita, havia confinamento de gado e o lago havia secado. Os piers do lago ficavam sobre uma área seca. A água do lago voltou quando a região foi protegida do gado. Como aconteceu esse processo?

A partir do momento que se cessa a perturbação ambiental, a natureza tende a se reencontrar e definir novo ponto de equilíbrio. Isso é que os modelos teóricos nos apresentam e o que vemos em campo. Na época da Covid-19, vimos isso com relação à poluição atmosférica. As fábricas pararam de funcionar na Ásia e a qualidade do ar saiu de péssima para ótima em uma semana. Esse ponto de equilíbrio tende a ficar próximo da condição original em um tempo relativamente mais curto, mas voltar à condição original leva muito mais tempo.

Em Goiânia, temos vários impactos ambientais causados por perturbações antrópicas recorrentes. Nesses casos, temos algumas estratégias para mitigar os processos erosivos. A simples retirada da galeria pluvial que estava direcionando água para o córrego do Capim, no Jardim Balneário, foi suficiente para acabar com o processo erosivo e regenerar a área da APP. Jardim Curitiba, tivemos foi a mesma situação. A Prefeitura fez a readequação da galeria pluvial e a vegetação voltou a crescer sobre a erosão naturalmente.

Em áreas urbanas, é muito complexo cessar e reverter a prática de crescimento da cidade. Nesse caso, esbarramos no Plano Diretor. 

Como avalia o Plano Diretor de Goiânia?

O Plano Diretor foi construído por uma equipe técnica muito bem capacitada, que estava assessorando a atualização da lei de forma muito esclarecida. O problema é que, quando chegou na Câmara Municipal, os vereadores desconsideram os apontamentos do corpo técnico.

O Plano Diretor aprovado deu atenção apenas ao lado econômico da cidade. Em uma das audiências, chegamos ao ponto de ouvir a defesa da redução das áreas de APP urbana em função da possibilidade do aumento de animais silvestres em áreas urbanas. É uma inversão total do propósito do Plano Diretor. 

APP em área urbana significa área de vegetação ciliar que segura a erosão. Se a erosão se instala na margem de um canal de drenagem, quem paga é a sociedade, porque o poder público vai ter de desembolsar uma grana para recuperá-la. Desessoriar um corpo hídrico é muito custoso. 

Estou falando de manter uma faixa de vegetação ciliar que vai garantir proteção do solo, segurança contra inundações, recursos hídricos, conforto térmico para a área da cidade. Em duas audiências de que participei para discutir o Plano Diretor, ouvi propostas de redução das APPs sem embasamento técnico algum. 

Em relação à sua área de atuação, como considera o Plano Diretor que foi aprovado?

Prevejo que vou ter muito material para publicar. Terei muito trabalho acompanhando e propondo soluções para os problemas que vão surgir em decorrência do Plano. 

No Labogef, fazemos o levantamento, diagnosticamos problemas, propomos estratégias de mitigação e recuperação. Esses relatórios são encaminhados ao Ministério Público, Prefeitura e outros órgãos responsáveis. Alertamos: “esse problema está surgindo agora e sua solução custará muito dinheiro no futuro”. 

Nesse aspecto, o Plano Diretor, ao desconsiderar o tema ambiental, impõe vários riscos econômicos para a própria cidade. É um plano que priorizou o econômico, mas incorreu em danos ao erário. Não se pode dissociar a área econômica da ambiental, elas estão associadas.

Qual região causa maior preocupação? 

A ocupação intensa das cabeceiras de drenagem dos corpos hídricos que são influentes da bacia da Anicuns. Isso precisa receber atenção, porque são áreas que podem ser impermeabilizadas. A ocupação deveria levar em consideração o tamanho dos lotes, a obrigatoriedade de área permeável mínima.

Quase metade de Goiânia está dentro da bacia do Anicuns. Toda a região Noroeste e Sudeste está dentro da bacia do Anicuns. São córregos como o Cascavel, Taquaral, Macambira-Anicuns. O Plano Diretor direciona a ocupação para aquela região de alto curso da bacia hidrográfica, o que significa impermeabilizar o solo. Vai chegar mais água no canal de drenagem. Com o aumento de volume caudal, teremos inundações. O sistema, que já sobrecarregado, pode ocasionar alagamento. É uma cadeia de problemas. 

O lago do Parque Cascavel não estético. Diferentemente do Lago das Rosas, Vaca Brava e Flamboyant, o largo Cascavel é um lago de drenagem urbana. Ele foi construído para reter água — tanto é que raramente a avenida Guarapari inunda hoje como costumava a inundar antes da intervenção do lago. É uma infraestrutura de drenagem. Acima do parque, existe um grande processo erosivo que está muito ativo. Essa erosão transporta muito sedimento para o lago com as chuvas. Se o lago foi feito para reter água, ele também vai reter o sedimento. 

No governo federal passado, o Ministério do Meio Ambiente fez um esforço para desregulamentar e desburocratizar, de forma que a licença ambiental passou a ser uma autodeclaração do proprietário. Como vê os impactos dessa política?
É uma questão complexa, porque se você olha o rol de atividades que são passíveis de licenciamento no Brasil, vai descobrir que são todas. A começar pelo conceito de impacto ambiental, que em nossa Constituição é definido como qualquer alteração das propriedades químicas, físicas e biológicas decorrente de atividade antrópica. Isso significa que a mera existência das pessoas resulta em impacto ambiental — a partir de onde começo a precisar de autorizações e das licenças?

Nem todas atividades precisam de passar pelos três estágios: licença prévia, licença de instalação e licença de operação. A resolução de 1986, 001, estipula a questão das atividades que são impactantes. A resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente de 1997 fala de licenciamento ambiental. Mas não temos uma lei federal. Não temos uma lei estadual. Então tudo é regido pela resolução do Conama, 237. À medida que a sociedade vai se desenvolvendo, vão surgindo novas atividades, o corpo técnico também reavaliando o que compete e o que fazendo as devidas readaptações.

Mas o licenciamento ambiental é algo muito demorado, principalmente por falta de pessoal. As atividades se diversificam e vão crescendo, então a demanda sempre cresce mas a capacidade de solucionar o problema permanece do mesmo tamanho. O autolicenciamento parte do pressuposto que a parte interessada precisa está informada de seus impactos e das atitudes para minimizá-la. 

Isso não significa que o licenciado deixa de ser fiscalizado. O que acontece é um ad referendum, a declaração de ciência. Mas as autoridades podem verificar inconsistência nessa autodeclaração. Nos casos de má-fé, há mecanismos para corrigir os impactos e punir o infrator. Não é uma situação que é permitida pelo mecanismo da autodeclaração.

Sabemos que grande parte das multas ambientais não são pagas. Como está a situação hoje?

Tivemos um apagão de dados nos últimos quatro anos. Ficamos sabendo pela imprensa, pois não havia transparência nenhuma. Antigamente, podíamos protocolar solicitações e fazer levantamentos dos autos de infração. Nos anos do último governo, nossas pesquisas sobre a eficiência do combate ao desmatamento ficaram paralisadas.

É importante ressaltar que as informações sempre demoraram a chegar e que nem todas estão informatizadas. Sempre tivemos dificuldade de fazer todos os órgãos conversarem na mesma língua, usando o sistema. O processo está avançando, mas em muitos casos, são os técnicos dos órgãos municipais, estaduais e federais que precisam reunir as informações solicitadas manualmente. 

Nesse período, o autolicenciamento e a flexibilização do licenciamento ambiental ficaram mais fortes.

De onde vem essa mudança de política?

Veio do governo de Dilma Rousseff (PT), como um efeito do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Todas as obras do PAC foram alvos de licenciamento ambiental e isso fez com que o governo percebesse a dimensão da temática ambiental e a dificuldade burocrática envolvida. 

Neste momento, o setor econômico bateu de frente com o setor público responsável pelos licenciamentos. As coisas tinham de ser licenciadas. Havia toda uma proposta, pensamento e estudos econômicos que determinavam que estradas tinham de passar onde estavam planejadas para passar.

Os atos declaratórios ainda são fiscalizados. O mecanismo da autodeclaração adiou o problema, mas o gargalo ainda é o fortalecimento dos órgãos ambientais. O que pode destravar essa burocracia é o corpo técnico habilitado para fazer a atividade de fiscalização. A licença é o primeiro passo, mas a memória do corpo técnico é fundamental para fazer os acompanhamentos.