Titular da Delegacia Estadual do Meio Ambiente diz que em breve haverá sérios conflitos motivados pela água e diz que produtor precisa reduzir desperdício em vez de ampliar fronteira agrícola

“Veja a qualidade da água do Meia Ponte quando
sai de Goiânia e como melhora cem quilômetros abaixo. A natureza depura, mas é preciso preservar as matas”

Rios, nascentes, matas, água, bichos. Quem chega pela metade na conversa e pega as palavras do discurso de Luziano Carvalho jamais suspeitaria de que está diante de um policial eficiente no cumprimento de seu ofício. Isso porque ele realmente foge do estereótipo que caracteriza um profissional da área da segurança: tem sempre tom conciliador, prefere a conversa à imposição, mostra um olhar que vai muito além de autuações, inquéritos, algemas e encarceramento. Não é à toa, portanto, que ele se lembre do nome do primeiro preso que foi seu “hóspede”, quando começou sua atuação como delegado, em São Luís de Montes Belos, município da região oeste, a 125 quilômetros de Goiânia.

Depois de trabalhar também em Ceres, Luziânia, Jataí, Inhumas, Rio Verde e na Delegacia Estadual de Crimes contra a Administração Pública, Luziano foi parar na Delegacia Estadual de Repressão a Crimes Contra o Meio Ambiente (Dema). Corria o ano de 1999 e, desde então, mais do que um delegado no exercício de suas funções, ele se tornou um ativista da causa ambiental com várias realizações – principalmente a de ter tido papel fundamental no processo de recuperação das nascentes de mananciais como os rios Araguaia e Meia Ponte.

Natural de Jataí, ele não nega suas origens do meio rural, de quem nasceu na fazenda, sob os cuidados de uma parteira. E com a autoridade de quem conheceu de perto como era o Cerrado décadas atrás, com seus rios e matas, e cuida dele hoje em sua missão profissional, faz uma sentença sombria: “O Rio Araguaia vai secar. Isso é até óbvio, se mantivermos a conduta que temos hoje com a água.” Mais do que isso, ele prevê, para breve, conflitos graves entre proprietários rurais por conta de recursos hídricos.

Apesar disso, em momento algum Luziano mostra desânimo. Pelo contrário, não se dá o direito de algo nesse sentido. “Precisamos sempre lutar e buscar a conscientização das pessoas. Não podemos desistir”, resume.

Elder Dias – O sr. está desde 1999 na Delegacia Estadual do Meio Ambiente e é apaixonado pelo que faz. Já havia feito algum trabalho nessa área antes?

Sou nascido e criado no campo, filho de fazendeiro e minha mãe deu à luz com uma parteira. Se há algum diferencial no que eu faço, é ter adotado a teoria junto à prática, pois desde criança eu vivo a questão ambiental. A propriedade de meu pai está lá, arborizada, coisas que eu plantei antes de assumir a delegacia.

Cezar Santos – O Rio Meia Ponte é o grande abastecedor de água de Goiânia e toda a região metropolitana. Como está esse manancial hoje em relação ao momento em que o sr. assumiu a delegacia?

Ao assumir a Dema, em 1999, eu já havia passado por cidades das mais complexas do Estado em termos de segurança, como Luziânia, Rio Verde e Jataí. Deixei cadeias transbordando de presos, mas parece que isso não tinha resultado. Eu digo sempre que não precisamos nos preocupar tanto com leis, temos é de cumprir as existentes e, por meio delas, buscar as melhores soluções.

No início de minha carreira eu já observava a destruição do meio ambiente. O desmatamento do Cerrado se intensificou a partir de 1981; as nascentes do Rio Araguaia sofreram sua pior agressão naquela época – em 1983 surgiu a voçoroca Chitolina, a maior erosão do rio, em decorrência do desmatamento.

Em 1999, quando assumi a Dema, reuni com os delegados e disse que iríamos recuperar a principal nascente do Meia Ponte. Disseram-me que isso não era atribuição da polícia e eu respondi: “Isso é o mais importante, temos de lutar pela água e lá está tudo desprovido de cobertura vegetal.” Leis de proteção existem desde 1934, com as chamadas “áreas protetoras”, depois “áreas de preservação permanente” (APPs), a partir de 1965. Mesmo sem criminalizar, já existia isso na legislação. Mas o que precisamos é de conscientização e de educação, isso é a grande carência nacional. No dia em que alcançarmos esse estágio, vamos resolver grande parte de nossos problemas.

Foi dessa forma que iniciamos o trabalho de cercar as nascentes do Meia Ponte em 1999. Dois anos depois, a área já estava bonita e hoje virou uma verdadeira mata. Na mesma época, além dessa nascente principal, fizemos também o mesmo trabalho em áreas de Santo Antônio de Goiás e Goianira. Hoje, temos centenas de nascentes e matas ciliares recuperadas no Meia Ponte. Da mesma forma, fizemos também no Ribeirão João Leite e em diversos mananciais pelo Estado. E o melhor: na maioria dos casos, não precisamos fazer qualquer procedimento em relação às pessoas. Em Taquaral, por exemplo, onde há um divisor de bacias, temos proprietários bastante engajados, que se envolveram com a causa.

Elder Dias – Foi somente um processo de conscientização?

Sim, foi somente conscientizar e procurar fazer tudo junto com essas pessoas. O que a gente busca é trabalhar e, com o trabalho de recuperação, contagiar os demais proprietários para que eles passem a fazer também por conta própria o isolamento das nascentes. É bem verdade que isso não é automático. Porém, se nossa equipe chega a uma fazenda e observamos uma ou mais nascentes em estado de degradação, cheia de gado ou que não está isolada, ela vai até o produtor e dialoga. A maioria diz “olha, delegado, eu não sabia, mas agora vou tirar o gado de lá e fazer a cerca”. Pronto! Em tese, seria crime, mas se ele retirar o gado imediatamente ou em um prazo curto acordado, isso não é prevaricação nem uma forma de ser tolerante com o crime ambiental.

Cezar Santos – Uma conversa, às vezes, pode resolver tudo.

Sim, isso é importante. O crime é impedir ou dificultar a regeneração natural. Ora, se o proprietário está propenso a colaborar, executando o que precisamos, conforme as orientações, ele não está dificultando nada. Entretanto, se o dono da terra diz que só daqui a dois anos vai ter condições, ou alega que tem de vender o gado primeiro, faz-se então a autuação contra a propriedade e o procedimento é encaminhado para a Justiça, baseado na Lei de Crimes Ambientais.

Elder Dias – O sr. acredita que a ocupação de áreas de nascente ou APPs ocorre por desinformação ou é com dolo mesmo?

Anteriormente, eu tinha a ideia de que faltava informação, que a pessoa não tinha consciência do que fazia. Hoje, tenho a tranquilidade para chegar a uma propriedade rural e fazer os procedimentos legais, caso o gado esteja em um local assim, porque a informação é bastante acessível nos dias atuais. Há 15 anos, eu estive em uma propriedade do município de Nazário com 500 bois em cima de uma nascente. O fazendeiro veio de forma muito natural para me dizer: “Delegado, eu tenho duas nascentes, esta aqui e a de lá do pé da serra. Só preciso daquela, desta eu não preciso.” Mesmo assim, depois da conversa, ele concordou com o procedimento e cercou o local. Ou seja, era ignorância pura, mesmo. Mas hoje, porém, não vejo mais isso, quem tem gado em nascente já sabe que está fazendo coisa errada e pode ser responsabilizado criminalmente. A etapa de conscientização está expirando. No ano passado encaminhamos vários processos para as comarcas de Britânia e Jussara justamente por conta do crime de impedir ou dificultar a regeneração, no caso, de APPs com lagoas naturais. Se a pessoa tem 2 mil hectares, é claro que ela tem orientação técnica e obviamente sabe que está fazendo coisa errada.

Cezar Santos – Uma estatística diz que o Rio Meia Ponte é um dos sete mais poluídos do Brasil em região metropolitana. A construção de tratamento de esgoto em Goiânia não melhorou esse aspecto?

Em um primeiro momento, estabeleci como prioridade de nosso trabalho recuperar as nascentes a montante de Goiânia. Queríamos mostrar que a água poderia chegar com qualidade e quantidade. Ano passado tivemos falta d’água para abastecimento e, então, fomos a alguns pontos. Observamos que, em questão de horas, o reservatório já tinha sumido – ou seja, temos água, o que pode estar ocorrendo é desperdício ou mau uso.

Como estamos falando de abastecimento público, isso tem de ser prioritário, não pode haver conflito de interesses, mas isso ocorre. Entre os próprios produtores, está havendo litígio pelo uso da água. Neste período de estiagem, não tem um único dia em que não recebamos uma denúncia sobre conflito em torno de água. Vejo que a situação do Meia Ponte acima de Goiânia melhorou, mas o caso do Ribeirão Anicuns – um de seus principais afluentes –, o curso d’água mais importante da capital, precisa de um bom trabalho, o que temos buscado fazer. Estamos fazendo procedimentos contra quem está em área da capital com terreno em área rural desprovido de cobertura vegetal. O trabalho ainda não está no nível ideal, a destruição é muito extensa e, na cidade, há muitos empreendimentos que não tratam seus efluentes com a devida eficiência. Isso acaba sendo lançado nos mananciais. Qual destes a gente poderia dizer que tem qualidade em sua água, que tem água limpa? Córregos como o Cascavel e o Caveirinha, em alguns momentos do ano, são verdadeiros esgotos a céu aberto.

Cezar Santos – Um dos grandes poluidores era a Saneago, que jogava dejetos no Meia Ponte. Isso continua? Como é apurar uma denúncia contra outro ente do poder público?

Proteger o meio ambiente é dever da população e do poder público. Então, a Saneago também foi indiciada por poluir o rio, há alguns anos. Encaminhamos o procedimento para a Justiça e já há um termo de ajustamento de conduta (TAC) com o Ministério Público, feito com a empresa.

Elder Dias – Esse procedimento foi feito em relação à ETE [Estação de Tratamento de Esgoto Dr. Hélio Seixas de Britto, no Setor Goiânia 2, região norte]?

Exatamente. De qualquer forma, creio que já foi feito um trabalho bom em Goiás em termos de tratamento, só por endereçar o esgoto para ser tratado. O problema é que há vários pontos oficiais de lançamento de dejetos sem nenhum tratamento, isso precisa ser melhorado. Por isso digo que precisamos acelerar o processo, há muito a ser feito. Sempre eu digo: desmatamento é o pior crime ambiental que existe. Veja a qualidade da água do Meia Ponte quando o rio sai de Goiânia e como a mesma água melhora cem quilômetros abaixo. A própria natureza faz a depuração, mas é preciso preservar as matas ciliares e as APPs para que isso ocorra.

Elder Dias – Como está o volume do Meia Ponte? Existe algum monitoramento? Pergunto porque, no fim do período da estiagem, em setembro, às vezes parece que o rio vai secar de vez, isso sem contar que boa parte do líquido que a gente vê é de dejetos.

O que ocorre é que a demanda por água aumentou com o crescimento da população da região metropolitana. Só que a proteção, não. Pelo contrário, aqui a destruição aumentou. E não falo só de Goiânia, no Brasil inteiro está assim. É muito triste. As pessoas ainda não pararam para pensar, muita gente vê, mas não enxerga que o quadro é grave. Se eu sair daqui para ir a Aruanã atender a uma ocorrência sobre uma nascente desprovida de cobertura vegetal, no trajeto, olhando para os lados vou ver a degradação por toda parte, o tempo todo. Se parar (para autuar), não chego nunca lá. Em todos os lugares é assim.

No chamado “novo” Código Florestal, que suspendeu tantos crimes ambientais e que os ambientalistas criticam, há uma coisa interessante: quem tem área degradada passou a ter a obrigação de recuperá-la. Isso foi um ganho, mas por que não a recupera? Ora, o ato de preservar deve ser antecedente ao de explorar, mas só querem explorar.

Na região de Goiânia, para minimizar os possíveis conflitos, precisaríamos chegar aos produtores e alertar sobre a irrigação com a água do Meia Ponte. Sabem quantos pivôs centrais há acima de Goiânia, no rio? É um número muito grande. E sabem para quê? Não é para hortaliça, não – o que, mesmo assim, precisaria ser regularizado, por conta dos defensivos e agrotóxicos utilizados sem controle –, são para irrigar grama! (enfático) E a pessoa ainda diz que só usa dois ou três meses no ano, mas é justamente no período mais crítico. Isso não pode acontecer.

Elder Dias – Mas qual seria o caminho legal para se utilizar a água do rio?

Estou questionando muito é justamente se se deveria legalizar esse tipo de uso. A prioridade não é o abastecimento público? Os mananciais, então, não deveriam ter proteção máxima? Um exemplo é o reservatório do João Leite. Quando se fala em “uso múltiplo da água”, isso tem de excluir os reservatórios. No lago do João Leite, portanto, não pode ter caiaque, lancha, casas construídas, nenhum tipo de lazer assim. A pressão imobiliária tem de ser condenada. Isso tem de ser feito lá e em qualquer manancial, porque, se a coisa está ruim, vai ficar pior. Desde 2008, quando houve muitas alterações na lei ambientais e depois, com o novo Código Florestal, quanto de desmatamento continuou a acontecer?

Uma coisa que ocorre demais nas cidades é a implantação de loteamentos na área de abastecimento público, aqui e em todo lugar. Estamos com situação de falta d’água em 30 municípios goianos, pelo menos. Lá em Anápolis, não vão mais buscar água no Piancó [ribeirão de Anápolis], mas vão captar do Capivari [rio cujas águas sofrerão transposição para o Piancó, para levar água a Anápolis; as obras, com o custo de R$ 23 milhões, foram lançadas na semana passada]. E quem falou que tem água no Capivari? E, se tiver, não vai acabar? É como a transposição do Rio São Francisco, que pode ser uma coisa catastrófica, por tirar água de onde não tem.

Elder Dias – É como exigir que um anêmico doe sangue.

Exatamente. É impressionante termos problema de abastecimento em cidades como Jussara, Mozarlândia, Araguapaz. Não era para ter! (enfático) E por que isso ocorre? Por conta da destruição, do desmatamento. As lagoas – que são áreas de recarga do lençol freático, de evaporação e de alimentação das águas dos mananciais da região do Araguaia – estão secando. Por quê? Porque onde tinha peixe hoje tem boi, onde tinha água hoje tem capim. Isso é no Estado todo. Por isso, é preciso discutir essa questão não apenas no aspecto jurídico, mas também de forma técnica, científica.

“Desmatamento é o maior crime ambiental”

Luziano Carvalho, titular da Dema: “O Rio Araguaia não é patrimônio ecológico apenas, é patrimônio econômico”

Cezar Santos – O sr. não sente, por vezes, que esse seu trabalho é como enxugar gelo, diante de tantas dificuldades?

Não, não tenho esse sentimento. Temos de ser conscientes do que fazemos. Quando vejo que algo deu errado, não culpo ninguém, talvez apenas a mim mesmo, por não ter usado a melhor estratégia. E, por favor, não me perguntem sobre a estrutura que eu tenho…

Elder Dias – Era a próxima pergunta… (risos)

Tenho de fazer com o que eu tenho, do contrário seria uma espécie de autopiedade. Vou ficar com dó de mim? Não, se a coisa é difícil, vamos fazê-la assim mesmo. Precisamos de menos discursos e mais ações concretas. Quantas nascentes a Polícia Civil já recuperou e, quando voltamos ao local, há uma outra placa, como a de uma prefeitura? Aqui em Goiânia, às margens do Meia Ponte, fomos nós que plantamos as primeiras árvores, tem uma plaquinha, não consta a identificação da polícia, mas não tem problema. O importante é fazer. E tão importante quanto não é nem mesmo a vitória, mas lutar.

Elder Dias – O Rio Araguaia é sua “paixão” particular, mas também uma preocupação particular dos goianos. Sabemos hoje que há vários canais ilegais para retirada de água do rio, sobre o qual pesa a legislação federal – o chamado “rio federal”. Como fica a fiscalização da Dema em relação a um gigante como são o Araguaia e seus afluentes?

O Araguaia é um rio federal que tem nascentes em três Estados, nos municípios de Mineiros (GO), Costa Rica (MS) e Alto Taquari (MT). Passei por algumas que eram pocilgas e hoje são matas. Estão totalmente recuperadas, graças ao diálogo da Polícia Civil com o produtor, para que este fizesse o terraceamento, uma curva de nível para desviar a enxurrada da nascente, para que retirasse os animais, para que isolasse a região. Ficou um espetáculo. Havia um projeto de R$ 6 milhões para recuperar a voçoroca Chitolina, a maior do País na época, e resolvemos tudo no diálogo.

Muitos insistem em criticar a atuação da Polícia Civil nessa área, especialmente a minha – porque vou muito a essas ações “in loco” e converso com os fazendeiros –, dizendo que não há criminalização. Claro que há, mas de quem realmente precisa ser criminalizado. Sempre levo um técnico comigo, justamente porque preciso desse embasamento. Imagine, por exemplo, como fazer a correção de uma barragem sem acompanhamento, seria uma tragédia. Por isso, não é o delegado que manda, mas um técnico, uma pessoa do ramo.

Elder Dias – O que o sr. conheceu melhor do Araguaia, a partir do trabalho com a preservação das nascentes?

A população goiana tem de saber de coisas que poucos sabem sobre o rio. O Araguaia não é só o rio das mulheres e praias mais bonitas do Brasil, do pôr do sol, o inspirador de poetas, o rio do maior peixe de escamas do mundo – que é o pirarucu –, não. O Araguaia tem cachoeiras lindas, tem cânions, tem paredões. A água dele, quando chega a Santa Rita [município do Sudoeste goiano, divisa com Mato Grosso], é branquinha, cristalina; há dez anos, a mesma água era barrenta, tamanha a quantidade de sedimentos que chegavam, por conta das muitas voçorocas, que estão sendo estabilizadas, em sua maioria.

Claro, nem tudo é perfeito. Semanas atrás, fomos a uma propriedade rural que, por manejo indevido, rompeu o bacião e teve aumento da erosão. De qualquer forma, é preciso sempre perseverar, envolver as pessoas e buscar as melhores técnicas. É pena que, ao chegar à cidade, joguem esgoto dentro do rio. Isso precisa ser coibido, tem de tratar o esgoto, em todos os municípios. E, se falando que é urgente a coisa demora, imagine se não falar?

Elder Dias – Quais são os principais crimes que cometem contra o Araguaia?

O principal crime ambiental é o desmatamento. Água de chuva só pode ter dois destinos, pela natureza: ou infiltrar no solo ou evaporar. Se a água correr, tem alguma coisa errada – e é isso que ocorre quando há o desmatamento. Uma área de Cerrado consegue receber 250 milímetros de chuva, já uma área descoberta, mecanizada, não chega a ter 15% de infiltração. Isso é uma loucura! (enfático)

Temos lagoas naturais, que são áreas de preservação permanente, berçários de peixes. Sua água segue para rios como o Araguaia, de que elas servem como recarga, essa é sua principal função. Em volta delas, deveria ter apenas mato, vegetação natural. E o que ocorre? Está tudo desmatado, tudo cheio de gado. E agora, como vamos recuperar essas áreas? Para ter ideia, não vamos ter nem madeira para fazer o trabalho de cercar – há lagoas com quilômetros de perímetro. A questão é tão grave que, no período da seca, a lagoa seca, porque está compactada pelo pisoteio do gado. Na estiagem, o fazendeiro põe seu rebanho ali porque o pasto é verde, a alimentação é farta. Além disso, vai lá no meio da lagoa com a retroescavadeira e faz um buraco no meio da lagoa, que a gente chama de “cacimba”, para dar água para o gado. Num primeiro momento, ele consegue, a água aflora, mas depois o lugar seca, porque o rebanho fica ali em cima. Ou seja, temos o rebaixamento do lençol freático.

É uma catástrofe anunciada. Eu não gostaria, mas daqui a um tempo vamos ter conflitos entre os próprios fazendeiros por conta de água e eu vou presenciar isso. Não vai ter água para todos. Por quê? Porque áreas como essas, as lagoas, deixaram de ter sua finalidade original dada pela natureza. Os chamados “baciões” das grandes cidades [reservatórios construídos para receber a água da chuva] são algo que o homem inventou, mas que a natureza sempre fez. Essas lagoas não são nada mais do que isso, baciões, é o que ocorre na região do Araguaia. Há uma interligação entre essas lagoas e o leito do rio.

Nessas lagoas, peixes como o pirarucu transitavam nesse canal natural até o rio 40 anos atrás. Nessa via de ligação, por vezes cortava a ligação, de forma também natural, tenho testemunhas de pessoas de lá, ribeirinhos, que viram gente sair com um pirarucu nas costas. Hoje não existem mais muitos desses canais, ou foram reduzidos ao mínimo. Por isso, nem há mais peixes nesse lugar. O problema grave de nossos tempos chama-se água, mas não parecem se importar com isso.

Quando há o desmatamento, as lagoas deixam de ter sua finalidade principal – a de abastecer o rio – e secam. O que o produtor faz, então? Vai até o rio, que já está precisando da água que não tem mais, em estado sofrível, e faz a captação de água, por um canal, até encher sua lagoa. Ou seja, faz o inverso da natureza. É uma tragédia anunciada. Eu vivo isso na prática e posso dizer, por causa disso, que o Araguaia vai secar.

Elder Dias – Então, para o sr., a tendência para o Araguaia é de que o rio vai secar?

Não é nem tendência. É uma coisa óbvia. Ora, do jeito que a coisa está só pode secar. Se alguém tira 11 mil metros cúbicos de água do rio, o vizinho dele também se dá o direito de fazer o mesmo, e o outro, e assim por diante. Não está havendo limites. O Lago dos Tigres, em Britânia, corre um sério risco de desaparecer, porque o Rio Vermelho [curso que forma o lago], que contribui para o represamento, não está conseguindo levar água até lá, foi desviado acima.

O Rio do Peixe [afluente importante do Araguaia, na altura do distrito de Luís Alves], na época da seca, em setembro, basta levantar a barra da calça para passar a pé. A água não passa do tornozelo! Da mesma forma, não sei se o Rio Água Limpa [afluente do Araguaia em Jussara] vai chegar com sua água este ano. Ora, não tem água no Araguaia e você ainda tira?

Da mesma forma, quem pode garantir que o Rio Araguaia não vai secar em algum setembro dos próximos anos? Uma semana de seca desse rio, no ano, não é uma tragédia? Eu atravessei o Rio Araguaia andando, na altura de Aruanã, achando que era uma novidade, daí recebi muitos comunicados de outros pontos em que ocorre o mesmo.

Elder Dias – Tive a oportunidade de me banhar no Córrego Bacalhau, afluente do Rio Vermelho que passa pela entrada da cidade de Goiás. No ano passado, seu leito chegou a secar, algo que deu capa de jornal.

Tragédia ambiental é o que mais temos visto. No caso do Rio Vermelho, acabou por se abrir um novo leito, com 15 quilômetros de extensão. Vemos suas nascentes destruídas, é muita destruição. O lago do Rio Água Limpa – um dos mais bonitos do País, com 800 metros de largura por 5 de extensão, coisa maravilhosa –, no município de Jussara, tem nove pivôs centrais instalado na sua saída, para captação de água. Antes de sua formação, há 26 outros pivôs. Isso tudo descoberto no ano passado. Outro ponto, no Araguaia, tem 29 pivôs.
Soma isso tudo e me diga: vai ter limite? Vão me dizer que é importante, que estou contra o progresso, que temos de produzir grãos. Claro que temos de produzir, precisamos disso, mas antes de bater recordes, primeiramente temos de recuperar as nascentes e as lagoas, para depois explorar o solo. Mas quem está fazendo essa recuperação? Será que sabem fazer sustentabilidade, ter ações práticas?

Por que, em vez de instalar um pivô ou abrir mais fronteiras agrícolas, simplesmente não lutam contra o desperdício da safra? Pra que desmatar mais? Perdemos um terço da produção da colheita até o consumo, é coisa demais. Não se justifica falar em aumentar a área de lavoura. O produtor diz que é ele quem alimenta a população, mas na verdade deveriam ser honestos e falar que estão preocupados com negócios, com seus lucros. Porque, quando ele faz um desmatamento ilegal, quando faz uma captação de água irregular, não está distribuindo renda, pelo contrário, está promovendo sua concentração. Falo como pessoa que conhece o que está falando: temos de transformar as propriedades de exploração em propriedades de função social. Ninguém pode dizer que está batendo recordes se não respeita as questões ambientais. Isso chama-se mau uso, uso nocivo da propriedade.

Uma tonelada de soja vale “x”. Se a pessoa tem 4 mil hectares, imagina esse “x” multiplicado por essa área toda. É dinheiro demais, não é? Vamos supor que isso dê, sei lá, R$ 1 milhão. Alguém pode pagar por isso. Se o Araguaia secar, dê 1 milhão, 1 bilhão, 1 trilhão de reais para recuperar o rio. É dano irreversível. Acabou, não recupera. As pessoas têm de pensar é nisso. O Rio Araguaia não é patrimônio ecológico apenas, é patrimônio econômico (enfático). É absurdo secar o Araguaia para alimentar boi. O que você vai produzir é carne. Só que carne tem em abundância e de graça dentro do rio. Qual a lógica disso? O Rio Araguaia é o rio mais piscoso do mundo e estamos destruindo isso de forma violenta esse patrimônio econômico. Não é apenas a beleza do rio, é questão de vida, de sobrevivência. Não temos de cuidar do planeta, porque o planeta não acaba, ele pega fogo mais continua seus ciclos. A vida, inclusive a humana, é que pode acabar, não o planeta.

Elder Dias – O mais grave é que o criminoso que comete esse tipo de ação não se considera como tal, não se reconhece criminoso.

Pelo contrário, ele se acha uma vítima, porque está produzindo. Não quer saber que há uma legislação a ser cumprida. Veja bem: não existe uma área chamada “de preservação permanente”? O que significa isso? Ora, que são áreas que precisam ser permanentemente protegidas. O proprietário que não as protege está cometendo crime, então. É obrigação do produtor protegê-las. É preciso deixar de ser vítima e cumprir a legislação.

Recentemente, um grande produtor de tomate de São Paulo, insatisfeito com o valor de mercado, passou o trator em cima da safra, destruindo tudo. Isso é se preocupar com a população? Não é, claro. Mas a Polícia Civil não tem o produtor como vilão e sim como parceiro. Mas parceiro para fazer a coisa correta. Jamais vamos alimentar o crime ambiental, seja o do pequeno ou o do grande produtor. Se houver algo, vamos orientar e, se for o caso, encaminhar os procedimentos. Nunca vou ser responsável por prevaricação.

Elder Dias – O sr., em conjunto com a comunidade da região norte representada por uma associação, a Verdivale [Associação Ecológica Vale do Meia Ponte] iniciou um trabalho aqui em uma lagoa natural, chamada de Lagoa Feia [também é conhecida como Vargem Bonita]. Como está esse trabalho hoje?

Há algumas lagoas naquela área, perto da região do antigo clube Itanhangá. São recargas naturais do Rio Meia Ponte. Ou seja, quero dizer que temos também lagoas na região metropolitana e essas são exemplos. No caso da lagoa da Vargem Bonita, ela está cercada de casas boas, até luxuosas, com estrutura para aproveitar aquela represa natural. O que fizeram lá? Desmataram ao redor, colocaram drenos, fizeram uma cacimba para um confinamento e botaram gado ao lado da água. Qual a consequência? Secou tudo. É a tragédia anunciada de que falo. Agora, vamos trabalhar para recuperar, mas como “médico”, eu digo para o pessoal que o quadro é grave. A questão ambiental é assim, têm danos que são irreversíveis.
De positivo, vejo a população envolvida e fico feliz quando vejo isso acontecer. De vez em quando, a gente recebe duras críticas por nossas ações, mas prefiro ser vítima a autor de injustiças.

Elder Dias – Na região do Ribeirão Anicuns dentro da região metropolitana, meses atrás foi registrado o aparecimento de uma onça-pintada, fato raro e o qual o Jornal Opção revelou em primeira mão. Cerca de dois meses depois, o animal voltou a ser notícia, em outros veículos de comunicação. Há alguma novidade em torno do assunto?

O Ibama chegou a procurar a delegacia para ajudar na procura do animal, que realmente esteve por aqui e talvez até continue. O que eu ressalto nessa história é o respeito para com essa onça. Tempos atrás, era ver e matar um bicho desses. Nesse caso, no entanto, vemos a dedicação do Ibama, que usou todos os meios para encontrar e capturar esse animal. A propósito, estive recentemente de volta ao Araguaia e pude ver rastros de onça. Até o cheiro do animal é perceptível. Temos muito a proteger, em termos de fauna, aqui em Goiás.

Elder Dias – Falando de um assunto eminentemente urbano, o sr. foi muito atuante contra as pichações na Grande Goiânia. Que saldo teve esse trabalho?

A pichação é um crime ambiental grave. Tira a beleza da cidade e não tem justificativa – foi algo que tentei descobrir com os próprios pichadores. Identifiquei diretamente 435 deles. É algo no qual há cerca de 20 mil pessoas envolvidas, direta ou indiretamente, só em Goiânia. O pichador vai em certas festas e dá autógrafo, querem saber quem é o maior. Identificamos também 72 “galeras”, como eles chamam – na verdade são quadrilhas, organizações criminosas. Para elas, não é o caso de TCO [termo circunstanciado de ocorrência], mas de inquérito.

Pegamos os principais pichadores, mas tem uma coisa que falo com certo pesar: a população não participa, não denuncia, não cobra. Não é o caso de “enxugar gelo”, no caso, é a sociedade que não quer participar. A pessoa prefere ver a pichação e pintar sobre – e depois novamente diante de outra pichação – a registra a ocorrência na delegacia. Tive um momento, em 2015, em que saberíamos, com 95% de certeza, quem teria feito pichação em determinado ponto da cidade. Fizemos um mapeamento geral, mas a população não parece se interessar.

Veja um caso: tive de buscar coercitivamente uma vítima de pichação. Nunca havia feito isso na vida. Eu precisava saber quando ocorreu aquela pichação, coisa que nenhum pichador vai se lembrar. Intimei a pessoa duas vezes e ela não compareceu, então mandei o inquérito para a Justiça e o Ministério Público entendeu que precisava ouvi-la. É deselegante buscar assim uma vítima, mas foi necessário. Ora, se está pichado, registre e cobre da delegacia que a gente vai correr atrás. Mas o que fizemos foi registrar 2 mil pontos pichados sem nenhuma ocorrência.

Vou dar mais um exemplo: há um prédio na Avenida Goiás com a Anhanguera que está lá pichado até hoje, mas identificamos os pichadores, com nome completo e endereço. São oito pichadores. Mandamos o resultado para o responsável pelo prédio, mas ele nunca se interessou em pintar. Por isso, a pena correta, a meu ver, deveria ser imputar ao pichador a nova pintura daquele edifício. Tenho certeza de que, se eu pegasse o pichador e o levasse – não vou negar que me deu vontade de fazer isso –, ele iria comigo para limpar. Mas não posso fazer isso, seria usurpação de função.

Quando falamos que a lei é “frouxa”, não é bem assim. Na verdade, na maioria das vezes, a lei é melhor do que os próprios homens. A pena de pichação é pequena, de um ano, não precisa botar na cadeia, mas tem prestação de serviços e multa. Vão dizer, “ah, mas pichador tem dinheiro?”. Claro que não são todos, mas muitos têm, porque a pichação é algo de todas as classes sociais, tem gente de classe média e alta. Um pichador está fazendo intercâmbio em Portugal, mas a família mora no condomínio mais luxuoso de Goiânia, estuda na faculdade mais cara de Goiás, filho de médico e psicóloga.

Cezar Santos – O combate à pichação foi um trabalho muito complicado de fazer?

Parecia, mas não foi tão complicado assim. Estudamos os códigos das pichações, fiz até “doutorado” nessa área, mas faço questão até de esquecer, porque aquelas pinturas, na verdade, são apelidos dos pichadores. No fim, eles colocam o nome da “galera”, da quadrilha a que pertencem. Saem em grupos praticando as pichações; quem pichou aquele muro ou fachada, geralmente é o primeiro na sequência, depois vêm os outros, colocam outros por “consideração”. Há algumas frases dedicadas a garotas – há muitas mulheres envolvidas com a pichação. Um fato que precisa ser observado é que a pichação em Goiânia tem diminuído.

Cezar Santos – Isso é resultado do combate que o sr. liderou?

Acredito que sim. Temos vários processos correndo a respeito disso. O que é lamentável é ser, vez por outra, intimado a prestar declarações à Justiça. Creio que tecnicamente não seria o mais correto, já que tudo está dito em meu relatório. Aí me intimam três anos depois para falar o que eu já havia relatado.

Elder Dias – Nesse trabalho o sr. fez diferenciação entre pichação e grafite?

Sim, claro que fizemos. O grafite é crime também, se não for autorizado. Já me perguntaram “delegado, por que o sr. não incentiva o grafite?”. Ora, eu tenho de incentivar se a pessoa quiser, se o cara quer pichar, como eu vou fazer isso? E grafite dá dinheiro? Talvez, mas para pouquíssimos. Temos de incentivar a arte, mas a maioria que pratica quer é aparecer. O objetivo primordial da pichação é buscar a fama, seja por letras mais bonitas, por pichar mais alto etc. Alguns são levados à delegacia, chegam lá e me perguntam quem é o maior pichador de Goiânia, ficam doidos para saber e eu não posso falar (risos). Estão todos em busca de fama. Um chegou a me falar: “Delegado, o sr. prefere uma cidade pichada ou uma cidade ensanguentada?” Eu respondi, “uai, tem de ter uma terceira alternativa, porque eu quero uma cidade limpa”. É o mesmo que falam do trabalho infantil, é melhor uma criança trabalhar ou roubar? Ora, é preciso ver que não há só essas duas opções, a criança tem de estar é na escola.