Marcella Orçai: “O que se percebe muitas vezes é que os pais não têm conhecimento do que está acontecendo dentro de casa, no quarto dos filhos”
27 dezembro 2025 às 21h00

COMPARTILHAR
Marcella Cordeiro Orçai é delegada de Polícia Civil e titular da Delegacia Estadual de Repressão a Crimes Cibernéticos de Goiás, a Dercc. É pós-graduada em Investigação Digital e habilitada pela Homeland Security Investigations, ligada ao FBI, em Investigação de Exploração Sexual Infantojuvenil na Internet. À frente de uma das delegacias mais emblemáticas da Polícia Civil, Marcella atua no enfrentamento de crimes praticados pela internet, um campo marcado pela constante reinvenção e modernização das práticas criminosas.
Nesta entrevista exclusiva ao Jornal Opção, a delegada detalha os principais tipos de crimes virtuais, explica como eles ocorrem, apresenta seus modos de atuação e analisa as consequências dessas práticas para a sociedade. Segundo a delegada, mulheres, crianças e adolescentes estão entre os principais alvos de grande parte dos criminosos. Ela ressalta que não existe um perfil padrão para quem comete crimes como stalking ou bullying virtual, uma vez que o autor pode, inclusive, ser um menor de idade oriundo de uma família estruturada.
Esse cenário, inclusive, foi retratado em produções como a série Adolescência, da Netflix, que estimulou um amplo debate sobre como as redes sociais podem se tornar uma ferramenta perigosa para a disseminação da misoginia. Além do combate direto a esse tipo de crime, Marcella destaca a importância da conscientização da população, especialmente dos pais de crianças e adolescentes, sobre a necessidade de monitorar as atividades online dos filhos e as pessoas com quem interagem. Para ela, essa atenção é indispensável para tornar a internet um ambiente mais seguro.
Ton Paulo – Um tema muito em voga envolve a questão dos crimes cibernéticos relacionados às redes sociais de crianças e adolescentes. Recentemente vimos que há uma nova legislação na Austrália que proíbe o uso de redes sociais por menores de 16 anos. Qual é o nível de demanda que chega até vocês em relação a ataques a crianças nas redes sociais, incluindo bullying virtual, algum tipo de ameaça e casos de pornografia infantil?
Com relação a crianças e adolescentes, esse é um grande desafio enfrentado por todas as delegacias, não apenas pela Delegacia de Crimes Cibernéticos. Hoje, praticamente todas as delegacias do Estado lidam com crimes envolvendo redes sociais, tendo em vista a capacitação dos policiais para essa nova modalidade e esse novo modo de atuação. Aqui na delegacia, em especial, lidamos com frequência com situações de exploração sexual virtual na internet.
Muitas vezes, a falta de regulamentação das plataformas, aliada à entrega de aparelhos celulares e ao acesso irrestrito à internet por crianças e adolescentes, gera insegurança e aumenta a vulnerabilidade desses menores em relação a crimes, principalmente os de natureza sexual.
Atualmente, embora algumas plataformas afirmem moderar o acesso de menores a determinados conteúdos, temos observado que certas redes sociais passaram a monitorar mais, reduzir esse acesso e estabelecer limites de idade para ingresso ou para o recebimento de conteúdos específicos. No entanto, sabemos que dentro dessas plataformas, especialmente as de jogos, há abusadores e criminosos que se aproveitam desse ambiente para obter acesso a crianças e adolescentes.

Muitas vezes, o contato inicial ocorre nessas plataformas de jogos, mas o abuso não acontece ali. Após esse primeiro contato, os criminosos migram para outras plataformas menos vigiadas ou que não cooperam com a Justiça brasileira, onde se inicia uma sequência de ameaças que pode culminar em abuso sexual.
Ton Paulo – E vocês enfrentam dificuldades no relacionamento com essas plataformas? Observamos, por exemplo, decisões do STF determinando a remoção de publicações e postagens, cujo cumprimento muitas vezes encontra resistência por parte de empresas como a Meta e o Twitter. A Polícia Civil também enfrenta esse tipo de dificuldade ou existe um canal mais direto de comunicação com essas plataformas?
Não. A dificuldade que existia vem diminuindo ao longo do tempo, pois as plataformas, especialmente a Meta, têm passado a cooperar mais com a Polícia. Cada vez mais, essas empresas percebem que, para operar no Brasil, é necessário colaborar com as autoridades. Ainda assim, sempre existirão plataformas que não cooperam, que não possuem escritório no país e que, por isso, são aquelas que deveriam ser banidas.
João Paulo Alexandre – Recentemente foi divulgada uma pesquisa do DataSenado que aponta que uma em cada dez mulheres já sofreu algum tipo de violência digital. O que caracteriza, em um primeiro momento, a violência contra a mulher nesse ambiente? Considerando que outros crimes também surgem nesse contexto, qual exemplo de crime pode ser citado como tendo migrado para o meio virtual?
Por exemplo o crime de perseguição. A perseguição pode ocorrer tanto no ambiente virtual quanto no mundo real. O stalking envolve uma vigilância constante que restringe a liberdade da vítima. Aqui na delegacia, lidamos com muitos casos de vítimas que são perseguidas virtualmente, e o que inferimos é que esse tipo de perseguição pode ser tão danoso ou até mais prejudicial do que a perseguição presencial. Quando o perseguidor possui certo conhecimento técnico, ele consegue invadir diversas esferas da liberdade da vítima.
Ele passa a saber onde ela está e consegue importuná-la a ponto de restringir sua liberdade, mesmo sem nunca ter se aproximado fisicamente. Trata-se de um crime que claramente migrou para o ambiente virtual, embora também atuemos em outros tipos de delitos.
A falta de regulamentação das plataformas, aliada à entrega de aparelhos celulares e ao acesso irrestrito à internet por crianças e adolescentes, gera insegurança e aumenta a vulnerabilidade desses menores em relação a crimes, principalmente os de natureza sexual
Não são apenas mulheres que se tornam vítimas. Um exemplo é o estelionato sentimental, conhecido popularmente como o “golpe do amor”. Esse tipo de crime tem ocorrido com frequência, envolvendo tanto homens quanto mulheres que iniciam relacionamentos pela internet com golpistas. Acreditando estar em um relacionamento verdadeiro com alguém que muitas vezes sequer existe, essas vítimas acabam realizando transferências de grandes quantias de dinheiro.
João Paulo Alexandre – Ainda sobre a violência digital contra a mulher, vocês também atuam em parceria com a DEAM, a Delegacia da Mulher? Como funciona essa articulação?
Quando o autor é desconhecido e há necessidade de uma investigação com expertise digital para identificá-lo, normalmente o caso fica a cargo de delegacias comuns, que já possuem esse tipo de conhecimento, ou das delegacias especializadas em crimes cibernéticos.
No entanto, quando a vítima vem sendo perseguida pelo companheiro ou por alguém do seu convívio, caracterizando de imediato a violência doméstica e familiar contra a mulher, a atribuição passa a ser da DEAM. A delegacia da mulher atua com excelência nesses casos, pois possui expertise específica para a concessão de medidas protetivas, o acompanhamento da vítima e a adoção de providências como o afastamento do agressor. Por isso, essas ocorrências permanecem sob responsabilidade da delegacia da mulher.

João Paulo Alexandre – Outro fator que a gente percebe que tem contribuído bastante para esse cenário é o uso da inteligência artificial. Há, inclusive, casos de nudes falsos que começam a surgir como uma forma de perseguição. Como vocês têm recebido esse tipo de situação aqui? Tem aumentado o número de denúncias envolvendo o uso de IA para criar esses nudes falsos?
Felizmente, aqui na delegacia ainda não observamos um crescimento desse tipo de delito.
Em alguns casos, lidamos com deepfakes usados de forma jocosa, muitas vezes envolvendo injúria ou difamação da vítima. Em relação especificamente aos nudes falsos, ainda não trabalhamos com esse tipo de ocorrência. Isso não significa que não aconteça, mas, até o momento, não percebemos um aumento de vítimas procurando a delegacia por esse motivo.
Muitos adolescentes acabam assumindo outras identidades para a prática de crimes de ódio, misoginia e outras formas de violência. Existem, inclusive, comunidades voltadas ao ódio contra mulheres e minorias
O tema é complexo, porque a inteligência artificial se aprimora a cada dia, tornando as imagens cada vez mais realistas. Isso pode confundir as pessoas e causar danos significativos às vítimas. Atualmente, ainda é possível identificar em alguns vídeos sinais de que se trata de inteligência artificial, especialmente para quem tem um pouco mais de conhecimento, mas, mesmo assim, esse tipo de conteúdo já é suficiente para gerar prejuízos e sofrimento para a vítima.
Ton Paulo – Teve uma série da Netflix lançada este ano que gerou bastante debate, intitulada Adolescência, que expõe o poder e os perigos da atuação de adolescentes nas redes sociais, muitas vezes vivendo em um mundo que parece paralelo ao dos adultos. Sabemos que, nas redes sociais, jovens e adolescentes acabam adotando comportamentos que muitas vezes passam despercebidos pelos adultos, e que, nesse contexto, crimes acabam sendo cometidos. Como a senhora enxerga esse cenário e quais seriam os caminhos para enfrentar e combater esse problema?
Sim, a delegacia, pelo menos desde 2022, vem atuando com bastante afinco, especialmente nas redes sociais que passaram a ser mais utilizadas por adolescentes durante o período da pandemia. Esse cenário é, em grande parte, um reflexo desse contexto, no qual muitos adolescentes acabam assumindo outras identidades para a prática de crimes de ódio, misoginia e outras formas de violência. Existem, inclusive, comunidades voltadas ao ódio contra mulheres e minorias, que, muitas vezes, chegam a planejar atos extremos.
O trabalho da delegacia tem sido no sentido de identificar esses jovens, inclusive em parceria com o Ministério da Justiça, e adotar as medidas cabíveis. Entre essas ações estão o cumprimento de mandados de busca e apreensão em residências, já que, na maioria dos casos, tratam-se de adolescentes. Também houve situações que resultaram na internação de menores de idade em razão desse tipo de conduta.
O que se percebe, na grande maioria das vezes, é que os pais não têm conhecimento do que está acontecendo dentro de casa, especialmente no quarto dos filhos. O adolescente permanece quieto, não sai, não aparenta causar problemas ou gerar preocupações externas, como as relacionadas à rua. No entanto, dentro do quarto, diante da tela do computador, acaba praticando atos infracionais sem que a família perceba.
Ton Paulo – Existe um perfil padrão do adolescente que pratica tais atos, como de misoginia, racismo e homofobia, nas redes sociais?
Não estabelecemos um perfil fechado, porque, ao longo do trabalho, lidamos com muitos casos e com pessoas de perfis bastante variados. Não é algo absoluto. No entanto, de forma geral, é comum encontrar crianças e adolescentes mais quietos, isolados, que não têm amigos na escola e não mantêm uma vida social considerada normal para a idade.
Ainda assim, não é possível cravar ou generalizar esse comportamento. Também trabalhamos com adolescentes que os pais jamais imaginariam estar envolvidos nesse tipo de situação: jovens com vida social ativa, queridos na escola, que não sofrem bullying e que não apresentam características aparentes que indiquem uma tendência ao isolamento na internet ou à participação nesses grupos considerados estranhos.
Ton Paulo – Hoje, há um movimento muito forte de pais que defendem a redução do tempo de tela dos filhos. A senhora avalia que essa é uma maneira eficaz de diminuir esse tipo de situação?
Sim, o principal controle deve partir dos pais, porque são eles que convivem diariamente com a criança ou com o adolescente. O menor de idade está sob a responsabilidade dos pais, e, nesse contexto, não se aplica a ideia de privacidade absoluta. O acesso ao telefone do menor precisa ser livre para os responsáveis, assim como acontece na vida real, que acaba sendo transferida para o ambiente virtual.

Se os pais não permitem que um filho menor de idade se tranque sozinho em um quarto, da mesma forma não podem permitir que ele tenha uma senha no celular que eles desconheçam. Sendo menor de idade, ele está sob a responsabilidade dos pais. Por isso, a orientação é que, independentemente do grau de liberdade concedido aos filhos, o uso do celular, a partir do momento em que envolve o acesso à rede mundial de computadores, deve ser monitorado.
A liberdade de expressão é, de fato, um direito fundamental. No entanto, esse direito encontra limites ao se confrontar com outros direitos igualmente protegidos, especialmente aqueles relacionados aos direitos humanos
João Paulo Alexandre – Foi mencionado que não é possível generalizar um perfil, já que cada caso apresenta suas próprias particularidades, embora exista uma caracterização mais ampla e geral. Sobre o modus operandi: ele costuma seguir um padrão ou também varia de acordo com cada situação?
São situações semelhantes, porque, em geral, esses jovens participam de comunidades nas quais acabam se agrupando pessoas com formas de pensar parecidas. Trata-se de uma mente ainda em formação, que muitas vezes busca pertencimento.
Ao ingressar em determinada comunidade, o indivíduo passa a se sentir parte daquele grupo. Foi possível observar um movimento forte, especialmente na época da série Adolescência, quando veio à tona o chamado movimento redpill. É interessante notar que, ainda hoje, em 2025, existem comunidades de homens que propagam ódio contra mulheres, utilizando a internet para expressar e justificar esse discurso, atraindo cada vez mais adeptos. Esse tipo de prática precisa ser combatido.
A série teve um papel importante ao mostrar aos pais o que pode acontecer dentro de casa. Embora a narrativa não se restrinja apenas ao ambiente virtual e avance para o mundo real, ela evidencia o quanto é perigosa a exposição de menores às redes sociais, muitas vezes por meio de conversas em códigos e interações que os responsáveis sequer imaginam que estejam ocorrendo.
João Paulo Alexandre – Sobre a questão do redpill, como o discurso desse movimento que teor machista acaba contribuindo para as situações e crimes que a senhora descreveu?
O que se observa é que existe um contexto histórico importante. No passado, a realidade era muito diferente: as mulheres não tinham direitos, eram tratadas como objetos e sequer eram consideradas sujeitos de direito. Diante disso, é possível compreender a existência de determinados movimentos na internet, formados por pessoas que não são leigas, mas que estudam e articulam essas ideias.
Esses grupos analisam a história e, muitas vezes, determinadas ideologias tentam resgatar um ideal no qual a mulher não deve trabalhar, deve se submeter e ser submissa ao homem. Inclusive, existem movimentos formados por mulheres que defendem esse retorno, especialmente os chamados grupos de mulheres do lar, que desejam voltar a um período em que eram subordinadas aos homens e não tinham poder para lutar por seus direitos. Quando se percebe a existência desse tipo de movimento, inclusive por parte das próprias mulheres, fica evidente que a sociedade funciona em diferentes ondas e nuances.
Ao mesmo tempo em que há o feminismo atuando e lutando por direitos, existem mulheres que se posicionam contra o feminismo. Situações extremas, de qualquer lado, tendem a gerar ódio. Nesse contexto, surge também o movimento de homens que, muitas vezes, por não presenciarem mais a submissão feminina do passado, e ao constatarem que esse período histórico já existiu, passam a criar teorias.
Ton Paulo – E há um debate sobre os limites da liberdade de expressão. A liberdade de expressão na internet é absoluta?
Não. A liberdade de expressão é, de fato, um direito fundamental. No entanto, esse direito encontra limites ao se confrontar com outros direitos igualmente protegidos, especialmente aqueles relacionados aos direitos humanos, à igualdade e às garantias asseguradas a todos os cidadãos.
Quando a chamada liberdade de expressão fere, por exemplo, a honra de outra pessoa, ela deixa de ser legítima. A liberdade existe desde que não cause violação a direitos alheios. Não é possível, por exemplo, utilizar discursos na internet para praticar racismo sob a justificativa de liberdade de expressão, uma vez que o racismo é expressamente combatido pela Constituição.
Não se trata de censura, pois a censura não existe nesse contexto. É possível expressar opiniões, desde que elas não afetem os direitos de terceiros. Trata-se de um conflito entre direitos, no qual nenhum deles é absoluto.

A liberdade de expressão, portanto, não é um direito ilimitado, especialmente quando entra em choque com práticas como o racismo, a homofobia, que é equiparada ao racismo, ou a violência contra a mulher por razões de gênero. Nesse cenário, é necessário compreender que os direitos coexistem e devem ser exercidos de forma equilibrada.
Ton Paulo – A Dercc trabalha em parceria com alguma outra instituição no combate a esses crimes virtuais?
Sim, nós trabalhamos com a Polícia Federal, principalmente no enfrentamento ao crime de exploração sexual, em parceria constante com esse órgão. Também atuamos em conjunto com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, sobretudo em questões relacionadas a atos extremos e ameaças desse tipo, o que é de grande importância.
Além disso, trabalhamos com as polícias civis de todos os estados da federação, pois, como se percebe atualmente, a maioria dos crimes virtuais não se limita a apenas um estado. Geralmente, a vítima está em um estado e o criminoso em outro, o que torna indispensável o apoio logístico e operacional das polícias de diferentes estados.
Dessa forma, com frequência, na verdade em praticamente todas as nossas ações, especialmente nos casos de crimes patrimoniais, atuamos em operações interestaduais, em conjunto com as polícias de outros estados da federação.
Ton Paulo – A senhora poderia relatar algum caso que tenha chegado à Dercc, a fim de ilustrar até que ponto pode chegar o dano causado pelas redes sociais e pela internet, quando utilizadas sem controle e nas mãos erradas?
Sim, já trabalhamos aqui com diversos casos, especialmente relacionados à extorsão pela internet, como o conhecido golpe da novinha. Nesse golpe, o criminoso entra em contato com a vítima, geralmente um homem adulto, e inicia uma conversa fazendo-se passar por uma mulher. Em determinado momento, a vítima passa a receber ameaças e cobranças, sob a alegação de que estaria conversando com uma pessoa menor de idade.
A partir daí, o golpe avança. Um falso policial ou um falso delegado entra em contato, envia um suposto mandado de prisão e intensifica as ameaças. Já tivemos casos em que essa situação evoluiu para o extermínio da própria vida, o que demonstra a gravidade desse tipo de crime. Não se trata de um caso isolado.
Muitas pessoas sofrem esse tipo de extorsão e, sob intensa pressão psicológica, acabam perdendo grandes quantias em dinheiro ou pagando valores elevados. Algumas se veem em uma situação extrema, acreditando que realmente serão investigadas por estupro de vulnerável e que serão presas, chegando, inclusive, a tirar a própria vida.
É fundamental atuar em várias frentes quando se trata de crimes cibernéticos. Não apenas no combate direto ao crime e aos criminosos, mas também na conscientização da população e, principalmente, na promoção da educação digital, especialmente para aqueles que não nasceram na era digital.
Ton Paulo – Qual é a estimativa de indiciamentos realizados pela delegacia por ano e quais são os principais crimes que resultam nesses indiciamentos?
Hoje nós temos crimes como o estelionato e o estelionato virtual. A fraude eletrônica, por exemplo, é trabalhada por toda a Polícia Civil, então a estatística precisa considerar a instituição como um todo. Não conseguimos apresentar um número específico apenas da Delegacia de Crimes Cibernéticos, porque esse tipo de crime não é atribuição exclusiva da delegacia, mas sim de toda a Polícia Civil. O mesmo ocorre com o furto eletrônico.
Com relação aos crimes de exploração sexual, seja na modalidade de armazenamento ou de produção de conteúdo, podemos afirmar que os números não são pequenos. Todas as investigações iniciadas pela delegacia atualmente resultam em indiciamento. Somente neste ano, realizamos mais de 100 operações pela Polícia Civil, com mais de 100 pessoas presas. Foi um ano muito frutífero, com aumento no número de operações e, consequentemente, no retorno dado à sociedade. À medida que recebemos mais insumos e tecnologia, conseguimos entregar resultados cada vez melhores.
Os criminosos tentam sempre estar à frente da polícia, o que gera uma disputa constante. É uma luta contínua para que consigamos dar uma resposta rápida, eficaz e satisfatória à sociedade
Também observamos a diminuição da criminalidade no Estado de Goiás. Isso nos permite trabalhar com mais tranquilidade e eficiência, já que hoje contamos com uma estrutura adequada para entregar o melhor serviço possível. A redução dos índices criminais é reflexo do trabalho que vem sendo realizado pelas forças de segurança, com a Polícia Civil atuando na investigação e a Polícia Militar na prevenção, o que contribui diretamente para a redução da criminalidade.
João Paulo Alexandre – Mesmo diante do enfrentamento e do êxito das forças policiais, ainda há pessoas “inovando” e praticando novos crimes? questionando se também existe uma espécie de inovação no crime.
Sim, isso acontece porque a tecnologia permite esse tipo de inovação, principalmente a internet. Ao mesmo tempo em que a internet nos coloca em contato com todas as polícias do Brasil e até do mundo, quando precisamos, ela também coloca os criminosos em contato entre si. Essas pessoas e essas organizações criminosas estão cada vez mais preparadas e estruturadas.

Os criminosos tentam sempre estar à frente da polícia, o que gera uma disputa constante. É uma luta contínua para que consigamos dar uma resposta rápida, eficaz e satisfatória à sociedade. Nesse contexto, já percebemos também uma mudança de mentalidade. Hoje, aqui em Goiás, trabalhamos de forma integrada com o Ministério Público e com o Poder Judiciário, e já vemos condenações elevadas para esse tipo de crime.
Ton Paulo – A delegacia recebe muitos casos de bullying virtual?
Recebemos muitos casos ao longo do ano, mas, felizmente, graças ao nosso trabalho em 2023, que foi um ano bastante emblemático em relação a ameaças e possíveis ataques, obtivemos resultados importantes. Aqui em Goiás, o estado se destacou como o primeiro da federação no combate a esse tipo de ocorrência, tanto em número de apreensões de menores quanto na instauração de procedimentos voltados à prevenção.
O foco desse trabalho não foi apenas em situações de ataque em si, mas também nas conversas e manifestações relacionadas a esse tipo de conteúdo. Atuamos de forma preventiva e acompanhamos de perto os resultados desse esforço. Além disso, contamos com o apoio do governador do Estado, que fez falas importantes nesse sentido, especialmente no que diz respeito à orientação e à conscientização dos pais desses menores.
Ton Paulo – Quando ocorre um caso desse tipo e os pais descobrem que o filho é praticante de bullying ou que está postando atos de ódio na internet, eles costumam ficar surpresos?
Sim, já trabalhamos aqui com casos infelizmente muito tristes. Não posso generalizar, porque muitas vezes se cria a ideia de que são crianças que vêm de lares desestruturados, mas isso não é verdade. Já lidamos com crianças e adolescentes de lares completamente estáveis, de famílias presentes e preocupadas. Tivemos um caso em que o pai do adolescente infrator disse que não acreditava no que estava acontecendo, pois, uma semana antes, havia assistido à série Adolescência com o filho e conversado com ele sobre tudo o que era mostrado. Ele relatou que não fazia ideia de que o filho estava praticando condutas semelhantes dentro do próprio quarto.
Essa situação é muito impactante e deixa até o policial abalado. Ver o pai completamente transtornado, percebendo que, apesar de tentar fazer tudo certo, o filho estava envolvido nesse tipo de comportamento, é algo muito difícil. Aquela série, inclusive, assustou muitos pais e teve um papel importante, porque mostrou uma realidade que, muitas vezes, quem não acompanha o noticiário ou não vive essa rotina, como nós que lidamos com isso diariamente, não consegue imaginar. Para nós, é comum saber que adolescentes praticam esse tipo de conduta de forma escondida, mas, para os pais, isso muitas vezes é inimaginável.
Ao trazer essa temática pela teledramaturgia, de forma mais lúdica, foi possível visualizar melhor a situação. Houve casos em que o adolescente fazia exatamente aquilo que havia assistido com o pai. Ele conversava na internet sobre racismo, misoginia e ataques de ódio. Quando é descoberto, geralmente tenta justificar o comportamento, dizendo que era apenas uma brincadeira e alegando que não agiria da forma como havia falado.
Quanto ao arrependimento, alguns demonstram, outros não. Na grande maioria das vezes, tudo é tratado como uma grande brincadeira para eles. No entanto, essa brincadeira pode ter consequências gravíssimas para outras pessoas. Muitas vezes, como já foi mostrado inclusive em programas de rede nacional, esse tipo de comportamento pode culminar em menores se cortando, se mutilando ou inalando substâncias tóxicas. Essa é a realidade por trás do que, para eles, é visto apenas como uma brincadeira. Mas essa brincadeira pode matar.
João Paulo Alexandre – Quais conselhos ou orientações a senhora deixaria para os pais de adolescentes? Sabemos que a adolescência é uma fase complicada e que nem sempre é possível acompanhar tudo de perto, mas qual seria a melhor forma de acompanhar o filho e evitar que ele entre nesse lado mais sombrio das redes sociais?
Principalmente o monitoramento. A partir do momento em que você entrega um aparelho celular a uma criança ou a um adolescente, você se torna responsável pelo que ele está fazendo ali. É fundamental que exista acompanhamento e supervisão.
Em segundo lugar, a conversa. A família é o primeiro garantidor desse menor e também a primeira instância de contato e proteção. O primeiro filtro sempre será a família. Por isso, é essencial manter uma conversa franca e clara, além de observar comportamentos que possam indicar algum tipo de inquietação. Isso pode aparecer tanto em um adolescente muito isolado quanto em alguém que sofre bullying na escola.
É importante identificar essas situações e tratá-las ainda no âmbito da família e da escola, que são os primeiros espaços de formação da criança. Sempre orientamos os pais a realizarem esse primeiro filtro, para que a situação não chegue a um ponto em que seja necessária a intervenção policial.
João Paulo Alexandre – E qual é a importância desse trabalho conjunto entre família, escola e sociedade?
Na verdade, ele é o mais importante de todos. Estamos falando de uma criança em formação. A primeira base que ela tem é a família, que é o primeiro local de aprendizado, e o segundo é a escola, onde ela passa grande parte da vida. Quando falamos em sociedade, falamos do meio social e do convívio dessa criança.
Se tudo isso for feito de maneira correta, promovendo saúde mental, é possível garantir um desenvolvimento saudável, para que essa criança se torne um adolescente sem grandes problemas. Ter uma criança e um adolescente com a saúde mental em dia já seria o cenário ideal.

