Fátima Souza: “O PCC montou um império sob o nariz do Estado, que continua fingindo que ele não existe”
18 outubro 2025 às 21h00

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Autora das primeiras reportagens sobre o Primeiro Comando da Capital (PCC), a jornalista Fátima Souza nunca deixou de investigar o grupo. Após 28 anos das primeiras matérias sobre a facção, Fátima Souza segue apurando e produzindo uma das investigações mais abrangentes de todo o jornalismo policial já publicadas no Brasil. Com fontes dentro e fora do sistema prisional, ela reconstrói a trajetória de um poder paralelo que nasceu nas celas e se espalhou por todos os cantos do país — e, hoje, do mundo.
Em entrevista ao Jornal Opção, Fátima revela bastidores de sua apuração e traça um retrato inquietante de como o crime organizado se enraizou nas estruturas do Estado e da economia. Com fala direta, sem meias palavras, ela descreve um cenário em que o PCC se tornou uma potência multinacional do crime, com ramificações em portos, empresas, apostas on-line e até instituições públicas.
A repórter também aponta os erros de sucessivos governos, que ignoraram os sinais de crescimento da facção e, ao tentar desarticulá-la, acabaram contribuindo para sua expansão. “O PCC é um gigante que tomou essa proporção por inoperância do Estado”, afirma. Nesta conversa, Fátima Souza analisa o que sustenta esse império, os riscos de uma disputa de poder interna e o que o Brasil ainda se recusa a enxergar sobre o crime que se tornou sistema.
Herbert Moraes — Em 1997, como você descobriu a existência do PCC a partir de uma rebelião na Casa de Custódia de Taubaté?
Era um período em que os jornais mandavam repórteres para as portas das cadeias quando havia rebeliões. Hoje não há mais rebeliões em São Paulo, porque o Marcola, líder do PCC, fez um acordo com o governo do Estado. Mas em 1997, eu estava muito acostumada a fazer essas matérias, quando fui enviada pela TV Bandeirantes para cobrir uma rebelião no interior de São Paulo, na Casa de Custódia de Taubaté.
Quando cheguei lá, percebi que era uma rebelião muito diferente das que eu estava acostumada a ver. Geralmente, as rebeliões eram uma bagunça, uma correria; os presos invadiam áreas restritas, subiam nos telhados, destruíam o presídio, aproveitavam a distração para matar seus desafetos.
Ali, a rebelião era organizada. Tinha um preso que dava ordens, dizia quem deveria ficar onde — seu apelido era Macalé, me disse um agente penitenciário. Os presos gritavam palavras de ordem, brandiam lençóis com inscrições de “queremos melhor tratamento, queremos um jumbo mais robusto, etc.” [Jumbo é o carregamento de alimentos e bens pessoais que as famílias são autorizadas pelo Estado a levar aos seus parentes presos quando vão visitá-los.]

Fiz a cobertura da rebelião, que durou de três a quatro horas. Quando cheguei na redação, falei para o editor José Occhiuso que alguma coisa estranha estava acontecendo e disse que gostaria de investigar. Ele me deu apoio e eu comecei a levantar histórias, sem chegar a lugar algum. Até que lembrei-me do Macalé.
Eu achei que a Secretaria de Segurança Pública não ia autorizar meu pedido para entrevistá-lo. O preso faz uma rebelião e um mês depois eu peço para conversar com ele? Mas como eu disse que minha matéria era sobre a vida do preso na cadeia, e como eles não têm memória, autorizaram, para a minha surpresa. Fui até lá e insisti para conversar com Macalé sem a presença do diretor da Casa de Custódia (que se retirou da sala muito contrariado).
Macalé me contou que realmente existia um comando atrás das grades. Ele era o “sintonia” daquela cadeia; o nome usado já era esse, que continua até hoje [sintonia é o comandante da cadeia ou região, que responde diretamente ao chefe acima no organograma do PCC]. Questionei quem era o líder máximo e ele me disse que não podia me responder aquilo, porque era parte intermediária de uma rede de comando. Mas pegou meu contato e disse que passaria minha solicitação aos superiores dele.
Dois dias depois, a esposa de um preso me ligou, pedindo o endereço da redação para enviar o estatuto da organização. No dia seguinte, junto com o estatuto, recebi uma ligação do Cesinha — César Augusto Roriz da Silva — um dos fundadores do PCC. Conversamos, ele me explicou como funcionava. Eram oito fundadores; o grupo se chamava Primeiro Comando da Capital porque havia os presos “da capital” e os “caipiras”, do interior.
Italo Wolff — O que o PCC queria, e quais eram as formas que o grupo tinha para pressionar por suas demandas?
Era uma coisa até romântica no início. O Cesinha me disse: “A gente não tem ninguém que seja a nossa voz, ninguém que nos defenda. A gente é torturado, a gente é abusado. As nossas esposas são humilhadas quando vão nos visitar. A gente quer sexo na cadeia, alimentação melhor, defender nossos direitos.” Naquela época, se a família não levasse o colchão, o cara dormia no cimento; se não levasse cobertor, passava frio. Então, o PCC queria ser a voz do preso. Era uma ideia romântica.

No início, a única ferramenta que tinham para pressionar eram as rebeliões. Era uma forma de mostrar que eles existiam dentro da cadeia — não mostrar para a imprensa naquele momento, mas mostrar para as autoridades, o secretário de segurança. Queriam mostrar que tinham contatos dentro de mais de uma cadeia e podiam fazer rebeliões para exigir que autoridades dessem esses direitos aos presos.
Até hoje, a defesa do preso continua fundamental. Os ataques que paralisaram São Paulo em 2006 só cessaram quando o Estado negociou com o PCC suas exigências. Não pediram dinheiro ou libertação de presos, mas coisas simples: jumbo melhor, mais tempo de visitas íntimas, rejeição ao uniforme alaranjado que chamavam de “uniforme abóbora”. O Marcola falou “isso é uniforme de gari, não vamos usar esse”. Coisas muito simples que o governo teve de cumprir na marra.
Depois que fiz aquelas denúncias, nunca mais parou de chegar material.

Herbert Moraes — No princípio, o PCC não tinha a pretensão de ser o que é hoje, não é? Em qual momento o grupo que trabalhava pelas exigências dos prisioneiros cresceu e começou a se configurar como facção criminosa ligada ao narcotráfico?
Desde seu surgimento, foi necessário um período de mais ou menos três anos para que o PCC se espalhasse pela maior parte dos presídios de São Paulo, para todos saberem que existia o grupo. Não havia a pretensão de ser uma grande facção no início — eles disfarçavam sua existência no início, ao assinar “1533” em vez de PCC, por exemplo (o P era a 15ª letra na ordem do alfabeto no Brasil até a entrada do K em 2009, o C é a 3ª letra do alfabeto).
Depois desse período de organização, foi ficando mais fácil ganhar massa carcerária. É óbvio: se você está preso e não tem direito nenhum, é barbarizado dentro da cadeia, e aparece um grupo forte prometendo melhorar sua situação — essa ideia muito rapidamente empolgou os presos. Em menos de três anos, o PCC ganhou as cadeias do estado. A partir daí, perceberam que podiam comandar o tráfico de drogas dentro das cadeias.
O PCC estava no cárcere, mas o preso uma hora sai, as mulheres estão lá fora. Com uma quantidade tão grande de filiados, foi possível usar essas pessoas para arrecadar dinheiro com o tráfico.
Italo Wolff — Como o PCC mantém a lealdade dos seus membros, evitando disputas internas?
A lealdade é o primeiro mandamento no estatuto. Tiveram a ideia de batizar o integrante para formalizar sua entrada no PCC com uma cerimônia de batismo — fazer o juramento, furar o dedo para pingar uma gota de sangue na cachaça e tomá-la em sequência. Isso virou uma febre. Faz parte do ritual que os envolve completamente. Muito raramente é possível sair do PCC — apenas com autorização dos líderes em casos excepcionais.
Para eles, a fidelidade ao PCC é mais forte do que a do marido por sua esposa. O endeusamento do Marcola em qualquer comunidade do país é enraizado. O PCC conseguiu montar um império sob o nariz do Estado devido a esses valores.
Italo Wolff — Quando você noticiou a organização interna nas cadeias, o estado tentou desacreditar suas matérias. Por que? Eles já sabiam e tentaram ocultar, ou o estado realmente não acreditava na existência do PCC?
Acho que naquele momento, eles achavam que era uma coisa pequena, que não tinha importância, fácil de ser resolvida. Preferiram dizer que eu estava mentindo do que assumir e ficar expostos à mídia negativa. Eles devem ter pensado que seria uma reportagem apenas, fácil de sufocar, sem maiores repercussões.
Mas não foi isso que aconteceu. A Band me deu muita força naquela época. O José Occhiuso é um chefe fantástico, que bancou meu trabalho, e nós continuamos investigando.
Em coletiva de imprensa, o secretário de administração penitenciária João Benedicto Azevedo Marques foi taxativo ao dizer que eu estava mentindo sobre o PCC. O governador na época, era o Mário Covas, em entrevista ao José Paulo de Andrade, na Bandeirantes, disse que eu estava equivocada. O José Paulo de Andrade me ligou durante a entrevista — eu estava em cobertura na rua — e me colocou para conversar com o governador.

Eu falei, “com todo o respeito, mas quem está equivocado — ou melhor, mentindo — é o seu secretário”. O governador Mário Covas foi cortês comigo ao usar a palavra “equivocada”, mas o João Benedicto Azevedo Marques dizia que eu mentia. Eu afirmei que tinha muitas provas, documentos, contato com os líderes da facção. Ficou aquela situação desconfortável. O governador disse que determinaria uma apuração, mas que não havia registros. Eu continuei mostrando que o PCC existia.
O Gabriel Inellas, na época promotor e hoje procurador do Ministério Público (MP), entrou em contato para solicitar minha apuração. Passei a eles o que eu tinha, e eles passaram a me informar sobre as investigações deles. O MP publicou em seu diário oficial a descoberta do PCC, o que irritou bastante o governo.
Italo Wolff — O que vocês fizeram para convencer as pessoas e as autoridades da existência do PCC?
Mostramos o material que recebemos deles. Pouco tempo depois da minha primeira reportagem, um dos líderes da facção me ligou e perguntou se eu queria fazer uma matéria sobre o PCC Mirim. Jovens que integravam a facção nas Febens — os centros de internação provisórios para adolescentes da época. Me encaminharam um endereço em Ribeirão Preto, de uma casa abandonada. Eu e a equipe entramos casa escura, iluminando o caminho com a sun gun [luz portátil], e encontramos 30 moleques com as caras tapadas, carregando escopetas calibre 12, pistolas 38, metralhadoras… pensei, “onde foi que eu me meti? Vamos morrer aqui.”
Comecei a conversar com eles. Um representante me explicou o que era o PCC Mirim. Entrevistei também o Inellas. Fiz a matéria e a Band colocou no ar. O Josmar Jozino, um grande jornalista policial, na época no Diário Popular, entrou em contato pedindo o material que eu havia passado para o MP, e ele também começou a cobrir o PCC.
Em outra ocasião, recebi um telefonema (não me lembro se do Cesinha ou do Geleia, José Márcio Felício) pedindo para ir sem seguranças ou policiais me encontrar em um bar na comunidade com duas pessoas que me entregariam um pacote. Fui, o pessoal na redação ficou preocupado. Um cara muito grande e uma garota bonita vieram me entregaram uma fita VHS. Voltei para a redação e assisti.
Eram oito ou dez pessoas muito armadas se filmando. Mostrava que o PCC já tinha um poderio forte fora das cadeias. No vídeo eles falavam o que queriam e mostravam suas armas, como o explosivo C4, de uso exclusivo militar. Assistimos aquele vídeo e ficamos nos questionando o que seria o certo a se fazer. Mostrar aquilo no ar poderia estimular, servir de propaganda para a facção.
Conversamos com nosso editor e concluímos que seria melhor exibir o vídeo, explicando o porquê de estarmos publicando aquilo, narrando a situação: escolhemos mostrar justamente porque as autoridades negavam a existência do grupo, diziam que estávamos mentindo para ganhar ibope. Os próprios colegas da imprensa às vezes diziam que estávamos mentindo… o tempo mostrou a importância de falar sobre o problema.
Dois meses depois de minha primeira matéria, a Rede Globo acabou se livrando da versão oficial e fez também uma reportagem para mostrar o PCC, a partir do material que o Inellas passou para eles, e que eu havia levantado em primeira mão e fornecido para o MP. A Globo teve a cara de pau de dizer que era “exclusivo”, mas pelo menos passaram a abordar o tema. Eu estava na frente, em contato com o Marcola, Julinho Carambola, Cesinha, Geleia, Sombra — fundadores do PCC.
Herbert Moraes — Como é conversar com essas pessoas? Eles pensavam como CEOs de uma grande companhia?
Ninguém imaginava que o PCC ficaria tão grande, porque o que eles exigiam naquele momento era tão pouco… um jumbo mais robusto, sexo na cadeia, parar de apanhar. Coisas, enfim, que o Estado teve de negociar “na marra” alguns anos depois, quando o PCC paralisou São Paulo. Então, naquele momento não eram CEOs.
Eu já sabia que era uma facção grande e perigosa, mas nunca pensei que chegaria a ser internacional. Hoje estão em 28 países do mundo, têm contato com cartéis do México, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), a máfia da Calábria ‘Ndrangheta, e Hezbollah. Dois anos depois de começar a cobertura, comecei a perceber que eles tinham pretensões de crescer, porque perceberam o poder da massa carcerária.

Tudo explodiu quando o então governador Geraldo Alckmin, hoje vice-presidente, tentou desarticular o PCC, mas acabou dando um tiro pela culatra. Ele fez um acordo com outros governadores, pegou os faccionados de São Paulo e distribuiu pelas prisões no Brasil. Julinho Carambola foi para Dourados, Cesinha foi para o Paraná, o Geleia foi para o Rio de Janeiro onde conheceu Fernandinho Beira-Mar e se aliou rapidamente. Alckmin levou o PCC para todo o Brasil.
A proposta se espalhou e criou raízes locais. Quando anunciamos que Geleia estava integrado e planejando ações com o Fernandinho Beira-Mar, o governo realocou ele para o Paraná onde estava o Cesinha. O Paraná teve então, em 2001, a primeira rebelião de sua história recente, quando ameaçaram explodir nos botijões de gás os funcionários do Presídio Central do Estado em Piraquara. A coisa foi se espalhando.
Herbert Moraes — Você chegou a receber propostas do PCC para fazer matérias para eles? Como era sua relação com os líderes?
Nunca propuseram nada além de informação. Muita gente pergunta isso para nós, jornalistas: “você é amiga do Marcola, do Cesinha, do Geleia?” Para nós, jornalistas, fonte é fonte. Se a fonte é bandida, se a fonte é mocinha, se a fonte é os dois ao mesmo tempo — para nós não importa; estamos atrás da informação.
Sempre tive limites: sempre deixei claro que publicaria as informções; e que se falassem sobre um crime de antemão eu iria informar as autoridades. Isso aconteceu em alguns episódios.
Herbert Moraes — Pode nos dar um exemplo?
Eles tinham muito ódio do Ismael Pedrosa, diretor da Casa de Custódia de Taubaté, onde o PCC nasceu. Dizem que ele torturava os presos — que ele tinha um porrete escrito “aspirina” e que quando os presos reclamavam que estavam sentindo dor, ele dava a “aspirina” para eles. Não sei até onde isso é verdadeiro, mas é o que diziam sobre o diretor.
Para castigá-lo, sequestraram a Eulália, filha do Ismael Pedrosa, que era médica, casada, tinha filhos, e não era responsável pelo que o pai fazia. O delegado da divisão Antissequestro do Deic na época era o Wagner Giudice. Havia um rumor no ar, porque ninguém enviava o pedido de resgate pela filha do Pedrosa. Ninguém sabia o que estava acontecendo, se queriam dinheiro.
Eu estava conversando com o Geleia ao telefone; ele havia subornado os carcereiros para poder ter um cachorrinho na cela e ele me pediu uma sugestão de nome para batizar o cachorro. Em algum ponto nessa conversa, o Geleia me disse: “Sabe a Eulália? A gente está com ela.”

Eu fiquei p*. Fiz um discurso para ele, falei que a filha não tinha nada a ver com o que o pai fazia, que os filhos e o marido estavam desesperados. Lembrei a ele que eu havia avisado que passaria às autoridades os crimes em que as informações pudessem ajudar. Avisei que ia contar ao Wagner Giudice. Quando contei tudo ao delegado, ele respondeu: “P*, pra você tudo é PCC…” Ele não acreditou.
Depois de algumas horas, o Geleia me ligou novamente e me disse o local onde a Eulália estava, na baixada santista. Ele me pediu alguns minutos para que os sequestradores pudessem fugir — eu disse que ia passar imediatamente para a polícia, se não conseguissem sair, problema deles. Nós jornalistas fomos até lá, e quando chegamos a polícia já tinha libertado a Eulália.
No dia seguinte, o Ismael Pedrosa marcou uma coletiva, com o Wagner Giudice, para falar sobre o caso. Nós chegamos atrasados, mas o Ismael Pedrosa não começou a coletiva até eu chegar. Ficou sabendo como a filha havia sido localizada e passou a entrevista inteira segurando a minha mão; acho que uma forma de agradecimento por ter salvo a filha dele. Depois da coletiva, ele me agradeceu muito. Alguns anos depois, Ismael Pedrosa foi sequestrado pelo PCC e executado.

Italo Wolff — Como aconteceu a internacionalização do PCC? Por que as autoridades não conseguiram impedir sua associação com grupos de outros países?
Um dos caminhos sempre foi o das mulheres dos presos. Depois, os advogados visitam os presos e podem agir fora das cadeias. É claro que todos têm direito à ampla defesa, mas muitos advogados se aliaram e passaram a atuar como agentes da facção. O PCC começou a crescer muito rapidamente com o tráfico de drogas e descobriu o Porto de Santos. Até hoje, esse é o principal ponto de envio e recebimento de drogas e armas.
O porto foi cooptado com muito dinheiro, mas até hoje eu não consigo compreender bem como o porto continua aberto para o PCC. Dizem “é muita coisa, não dá para verificar todos os carregamentos”. Para mim, é questão de prioridade.
Herbert Moraes — Desde o início houve negligência do Estado com suas denúncias. Essa ausência do Estado é culpada pelo PCC ter se tornado o que é hoje?
Eu tenho certeza disso. Ignorar a facção no início já foi um erro. Espalhá-la pelo Brasil, fez ele tomar conta do país dentro das cadeias. Agora, a inoperância do Estado, esse fingir que o porto de Santos não precisa de uma intervenção — isso é um novo erro nessa corrente.
De vez em quando apreendem cocaína no casco dos navios; tudo uma maquiagem, para fazer de conta que estão trabalhando no problema. O tráfico é tão intenso que agora nós comemos peixes contaminados com cocaína [segundo estudo da Unifesp de 2017 a 2024].
O PCC, com o tráfico internacional, usando o ponto de Santos como a casa deles, passou a mandar droga para a África, para a Europa, para o Oriente Médio. Começa a entrar muita grana. O PCC fica rico e com esse dinheiro e começa a cooptar policiais da Polícia Civil e da Polícia Militar, que passam a integrar a facção. Continuam sendo policiais, mas usados pelo PCC para saber de operações surpresa que vão acontecer. O PCC passa a comprar droga mais barata, de apreensões do delegado que pega os traficantes.
Hoje, chegou ao ponto de o PCC pagar os custos da graduação em direito para formar advogados para a própria facção. Pagam os estudos para pessoas que prestam concurso para se tornar agentes penitenciários. Não é com a intenção de fugir, é com intenção de ser bem tratado dentro da cadeia. Daquele pequeno fenômeno das penitenciárias, o PCC se torna um gigante, mas o Estado segue com a mesma postura: finge que não enxerga. O Estado finge que não vê que o PCC está mandando droga para fora, está cooptando a polícia, pagando estudos de concurseiros e de advogados.
Italo Wolff — Você conheceu o ex-delegado geral de São Paulo, Ruy Ferraz Fontes, recentemente executado?
Sim. Ele foi uma das pessoas que acreditou na necessidade de abordar o problema logo no início. Nos falávamos com frequência. Ele me pediu para ajudá-lo a entender o organograma do PCC quando era delegado-geral, e ele era uma boa fonte. Mais recentemente, ele estava investigando contratos na Prefeitura da Praia Grande e eu o encontraria no final de semana seguinte ao da sua morte.
Herbert Moraes — Foi o PCC que o mandou matar?
Tenho a informação de que a morte não foi determinada pelo Marcola, e isso causou problemas no partido. Pode ser que alguém da Praia Grande com interesse na morte do Ruy, que investigava contratos no município, tenha encomendado a morte ao PCC. Tenho certeza de que os atiradores eram bandidos de farda; pelo vídeo é possível notar a contenção, a forma de portar as armas, usar as coberturas. O PCC aliciou muitos bandidos de farda — é possível que tenha sido essa conjunção.

Italo Wolff — Como foi a atuação de Ruy Fontes para investigar o PCC?
Houve um racha entre Marcola, Cesinha e Geleião em outubro de 2002. Marcola levou a melhor e ficou com o controle da massa carcerária. Cesinha e Geleião tentaram fundar o Terceiro Comando, sem sucesso. Marcola passou a dominar o PCC sozinho. O Ruy fontes teve a ideia de conversar com o Geleia para conseguir informações com o ex-líder derrotado, talvez ressentido com o Marcola.
O Geleia, louco para sair da cadeia, topava qualquer negócio somente para andar de bonde e ver a cidade. Ele tinha sido preso com 18 anos e morreu com 60, preso. É um cara que nunca viu o mundo. Então, ele topou mas exigiu uma condição do Ruy Fontes: “quero conversar pessoalmente com a Fátima Souza”. Até então, nós só havíamos conversado por telefone.
O Ruy me apresentou o pedido e eu topei, claro, porque profissionalmente havia muitas perguntas que eu queria fazer, em especial sobre o racha recente. Seis horas da manhã, me encontrei com ele — estava algemado nas mãos, nos pés e no pescoço. A primeira coisa que ele me falou foi: “Na TV você parece muito maior.”
Conversamos, ele me falou muitas coisas sobre sua vida pessoal. Ele era casado com a ex-esposa de um PM que ficava na muralha do presídio, na guarita. É uma história muito interessante — o Geleia tirou a mulher do policial que vigiava ele. Depois, falou que estava espantado com a mudança do mundo. “Esse mundo está muito louco. Fui ao banheiro e não consegui lavar a mão porque a torneira não é de girar, não é de apertar… o policial me explicou que é só colocar a mão embaixo, é fotocélula.” Ele estava maravilhado com a evolução das pequenas coisas. Falamos por duas horas e pouco.
Italo Wolff — Por que houve o racha na liderança do PCC?
Porque a mulher do Marcola, Ana Maria Olivatto, foi assassinada pelo irmão da esposa do Cesinha. Os homens fundaram o PCC, as mulheres afundaram. O que teve de treta em relação com as mulheres… A Aurinete Carlos Félix da Silva, a Netinha, esposa do Cesinha, tinha ciúmes da Ana Maria, esposa do Marcola. Ana Maria Olivatto era a advogada em comum do Marcola e do César.
A Aurinete achava que Ana Maria Olivatto dava em cima do Cesinha. Achava que ela se arrumava melhor quando ia visitar o César do que quando ia visitar o próprio marido, o Marcola. Quando Ana Maria Olivatto morreu com um tiro na testa na garagem da casa dela, se preparando para ir ver o César, eu tive certeza de que a Aurinete estava envolvida. As investigações mostraram que quem matou foi o irmão da Aurinete, a pedido dela.
O racha ocorreu porque Marcola, naquele momento, entendeu que César e Geleia tinham a ver com isso. Na verdade, eles não sabiam que Aurinete tinha mandado matar motivada por ciúmes, mas quando isso ficou claro, a m* já tinha sido feita.
Herbert Moraes — Está tudo dominado pelo PCC?
Está tudo dominado. Antes da operação Carbono Oculto, todo mundo já sabia que o PCC estava na Faria Lima. Sabemos há dez anos que o PCC tem motéis, redes de farmácias, casas noturnas, postos de combustíveis. O PCC tem uma “porrada” de bets, talvez 40% delas, e as investigações não chegaram lá ainda.
Herbert Moraes — Acredita que há relações entre o PCC e governos ou políticos do Executivo federal?
Não. Tenho 40 anos de carreira e cubro o PCC desde o início, mas não vejo essa relação direta. Vejo relação com as polícias, mas nunca vi uma preferência do PCC por um governo específico. A tentativa de associar o PCC a um partido me parece um discurso político. Pode ser que exista a preferência dos presos por candidatos que defendem que os presos não devem apanhar dentro da cadeia, mas não creio que haja uma relação direta.
Herbert Moraes — O Estado nunca permitiu que ninguém entrevistasse o Marcola. Qual pergunta você faria para ele se pudesse?
“Está feliz com o que você construiu?” Perguntaria isso, porque ele criou um império maior do que o Estado, mais poderoso, conseguiu chegar a 28 países… e está preso. Porque cada vez que ele está prestes a sair, o Estado joga na conta dele mais um crime. Foi para o Marcola a autoria do assassinato do bombeiro João Alberto da Costa, que morreu durante os ataques do PCC, por exemplo.
Então, eu pertaria: valeu a pena? Porque o Marcola está com gastrite, nervoso, com depressão, porque está há 30 anos dentro da cadeia. É o chefe de uma organização mundial, mas nunca sairá da cadeia.

Herbert Moraes — Por que o Estado não mata o Marcola?
Muita gente me pergunta isso: seria bom se o Marcola morresse? Não seria. Se o Marcola morrer, as consequências vão ser sinistras. A disputa de poder enorme vai ser sangrenta.
Houveram outros que tentaram tomar o poder. Mais recentemente, o Tiriça [Roberto Soriano] tentou, falhou, e foi condenado à morte pelo tribunal do crime. Se o Marcola morrer, vai haver uma sucessão desses episódios. Há a possibilidade de uma facção ainda mais brutal assumir o poder das cadeias.
Depois, acho que a paralisação que houve em São Paulo em maio de 2006 se repetiria no Brasil, com novas exigências, desta vez maiores.
Italo Wolff — Sobre o Ruy Fontes, você acha que a morte dele pode ter sido um ponto de virada para o enfrentamento ao PCC? Como você vê o futuro para a facção?
Enxergo que o futuro do PCC hoje é semelhante ao que vi anos atrás: com potencial para escalada. “Quebrou essa, a gente arruma outra”, eles pensam. Descobriram isso, encobrimos aquilo. Fizeram uma operação aqui, a gente arruma outra coisa.
Em 2021, quando o PCC matou o juiz José Machado Dias, Machadinho, as pessoas me perguntaram a mesma coisa. Agora acaba? Agora foi um juiz, será que a polícia vai para cima? O PCC só cresceu após a morte dele.
Herbert Moraes — Você foi convidada pela embaixada americana para uma palestra em Recife sobre o PCC. Vemos a entrada dos Estados Unidos no Caribe, combatendo o tráfico da Venezuela. Internacionalmente, qual relação internacional do PCC você considera mais preocupante?
Com os cartéis do México. Veja bem, não estou dizendo que o PCC não seja violento, mas os narcotraficantes do México são muito mais brutais; e tenho preocupação de que esses métodos sejam aprendidos e utilizados.
Herbert Moraes — Os EUA estão vendo o Brasil como um narcoestado também?
Temos nossas fronteiras secas importantes para o tráfico de drogas, o porto de Santos, a Amazônia. Talvez eles nos olhem como um país onde o Estado é mais fraco do que a máfia.
Fui convidada pela embaixada para falar sobre esse PCC transnacional. O PCC hoje tem cerca de mil membros em Portugal [segundo relatório de 2023 do SIS de Portugal]. Antes, apenas enviavam a droga para a Europa; hoje estão lá para receber e distribuir. Então, é um polvo que vai esticando seus tentáculos. Lentamente, vão abrindo filiais.

Italo Wolff — Quais são esses 28 países onde está o PCC?
Em Trinidad e Tobago, o PCC troca cocaína por ouro. No Líbano. Mesmo na Turquia, onde há pena de morte por tráfico e o preso brasileiro não é deportado, o PCC existe. Na Austrália.
Em boa parte da América do Sul — mesmo que hoje a relação com as Farc seja bem menor do que já foi. Houve um momento de treinamento com as Farc da Colômbia, quando havia muitos sequestros profissionais, assaltos a banco com até 40 pessoas. Ainda há relações, mas é menor hoje.
Herbert Moraes — Como avalia a atuação da polícia do Tarcísio sobre o PCC?
A polícia do Tarcísio é a mesma polícia que havia antes do Tarcísio. O PCC é um gigante que tomou essa proporção por inoperância do Estado. O Estado não investiga seus próprios pares — eles veem policiais com salário de classe média parando sua Ferrari no estacionamento do Dec e Denarc, e escolhem ignorar.
Essa parte corrupta da PM e PC continua em atuação. Por outro lado, o secretário de segurança Derrite é um cara que incentiva a violência, o atirar e depois perguntar. Então, o policial que é aliado ao PCC continua como sempre esteve. Mas o policial que não é aliado ao PCC se vê forçado a se adequar a essa forma de trabalho — matando. A polícia está dividida entre os que eram do PCC e continuam, e os que têm como resposta só a violência, e não a investigação.
Herbert Moraes — Os dados da segurança de Goiás mostram uma enorme redução dos índices de criminalidade. Acredita que há PCC em Goiás?
Eu desconheço o estado onde não haja PCC, ou onde o PCC não tenha se aliado a alguma facção, como ocorre na Bahia. Porém, existem estados que lidam melhor com a segurança pública. Quando há patrulhamento, presença do Estado, o PCC recua em suas ações, mesmo que não deixe de existir. Porque, na perspectiva da facção, os governos vão passar — um dia essa não será a situação e, quando o governo mudar, o PCC pensa que poderá voltar a agir, portanto é melhor estar presente. Eu gostaria que o Brasil tivesse tomado decisões como as que Goiás tomou, para que hoje a população pudesse se sentir mais segura.
Herbert Moraes — Hoje, o que te interessa no PCC? Há algum aspecto da facção que você tenha especial vontade de investigar?
As casas de apostas, as bets. Além dessa investigação, jornalisticamente, gostaria muito de fazer uma entrevista com o Marcola e com o Fernandinho Beira-Mar e transformar isso em um livro. Gostaria muito de fazer o retrato dessa parte tão importante e difícil da vida brasileira, que é o domínio do crime no país.
Herbert Moraes — O céu é o limite para o PCC?
Depois que o PCC comprou a padaria Iracema, um marco de São Paulo, onde Adoniran Barbosa frequentava… depois disso, tudo pode acontecer.
