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Há uma névoa de discursos difusos ao redor das medidas tomadas pelos Estados Unidos contra o Brasil na última semana. A linguagem mistificadora é em parte proposital, provocada por aqueles que querem capitalizar as tarifas e as reduções das tarifas, as sanções e a defesa contra as sanções. A ilusão acaba por esconder os reais motivos da instrumentalização da lei Magnitsky, das tarifas, do processo contra Bolsonaro. 

Por meio de comunicado, a Casa Branca publicou na quarta-feira, 30: “O presidente Donald Trump assinou uma Ordem Executiva implementando uma tarifa adicional de 40% sobre o Brasil, elevando o valor total da tarifa para 50%, para lidar com políticas, práticas e ações recentes do governo brasileiro que constituem uma ameaça incomum e extraordinária à segurança nacional, à política externa e à economia dos Estados Unidos”. 

Por um lado, poderia ser pior. A Ordem Executiva traz cerca de 700 exceções, como suco e polpa de laranja, combustíveis, minérios, fertilizantes e aeronaves civis, incluindo seus motores, peças e componentes. Também ficaram de fora do tarifaço produtos como polpa de madeira, celulose, metais preciosos, energia e produtos energéticos. Entretanto, essa condição não foi uma vitória da negociação brasileira — oficiais americanos sequer receberam autoridades como senadores, e o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, foi recebido pelo Secretário de Estado dos Estados Unidos, Marco Rubio, apenas após a publicação da ordem. 

Essa é parte da espuma. O governo de Lula da Silva (PT), com razão, celebra o fato de que as tarifas são menores do que as antecipadas. Mas cabe ao jornalismo ser cético: há espaço para negociar condições ainda melhores e a recepção do Itamaraty foi decepcionante. O adiamento do prazo para entrada em vigor das tarifas (antes 1.º de agosto) para o dia 6 abre nova janela para negociações. Café, frutas e carnes não estão entre as exceções; serão taxados em 50%. 

Outra parte da espuma está na tese de que as tarifas econômicas foram trocadas por uma sanção ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes — uma sanção coletiva em troca de uma sanção individual —, tudo em prol de Bolsonaro. A tese é excêntrica porque colocaria o Brasil como único país sancionado por razões não-comerciais. Também é recomendado ceticismo antes de acreditar em tamanha importância da família Bolsonaro junto ao governo dos EUA. 

A ideia tem base no texto da Ordem Executiva, onde se lê que os EUA consideram que “a perseguição, intimidação, assédio, censura e processo politicamente motivado pelo Governo do Brasil contra o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro e milhares de seus apoiadores são graves violações dos direitos humanos que minaram o Estado de Direito no Brasil”. 

Dizer que a sanção pode ter outros motivos além dos alegados não significa dizer que a alegação é sem importância. O texto do governo americano abre precedente para uso autoritário de instrumentos econômicos. A “fundamentação” é “sem fundamento”: o Brasil, uma ameaça à segurança americana? Além disso, trata o país como uma pré-república onde não há divisão entre Poderes, onde se pode solicitar ao Executivo uma interferência no Judiciário. 

Pode-se opinar que há influência indevida de um em outro, que as relações são menos que ideais (e o Jornal Opção o fez). Mas, formal e institucionalmente, existe no país uma independência a ser mantida e, mesmo que Lula quisesse dar ouvidos aos pedidos de Trump e livrar Bolsonaro de um processo no STF, a sanção econômica contra o governo (contra todos os brasileiros no final das contas) não faria sentido. 

Na quinta-feira, 31, o porta-voz do Departamento de Estado dos EUA afirmou: “Alexandre de Moraes usou sua posição para autorizar arbitrariamente prisões preventivas e minar a liberdade de expressão. Moraes abusou de sua autoridade para silenciar críticos políticos através da emissão de ordens secretas, obrigando plataformas online (incluindo companhias de mídia americanas) a banir indivíduos por publicar discurso protegido. […] As ações de Moraes impactam pessoas e companhias americanas e os EUA não toleram estrangeiros malignos que abusam de sua posição de autoridade para minar a liberdade de expressão de seus cidadãos.”

Novamente, pode-se opinar que o processo em que Jair Bolsonaro é réu no STF tem atropelos (o Jornal Opção também o fez). Mas Alexandre de Moraes e seu suposto uso autoritário do poder para combater o suposto autoritarismo de Bolsonaro — tudo isso é problema institucional brasileiro, que deve ser resolvido internamente. Com as palavras do porta-voz americano, fica claro que a defesa da liberdade de expressão foi instrumentalizada pelos interesses pessoais de Bolsonaro. 

Os Estados Unidos deturpam o propósito da Lei Magnitsky ao usá-la como ferramenta de intimidação. O mecanismo americano usado para punir unilateralmente violadores de direitos humanos no exterior tem como motivo a coibição da punição de indivíduos que denunciam atividades ilegais por autoridades em qualquer parte do mundo. A legislação foi aprovada em 2012, no governo Barack Obama, para aplicar sanções econômicas aos responsáveis pelo assassinato do advogado e militante russo Sergei Magnitsky, morto em uma prisão em Moscou em 2009. Jair Bolsonaro em nada se parece com Sergei Magnitsky.

Se é improvável que os EUA sacrifiquem relações comerciais com o Brasil apenas para livrar Bolsonaro, o que motiva realmente as sanções? Parte da resposta está na declaração do dia 31 do porta-voz do Departamento de Estado americano. As ações do STF contra companhias de mídia: o Rumble foi proibido de operar no Brasil, a Corte considerou Big Techs corresponsáveis por publicações em redes sociais ao regulamentar o Marco Civil da Internet, Moraes chegou a instituir multa de R$ 50 mil para quem tentasse acessar o X via VPN — o que ameaça o crescimento da rede de Elon Musk país.

Bolsonaro pode não gozar de tanto prestígio junto a Trump quanto alega, mas o governo dos EUA certamente é sensível aos apelos dos empresários americanos. Caso contrário, parte das tarifas não teria caído. A Embraer foi salva das tarifas — seus clientes são nada menos que SkyWest, Republic Airlines, Horizon Air e American Airlines. Essas gigantes têm pedidos que somam 202 aviões a serem entregues pela fabricante brasileira. As exportações negociadas antes da promulgação das tarifas também ficarão isentas da taxa. 

O empresariado americano fez sua voz ser ouvida pelo governo, o que pode acontecer novamente caso cumpram seu papel os negociadores governamentais, e também os extra-oficiais. Exportadores brasileiros têm clareza sobre o impacto que a escassez de seus produtos provocará junto aos consumidores americanos, como a inflação, e afirmam ainda acreditar em acordo. É o caminho civilizado. 

Por que, então, os EUA arriscaram inflação e o desgaste doméstico? O fato é que existem outras razões para tentar prejudicar o comércio exterior brasileiro e torná-lo mais dependente da aprovação americana. Os movimentos dos BRICS para criar uma moeda paralela de comércio ao dólar e consolidar um “Sul Global” como polo de poder alternativo — tudo isso desagrada e pede por retaliação econômica, aos olhos do governo americano. 

Com a compra do histórico Banco da Bahia pela gigante chinesa Bank of Communications. Convertido no Bocom BBM, o Brasil se tornou hóspede do primeiro banco da América do Sul a se integrar ao CIPS (China Interbank Payment System), sistema alternativo ao SWIFT para transações em renminbi — forma de evitar o dólar. A filial brasileira do ICBC, maior banco do mundo em ativos, foi escolhida como clearing house do renminbi no Brasil. Em outras palavras: o Brasil passou a ter capacidade interna para liquidar transações diretamente em moeda chinesa. 

Por último, cabe um aposto: poucos atores políticos citados estão pensando no brasileiro comum. É ele quem pagará o preço pela redução do PIB, pelo aumento dos juros, e pelo desaquecimento que haverá no mercado interno quando diminuírem as atividades dos produtores de exportações. Pensando pela perspectiva deste cidadão que vê a economia piorar, parecem especialmente cínicos os pedidos de apoio por parte de Lula, sob justificativa de ter garantido vitórias econômicas, e principalmente cínicos os pedidos de defesa da família Bolsonaro, que estaria lutando contra uma “ditadura do STF” financiada com bolso alheio. Esconder estes fatos é o propósito da névoa mistificadora que ouvimos no discurso político das últimas semanas. 

Ronaldo Caiado (UB) participou nesta sexta-feira, 1º, de um episódio do ‘Diálogos’, programa de entrevistas conduzido por Vera Magalhães em celebração ao centenário de O Globo. Na oportunidade, o governador de Goiás buscou apresentar o que já tem feito enquanto alternativa a Lula. “Tenho mantido contato direto com Gabriel Escobar, encarregado de negócios dos EUA na embaixada americana”, disse Caiado. “Afirmei a ele que não temos por que comprometer o comércio de carnes, açúcar, couro — exportações sensíveis que Goiás. Ele disse estar repassando tudo ao secretário de governo Marco Rubio.”

O governador apresenta um trabalho que Lula — se está fazendo — não mostra. Lula adotou na imprensa internacional tom hostil: o título da entrevista estampada na capa do New York Times da última quarta-feira, 30, era “Ninguém desafia Trump como o presidente do Brasil”. O presidente mobiliza o sentimento de nacionalismo avivado nos brasileiros após um ataque econômico infundado, sem dúvidas, mas a escolha pode piorar a vida econômica destes cidadãos comuns. 

Caiado aparentou ser o adulto na sala por contraposição. Lula disse ao New York Times: “Se ele [Trump] quer ter uma briga política, então vamos tratá-la como uma briga política. Se ele quer falar de comércio, vamos sentar e discutir comércio. Mas não se pode misturar tudo”. Já, Caiado, disse: “Só o sul da China e Goiás têm terras raras pesadas. Goiás é o único estado no ocidente com mina já produzindo terras raras pesadas. Não há por que queda-de-braço. Nossa parceria na área de ciência (grande parte da saúde são aparelhos americanos) depende de diálogo. Fiz três audiências com Gabriel Escobar e estou esperançoso que o avanço acontecerá.”