“Sem bárbaros o que será de nós?/ Ah! eles eram uma solução.” —  Konstantinos Kaváfis

O confronto entre as polícias do Rio de Janeiro e o Comando Vermelho (CV) — e, possivelmente, outras organizações conexas — resultou numa estatística tão elástica, mais de 130 mortos, que escandalizou o país.

O escândalo resulta, insista-se, do número avultado, o que galvaniza a opinião pública. Os bem-pensantes, notadamente da esquerda, condenaram a “violência” da polícia. Os quatro policiais mortos raramente são lembrados. Mais uma vez, a força do número — “só” quatro.

Mas o crime organizado pode ser enfrentado com luvas de pelica? Se a violência estatal não é a alternativa, qual é a medida correta para enfrentar o crime organizado — as máfias patropi?

A Itália enfrenta o crime organizado, mais conhecido como máfia — na verdade, são máfias, como a Cosa Nostra (Sicília), a ‘Ndrangheta (Calábria), a Camorra (Nápoles) e a Sacra Corona Unita (Apúlia) —, há décadas. O Estado vence aqui e ali, mas os grupos continuam em ação, diversificando seus negócios.

Botero e a violência
Pintura de Botero

Ao longo do tempo, as máfias italianas se diversificaram. Além do tráfico de drogas em si, o que mais aparece, constituíram empresas legais, com dirigentes que são “limpos” — os soldados legais, diriam os capos Vito Corleone e Michael Corleone (Corleone, por sinal, é uma cidade da Sicília).

As máfias italianas são donas de empresas de construção civil e, entre outras, imobiliárias. Articulam fortemente no mercado financeiro.

Num determinado período, com o apoio da Justiça (juízes foram assassinados) e do Ministério Público, o governo italiano combateu, de maneira tenaz, as máfias. Prendeu dezenas de mafiosos — inclusive alguns dos mais poderosos. Condenados pela Justiça, cumprem penas longas.

O rigor da Justiça, do Ministério do Público e da polícia não conseguiu, porém, acabar com as máfias italianas. Na verdade, ampliou seu pé na legalidade, para reduzir o impacto da ação judicial e policial, sem se ausentarem dos negócios ilícitos. Por sinal, o Banco do Vaticano teria “lavado” dinheiro substancial da máfia por algum tempo.

Parte das máfias italianas, notadamente a ‘Ndrangheta, colocou um pé no Brasil e articula com o Primeiro Comando da Capital. O PCC criou redes legais — com “militantes” relativamente “limpos” —, em várias áreas (postos de combustíveis, concessionárias de automóveis, fintechs, usinas de álcool, entre outros negócios) porque a acumulação de capital (bilhões de reais) se tornou tão avultada que não pode mais ser escondida em cofres de casas, apartamentos e fazendas.

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Pintura de Banksy

O PCC se tornou uma empresa — até uma multinacional do crime. Atua, possivelmente, em 28 países, com ramificações na Europa e na América do Sul (Paraguai e na Argentina).

Mesmo sedimentando seu pé na legalidade, o PCC é uma organização mafiosa tão violenta quanto as máfias italianas. Dados seus conflitos externos — volta e meia entra em atrito com o Comando Vermelho — e internos (há dissidências), a máfia tropical mata dezenas de pessoas por ano. Criou até um “tribunal do crime” — sim, uma justiça criminal que condena ou absolve. A sentença de morte é comum.

Nos últimos tempos, com seu exército de 40 mil “oficiais” e “soldados” — é uma estimativa (pode ser mais) —, o PCC se tornou ainda mais agressivo. Além de matar rivais do crime, começou a planejar assassinatos de autoridades públicas, como o delegado aposentado Ruy Ferraz Fontes — um dos primeiros a investigar a fundo suas ações —, que foi morto recentemente.

O promotor Lincoln Gakiya, de São Paulo, está na lista dos jurados de morte. Assim como o diretor de presídios Roberto Medina, também de São Paulo, o Estado governado por Tarcísio de Freitas — que está perdendo a guerra para o PCC, que, aos poucos, se tornou PCE — Primeiro Comando do Estado.

Lincoln Gakiya receia ser assassinado, e com razão. O Estado, com suas polícias, não tem se revelado um protetor adequado àqueles que enfrentam o poderio do crime organizado.

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Pintura de Banksy

Nas favelas do país, sobretudo no Rio de Janeiro e São Paulo, o Comando Vermelho e o PCC se tornaram poderosos — uma espécie de Estado paralelo — dada a ausência do Estado oficial. Lá acabam por cooptar jovens — com seu dinheiro farto e pressão desmedida.

Cidadãos de bem vivem nas favelas — os traficantes são minoria (e muitos, os poderosos, nem moram lá) — e são as principais vítimas tanto dos criminosos quanto das ações das polícias.

Sob o fogo cruzado dos dois Estados, o legal e o criminoso, acabam por morrer cidadãos de bem, inclusive crianças. O que fazer?

Há quem acredite que se pode combater o crime organizado tão-somente com o uso de inteligência e prisões. É o mundo ideal.

Na sociedade da lei, dos cidadãos institucionais, digamos assim, o correto é abrir inquéritos policiais contra os traficantes, investigá-los a fundo e denunciá-los à Justiça.

A Justiça julga seus crimes — além do tráfico, há assassinatos — e decide se absolve ou manda para as penitenciárias.

Às vezes, diz-se que a Justiça é omissa, que a polícia prende e ela solta. Não é bem assim. As penitenciárias estão lotadas de integrantes do crime organizado — o que mostra a alta eficiência da Justiça (e, também, da polícia).

Cândido Portinari mulher chorando
Pintura de Cândido Portinari

Se a Justiça mandar “todos” para as penitenciárias, deixando de absolver crimes mais “leves” — e, no campo do tráfico de drogas, é difícil falar em crimes “leves” —, elas explodirão. Aliás, já estão explodindo.

As penitenciárias brasileiras (e o fenômeno começa a se repetir no Paraguai) são controladas, em larga medida, por integrantes do PCC, do CV e de outras organizações menores e igualmente violentas.

Repetindo a pergunta: o que fazer?

Com apoio de alguns governos estaduais e dos ministérios públicos, o governo federal — com a Polícia Federal e a Receita Federal na linha de frente — decidiu seguir o rastro do dinheiro, arrochando os negócios do PCC. A ideia é que assim a máfia tupiniquim perderá força e, inclusive, membros.

O arrocho financeiro, o cerco às atividades “legais”, é uma medida correta. Mas contribuiu para o aumento da violência do PCC, principalmente contra autoridades públicas. O esquadrão de assassinos do Primeiro Comando do País (PCP) — ex-PCC — está à solta, perigoso e letal.

O Comando Vermelho, cuja base é o Rio de Janeiro, mas com presença ostensiva em vários Estados, segue o PCC nas ações violentas. O que fazer?

O governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, quis o quê exatamente com ação que resultou em dezenas de mortos? Além do planejamento policial, há interesse político-eleitoral.

Mesmo correndo risco de se tornar inelegível, Cláudio Castro é político e quer continuar na política. O combate duro ao crime organizado, uma aspiração da sociedade — que só quer viver (trabalhar e se divertir) em paz —, se for aprovado pelos eleitores, o tornará mais popular para o pleito eleitoral de 2026, que ocorrerá daqui a 11 meses.

Quanto ao planejamento policial, quando se sabe que vai ocorrer confronto, não é possível prever quantos morrerão de ambos os lados.

Morreram quatro policiais e mais de 120 pessoas supostamente ligadas ao Comando Vermelho. Há o que lamentar?

Sim. Primeiro, a morte dos policiais militares e civis que foram ao combate em defesa da socieidade. Segundo, a ação desmedida das polícias, quer dizer, do governo de Cláudio Castro.

A função das polícias é prender, produzir inquéritos e abrir espaço para a Justiça julgar e transformar os presos em “culpados” ou “inocentes”. No caso, havia mandados judiciais — daí, quem sabe, a presença de policiais civis na operação.

Mas, quando se tenta prender e se é recebido a bala, o que se pode fazer? Não dá para ligar para o bem-pensante e dizer: “Venha aqui convencer a turma a se entregar”. O conflito acaba sendo inevitável. Daí as mortes. Vão acontecer outras? É provável.

A morte de dezenas de pessoas — a maioria jovem — é lamentável. O humanismo sugere que, acima de tudo, é preciso preservar vidas. A sociedade democrática cobra, com razão, que se deve seguir as vias legais, com papel pronunciado da Justiça.

No entanto, com o crime organizado — dotado de um exército altamente armado e bem preparado —, é mesmo possível agir a partir de regras totalmente legais? O realismo sugere que não. Mas é preciso “lutar” para que se siga as regras institucionais. A matança indiscriminada pode colocar o Estado no caminho da barbárie. O modelo de El Salvador, apesar do aplauso de muitos, certamente não terminará bem.