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Os seres humanos buscam, desde sempre, construir uma sociedade perfeita — quase edênica. Grupos, inclusive anarquistas, tentaram se insular, para deixar o “mal” do lado de fora e permitir que só o “bem” reinasse nos “cercados”. Descobriu-se, aos poucos, que o “mal” adentrara-se na “ilha” do “bem”.

Então, se não é possível edificar a sociedade perfeita, não se pode fazer nada? Não é assim. Os homens e mulheres devem se unir para erigir, isto sim, uma sociedade melhor e mais igualitária. Mesmo sabendo que em nenhum país, nem mesmo nos nórdicos ou no Canadá, há sociedade perfeita. Toda sociedade tem seus problemas. Veja-se o caso do Japão e da Suíça. São países altamente desenvolvidos, porém com alta taxa de suicídios.

Fala-se muito na Suécia, na Noruega e na Dinamarca como exemplos de países socialmente menos desiguais. São mesmo? São. E o Estado tem papel preponderante na construção de uma sociedade mais justa e a sociedade pressiona para que o Estado mantenha uma política de justiça social. Há ricos, até muito ricos, nas três nações nórdicas. Mas a pobreza é muito menor do que na maioria dos demais países. Pode-se postular que suas sociedades são compostas, em largas escalas, de amplas classes médias.

A China é o segundo país mais rico do mundo, mas a riqueza, mesmo o regime sendo comunista, não é distribuída de modo equitativo. Os pobres são milhões e apenas parte da população vive numa sociedade de consumo semelhante às ocidentais. Quer dizer, Suécia, Noruega e Dinamarca não têm a força da economia chinesa, mas avançaram muito mais em distribuição de renda. Sublinhe-se que as nações nórdicas são capitalistas e a China é comunista.

Trocando em miúdos, uma sociedade, para ser mais igualitária, não precisa ser comunista. Há sociedades capitalistas que são muito mais avançadas, em termos sociais, do que China, Cuba e Coreia do Norte — três países comunistas. Ressalve-se que a pobreza está diminuindo no país de Xi Jinping. Porém os cubanos e os norte-coreanos continuam muito pobres.

Lula da Silva e Jair Bolsonaro: o país precisa de paz para que se construa um projeto de mais igualdade social | Foto: Reprodução

O Brasil é o nono país rico do mundo, mas, assim como a China, não resolveu sua questão social. Discute-se hoje, como se fosse uma vantagem extraordinária, o Auxílio Brasil de 600 reais por mês. É importante? Muito. Mas não retira ninguém da pobreza. Só programas sociais que vão além do compensatório podem realmente integrar os pobres à sociedade.

É importante que as pessoas tenham o mínimo para sobreviver. Mas não se pode pensar no assistencialismo, garantia da sobrevivência emergencial, como causa real da redução da pobreza e inclusão social. Radicalizar o investimento em educação e saúde é crucial para criar uma sociedade mais justa.

Entretanto, criar uma sociedade qualitativa para todos, para a maioria, exige ao menos confluência entre oposição e situação. Num país de ambiente radicalizado, com direita e esquerda se atacando e num enfrentamento raro, é possível pensar, de maneira coletiva, em resolver o problema da desigualdade social? É muito difícil. Porque problemas estruturais precisam de um envolvimento global da sociedade civil e da sociedade política. O avanço social de um país necessita do apoio de todos — da direita, da esquerda e do centro. É preciso que as forças políticas se irmanem — ideologias políticas à parte.

Não se trata de eliminar o conflito, pois isto é impossível, mas de pensar que problemas gigantes exigem esforços comuns e grandeza de forças políticas destoantes.

Henrique Meirelles e Paulo Guedes: as diferenças entre eles não são grandes | Foto: Reprodução

Tudo indica que uma direita forte — formatada a partir das classes médias, mas hoje enraizada em toda a sociedade — veio para ficar. A esquerda já era forte, tendo conquistado a Presidência da República por quatro vezes seguidas e pode voltar ao poder.

O fato é que direita e esquerda precisam descobrir, para além das ideologias, um denominador comum para resolver problemas candentes do país. Mimetizando o Delfim Netto da década de 1970, o ministro da Economia, Paulo Guedes, pensa em crescimento como elemento motivador do desenvolvimento, o que não é totalmente incorreto. Mas há crescimento econômico com escasso desenvolvimento (a repartição, digamos, dos frutos do crescimento). Sabe-se que Bolsonaro, com o auxílio do Centrão, teve de enfrentar o Posto Ipiranga para aumentar o Auxílio Brasil. Se dependesse exclusivamente do ministro, o Auxílio teria sido bem menor. (Henrique Meirelles, cotado para ser ministro da Fazenda de um possível petista, é muito diferente de Paulo Guedes? Não é. A diferença é que o PT tem força junto a Lula da Silva e, por isso, qualquer ministro terá de adequar, ao menos em parte, às suas expectativas.)

Guedes não disse isto, portanto é incorreto sugerir que disse. Mas fica-se com a impressão que o ministro não dá a mínima importância à questão social. Porque é um liberal ortodoxo, daqueles que dizem que é preciso dar a vara para o pobre pescar, e não o peixe, porque senão gera acomodação.

Recentemente, numa entrevista à revista “Veja”, com as ideias bem arranjadas, como se o ministro tivesse falado em seu lugar, Bolsonaro se apresentou como liberal, e não mais como o nacionalista-estatista que, na Câmara dos Deputados, sempre foi.

A rigor, o presidente não é liberal e seu governo é “empurrado” por Guedes — que é quem realmente governa o país, por saber o que se deve fazer. Eventualmente, sobre pressão do Centrão — que está sempre de olho nos eleitores — e dos militares, que são nacionalistas e nada liberais (o historiador Jorge Caldeira informa que nunca se criou tantas estatais quanto nos governos da ditadura civil-militar, entre 1964 e 1985), Bolsonaro pressiona e faz Guedes recuar.

O Orçamento Secreto, chamado pela oposição de Bolsolão, com seus bilhões de reais, não é invenção de Guedes, e sim de um conluio entre o Centrão e Bolsonaro. Políticos como o ministro Ciro Nogueira e Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, convenceram Bolsonaro que sua governabilidade dependia, em larga medida, da aprovação do Orçamento Secreto, que deu origem ao Tratoraço.

Portanto, o Orçamento Secreto viabilizou o governo de Bolsonaro. Foi uma jogada de mestre dos pragmáticos de sua base política, ou seja, do Centrão. Mas tal Orçamento, que jorrou dinheiro para os deputados e senadores, não beneficiou apenas políticos bolsonaristas e do Centrão. Beneficiou integrantes de várias correntes políticas, inclusive do PT.

Se Bolsonaro for reeleito, o Orçamento Secreto será mantido, por certo. Porém, se Lula da Silva for o eleito, o que se fará? Para enfrentar a força da nova direita — que é bolsonarista —, que talvez não seja fisiológica, e sim ideológica, o que um governo do PT fará no Congresso? Terá de compor com o Centrão para garantir a governabilidade, como sempre. Não há outra alternativa. Porque será preciso conviver com políticos reais, que continuam fortes.

Então, se eleito, o que Lula da Silva fará para atrair o Centrão e garantir a sustentabilidade de seu governo? Transformará o Orçamento Secreto num Orçamento Transparente? Não dá para saber. Só se tem uma ideia dos problemas reais quando eles são apresentados no dia a dia, e não apenas em conjecturas.

Mas do que realmente o país precisa para avançar, para criar uma sociedade menos desigual? Paz, e menos ódio. Porque “menos ódio” e não “sem ódio”?. Porque não se reduz o ódio, em larga proporção, depois que se sedimentou na sociedade. A construção de uma sociedade mais pacífica, com tolerância e respeito à divergência, demanda tempo.

Governos radicalizados, à esquerda ou à direita, demoram a encontrar uma saída menos traumática de gerir um país. Bolsonaro moderou-se ao acoplar-se ao Centrão — que, no caso, teve uma atuação benfazeja, porque é realista e não prega o discurso do ódio (e nem quer saber de ditadura). Pode-se sugerir que o governo de Bolsonaro só avançou, em alguns aspectos, devido às ações paradoxais de Guedes e do Centrão. Os dois, cada um a seu modo, “puxaram” Bolsonaro para o “chão” e o retiraram dos guetos ideológicos radicais das tropas que seguem seu filho Carlos Bolsonaro, o Carluxo.

O papa Francisco, o hermano argentino, disse, na semana passada, que o Brasil precisa de paz e dizer adeus ao ódio (uma referência direta ao bolsonarismo, que, de matiz mais evangélico, decidiu confrontar a Igreja Católica, o que nem o fascismo italiano teve coragem de fazer).

Francisco nada tem de panglossiano e, por isso, sabe que os ânimos continuarão exaltados por um bom tempo. Mas, como chefe da Igreja Católica — uma instituição que existe há dezenas de séculos —, portanto um realista absoluto (é chefe de um império poderoso e espraiado pelo mundo), o papa tem de pregar a paz, o que faz muito bem, com precisão e correção.

Devolver a paz ao país, para que todos possam produzir com tranquilidade e lutar por uma sociedade socialmente menos excludente, é crucial. A rigor, não há 51 milhões de bolsonaristas nem 57 milhões de petistas. A maioria dos eleitores não é ideológica e, certamente, liga muito pouco para esquerda e direita. A maior parte dos brasileiros, passados os ânimos exaltados, só quer viver com tranquilidade. Em paz.