Lula da Silva precisa de militares, produtores rurais e evangélicos para pacificar o Brasil
15 janeiro 2023 às 00h00

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‘Muitos de vocês [ministros] são resultado de acordos, porque não adianta a gente ter o governo tecnicamente formado em Harvard e não ter o voto na Câmara dos Deputados e não ter o voto do Senado. (…) Não tem veto ideológico para conversar nem assunto proibido em se tratando de coisa boa para o povo brasileiro.’ A fala é do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de 77 anos
Política é oportunidade. Ao se eleger governador de Minas Gerais, em 1982, Tancredo Neves sabia que teria um papel-chave a desempenhar na sucessão do presidente-general João Figueiredo, em 1985. O mineiro de São João Del Rey havia sido ministro da Justiça do último governo de Getúlio Vargas e primeiro-ministro no regime parlamentarista, de 8 de setembro de 1961 a 12 de julho de 1962. A história, a grande história, andava ao seu lado, como se fosse uma espécie de irmã gêmea.
Com seu jeito tranquilo, e, ainda assim, impetuoso, Tancredo Neves foi acompanhando tanto o governo quanto as oposições. Em 1984, Dante de Oliveira apresentou o projeto das Diretas Já. O país se vestiu de liberdade, defendendo a retomada da democracia, que ressurgia nos escombros ou poros da ditadura, e foi às ruas — vibrante.

Raposa política, daquelas que sentem o pulsar da história no cérebro, Tancredo Neves participou da movimentação pró-diretas, mas entendendo que militares e civis conservadores operariam, no Congresso Nacional, contra o projeto de Dante de Oliveira (o deputado morreu em 2006, aos 54 anos), articulou uma ampla aliança política para derrotar Paulo Maluf — o candidato de Golbery do Couto e Silva — no Colégio Eleitoral.
A esquerda ficou meio deprê, mas na vida, na história, o que se tem é o possível, raramente o ideal. De fato, o ideal eram eleições diretas. Mas uma vitória no Colégio Eleitoral representava uma derrota da ditadura, quer dizer, o fim do regime discricionário. Era, portanto, um avanço — e tanto. Disto sabiam Tancredo Neves e Ulysses Guimarães, que, durante 21 anos, enfrentaram a ditadura com as duas armas possíveis — discursos e posicionamentos.
De cara, Tancredo Neves percebeu que, se não contasse com o apoio de integrantes rebelados da ditadura, como Antônio Carlos Magalhães e José Sarney, não teria condições de vencer Paulo Maluf no Colégio Eleitoral. Poderia até vencer, mas, depois, teria dificuldade de governar. Daí que se fez um pacto, uma tradição negociada, que levou José Sarney à vice de Tancredo Neves. E sob a bênção do general Lêonidas Pires Gonçalves, um homem da ditadura que migrou para o lado dos democratas. Era, por assim dizer, a transição possível.
A lembrança a um passado bem recente, quase 38 anos, é útil para compreender o presente, que é do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de mais de 200 milhões de brasileiros.
O Brasil vive um período de transição. Saiu do poder um político, Jair Messias Bolsonaro, de 67 anos, que, embora tenha sido derrotado eleitoralmente por Lula da Silva, almejava continuar presidente — quiçá via um golpe de Estado.

Há parentesco entre o paulista da cidade de Glicério e o presidente Jânio Quadros. Este renunciou, em agosto de 1961, mas pretendia voltar nos braços do povo e ao lado dos quepes dos militares. Não voltou, como Bolsonaro certamente não voltará. Há bolsonaristas rebelados, e entre eles vários militares, da reserva, mas o ex-presidente não parecer acreditar que tenha condições de chefiá-los. Por um motivo prosaico e realista: não tem o apoio das Forças Armadas — leia-se, sobretudo, do Exército — para conquistar e se manter no poder.
No domingo, 8, houve um golpe de Estado pela metade. Golpistas, que merecem o apodo de terroristas, invadiram as sedes dos três poderes — o Judiciário (Palácio do Supremo Tribunal Federal), o Executivo (Palácio do Planalto) e o Legislativo (Congresso Nacional) — e promoveram um imenso quebra-quebra. Pode-se sugerir que, de alguma maneira, tomaram o poder, porém, como se fossem anarquistas, se distanciaram da conquista do Estado, e exatamente, quem sabe, por falta de um líder firme e, sobretudo, presente. Bolsonaro, curtindo as delícias dos Estados Unidos, é o que se pode nominar de líder absenteísta, desses que põem fogo no circo e é o primeiro a fugir da cena… do crime, digamos.
Para se manter no governo, e sobretudo gerir o país em paz — o conflito, típico da democracia, não vai cessar, mas é vital buscar o consenso possível e necessário —, Lula da Silva precisa adotar o discurso moderado apresentado, por ele mesmo, no início deste texto, na epígrafe.

Se Lula da Silva não controlar seus radicais (aqueles que, quando o fogo é aceso, correm para Paris), levando-os a negociar a partir da crueza da realidade, os radicais do outro lado vão ganhar espaço para suas manifestações.
Num primeiro momento, Lula da Silva começou a radicalizar, a falar duro — e era é mesmo imperativo, porque não se brinca com golpistas-terroristas, que não devem ser tratados com luvas de pelica —, mas voltou a adotar o discurso da moderação.
Radicais do PT, servos da irrealidade, sugeriram ao presidente que afastasse o ministro da Defesa, José Múcio Monteiro. Lula da Silva enfrentou a malta vermelha e decidiu mantê-lo, num ato de inteligência política.
José Múcio é desses moderados, da estirpe de Marco Maciel, que, em momentos de crise, são necessários. Porque ele sabe abrir canais de diálogo. Dada sua experiência, abre portas e não arromba portas abertas.
As Forças Armadas — Aeronáutica, Exército e Marinha — são moderadas e cumprem a Constituição. Tanto que não há almirantes, brigadeiros e generais da ativa propondo a derrubada de Lula da Silva e um golpe de Estado. Pode até ser que há militares da ativa que sejam golpistas, mas não estão se manifestando. O que impera, entre os oficiais, é a defesa da Constituição.

Se as Forças Armadas são favoráveis à democracia, e estão dando provas de que não são golpistas — seu comportamento, até agora, tem sido exemplar —, não há motivos para acossá-las e tampouco trocar o ministro José Múcio. Este, por sinal, representa bem o governo e, também, as Forças Armadas, que o veem como gestor equilibrado e nada esquerdista.
O ministro da Justiça, Flávio Dino, é filiado ao PSB, mas esteve sob as ordens do PC do B por um bom tempo. Entretanto, apesar de às vezes “falar demais” — errou quando sugeriu que Ibaneis Rocha (talvez mais omisso do que conivente com os atos antidemocráticos) deveria permanecer no cargo, jogando para a plateia (na qual se inclui a mídia) —, está dando mostras de moderação, inclusive em relação às Forças Armadas.
O momento é de incerteza, o quadro ainda não está inteiramente delineado — o Supremo Tribunal Federal agiu com correção no “combate duro” aos atos golpistas, mas fica-se com a impressão de que, de alguma maneira, está governando ao lado de Lula da Silva, o que não é seu papel — e, por isso, exige-se moderação, em especial do presidente da República, um político que, aos 77 anos, não é radical, tampouco é comunista. É um socialdemocrata “formatado”, digamos assim, pela Igreja Católica e pelas lides sindicais.

Lula da Silva é de esquerda, mas, repetindo, nada tem de comunista. Almirantes, brigadeiros e generais, que em geral são bons leitores de história, sabem disso. Lula da Silva não tem nada a ver com Lênin, Stálin, Fidel Castro, Raúl Castro e mesmo Nicolás Maduro, da Venezuela, e Daniel Ortega, da Nicarágua. É um democrata de esquerda, de um realismo que impressiona. Sabe que governa no capitalismo e para os capitalistas, e o que quer mesmo é melhorar a vida dos mais pobres, constituindo uma sociedade menos desigual. Não planeja nenhuma revolução socialista.
Com certa habilidade, Lula da Silva se reaproximou de parte da direita, principalmente a instalada no União Brasil e no PSD (partido de centro-direita), e reconquistou parte do centro, ao atrair o MDB para o governo. Mas há três questões-chaves a discutir e, talvez, a resolver.
O presidente precisa, passando por cima dos radicais do PT, atrair o pP de Ciro Nogueira e Arthur Lira e o PL de Valdemar Costa Neto para o seu governo. Não há escapatória. Não se trata apenas de governabilidade, que é essencial, e sim de evitar a pressão das ruas, do golpismo.

O Progressistas e o PL representam a direita — o primeiro é moderado (mais de centro-direita) e o segundo está radicalizado mais pelo bolsonarismo — que, de certo modo, dará trabalho para Lula da Silva. Por isso, mesmo que tenha de fechar o nariz, Lula da Silva terá de buscá-la.
O PL certamente se dividirá — uma parte se tornará mais moderada, e talvez se aproxime do governo, e outra parte continuará radicalizada, porque associada a Jair Bolsonaro e seus filhos, o deputado federal Eduardo Bolsonaro e o senador Flávio Bolsonaro.
Há a questão dos evangélicos. Vários dos presos no domingo são evangélicos, o que prova que estão muito mais radicalizados do que os católicos. Muitos deles tiveram as cabeças feitas por pastores radicalizados e, como hordas de fanáticos, parecem dispostos a fazer qualquer coisa em “defesa” de seus guias espirituais e, também, políticos. O que se sugere não é a cooptação de evangélicos, para transformá-los em massa de manobra, com o objetivo de reduzir o impacto do bolsonarismo na sociedade brasileira. O que está se propondo é a abertura de diálogo entre líderes evangélicos e os agentes mais moderados do governo Lula da Silva.
É provável que o bolsonarismo só vai murchar se o radicalismo evangélico for contido. Os evangélicos devem ser vistos não com preconceito, e sim, como agentes da sociedade brasileira. Agentes religiosos, políticos e culturais. Se forem tratados apenas como “fanáticos”, como representantes da vanguarda do atraso, a crise persistirá.
Por fim, há o pessoal do agronegócio. De fato, o pensamento de direita prevalece entre os produtores rurais. Mas onde estavam eles de 1985 a 2018, um período de 33 anos — a idade com a qual Jesus Cristo morreu —, em termos políticos? Possivelmente, já eram de direita, mas moderados e não golpistas. De certo modo, o bolsonarismo “entrou” na cabeça deles e os tornou militantes radicalizados. Mas talvez seja possível uma retomada do realismo político, da ideia de que nada é melhor do que a democracia, que permite a troca daqueles que estão no poder de quatro em quatro anos. É seminal não tratar os homens do agronegócio como meros fanáticos. Porque não são. São empreendedores muito bem-sucedidos e que têm colaborado para o crescimento e desenvolvimento do país. Não se trata de estender tapete vermelho para eles, e sim de estender a mão, em busca de paz para que o país possa retomar o crescimento econômico e restabelecer a paz. É na rotina que se reconstrói e se melhora o mundo.
O Brasil tem sorte: Lula da Silva é moderado e o político talhado para tornar o país, mesmo com conflitos e discordâncias acerbos, menos violento e mais pacífico. É provável que consiga impor o discurso de que, mais relevante do que continuar “brigando”, é mais importante lutar para reduzir as desigualdades sociais — que ainda são gritantes — no país.