Caro presidente Luiz Inácio Lula da Silva,

Como sabe a torcida do Corinthians, seu time do coração, morri num acidente automobilístico, no dia 22 de agosto de 1976 — há 46 anos —, quando ia me encontrar com minha amada Maria Lúcia Pedroso, uma mulher bela e elegante. Ninguém é perfeito, nem os santos. Eu tinha 73 anos, me considerava ainda jovem e tinha esperança de ser eleito presidente pela segunda vez (o sr., na época, contava 31 anos). Em 1985, quando Tancredo Neves foi eleito no Colégio Eleitoral, eu teria completado 82 anos. Tancredo Neves morreu com 75 anos.

Como estou morto, como sabem as torcidas do Cruzeiro (aquele do Dirceu Lopes e do Tostão, o Tusta), do América (de Minas) e do Vasco da Gama, pedi para um jornalista anotar minha carta e enviá-la para o sr. por intermédio do Jornal Opção. Até pensei em remetê-la pelo jornal “Estado de Minhas”, mas, informado que não tem simpatia pelo governador Romeu Zema — aquele que não sabia quem era Adélia Prado, a grande poetisa (ainda não dou conta de dizer “poeta”) de Divinópolis, que, aos 87 anos, está vivíssima e tão produtiva quanto o agronegócio de Rio Verde, aquela cidade do Sudoeste goiano, vizinha de Jataí, a do Toniquinho, sim, o amigo do Maguito Vilela, pai do Daniel Vilela, este, vice-governador de Goiás.

Ah, o jornalista não é o Adolpho Bloch, o meu velho amigo da revista “Manchete” que, morto em 1995, não é, naturalmente, um personagem do autor de “Memorial de Aires” (se o sr. não leu, por favor, leia. Fiquei sabendo que leu, mesmerizado, o conto “Teoria do Medalhão”. Sugira ao Fernando Haddad e à Gleisi Hoffmann que leiam. É imperdível neste mundo de alienistas). Não sei se posso dizer o nome do periodista. Será que posso? Bem, vá lá: é o Juscelino Goulart de Oliveira, reportero que, tendo residido em Goiás e no Rio, no Cosme Velho, é quase um personagem do Joaquim Maria, sim aquele que se tornou conhecido como Machado de Assis e escreveu o estupendo romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e o fabuloso romance “Dom Casmurro” (lembre-se de minha Maria Lúcia Pedroso).

Ronaldo Caiado: o governador sabe que a Reforma Tributária tende a beneficiar o sistema “colonial” que beneficia São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro | Foto: Reprodução

Presidente, desculpe-me se peroro. É que político que não perora não é político. É coroinha. Talvez sacristão.

Lula da Silva, espero não desrespeitar a liturgia do poder ao chamá-lo apenas de Lula ou de Lulinha. Sabe que, há dois dias, encontrei-me com Leonel Brizola, o político gaúcho que a história acariocou? Pois bem: ao comentar que a ditadura o impediu de ser presidente, o sr. Moura, como é conhecido no Céu — estamos todos no Céu (a ditadura civil-militar foi o purgatório, ou, quiçá, o inferno, e sem Dante, Beatriz e Virgilio para nos guiar) —, respondeu-me, agastado: “Sr. Pé de Valsa, às das festas de Diamantina, quem me matou politicamente não foi a maledetta ditadura, e sim Lula, o da Silva de Caetés-Garanhuns. Ele ‘roubou’ meu espaço na política patropi, em termos de Presidência da República”. Confesso, presidente, que não entendi a lógica da verborragia do engenheiro de Carazinho.

Presidente, sou médico-urologista, especializado na França, como o governador de Goiás, Ronaldo Caiado. Este, como sabe, é um craque da ortopedia que, certa vez, salvou a vida do deputado Edmundo Galdino, do PC do B.

Estava lá em Minas, trabalhando como médico, quando fui convocado para ser prefeito de Belo Horizonte. Não queria, mas aceitei a pressão do governador-interventor Benedito Valadares. Em seguida, picado pela mosca azul, fui eleito governador de Minas Gerais. Como gestor de um dos mais populosos Estados do país, construí, entre outras coisas, a Pampulha, com o apoio do arquiteto Oscar Niemeyer, que era, então, bem jovem.

Getúlio Vargas e Tancredo Neves: o presidente e o ministro da Justiça | Foto: Reprodução

Fiz um bom governo em Minas. Então, quando Getúlio Vargas (ditador de 1937 a 1945) — dizem que o sr. o admira e leu a excelente trilogia biográfica escrita pelo Lira Neto — morreu, em 1954, abortando o golpe civil-militar, os políticos do PSD e do PTB consideraram que eu tinha chance de ser eleito presidente. Como havia me tornado um político ousado, revolvi ser candidato. Durante a campanha, estive em Jataí e disse à multidão, provocado por Toniquinho, que faria a capital em território goiano. Na verdade, eu já tinha o projeto de construí-la no Cerrado. Mas aproveitei a deixa e fiz o anúncio.

Eleito, com menos de 40% dos votos, tomei uma decisão: vou retirar a capital do Rio de Janeiro. A nova cidade será construída, do nada — mas inspirada na Goiânia de Pedro Ludovico Teixeira, de acordo com o escritor e pesquisador Iúri Rincon Godinho —, em Goiás.

Me perguntam, Lula, porque fiz a capital, talvez pensando em Dom Bosco, no Cerrado. Eu quis edificar uma cidade bonita, com projeto de Oscar Niemeyer e Lucio Costa, dois arquitetos do balacobaco (presidente, abro um parêntese para falar de seu conterrâneo pernambucano Joaquim Cardozo, com “z”. Era um engenheiro estrutural, ou calculista, que trabalhava para manter de pé os traçados de Niemeyer, que era comunista, o sr. bem sabe. Ele era poeta, como Adélia Prado. Prez, procure conhecê-lo. Niemeyer e a durabilidade de várias obras de Brasília devem muito ao recifense). Estou perorando de novo, bem-sei.

Oscar Niemeyer e Lucio Costa: arquitetos responsáveis pela construção de Brasília | Foto: Reprodução

Entretanto, Lula, eu não quis tão-somente criar uma cidade beautiful (minha segunda língua era o francês, Prez, mas, volta e meia, falo uma palavra do esperanto que deu certo, o inglês. Mas o mandarim está chegando, e para ficar. São Jerônimo já está dando aulas a respeito). Brasília é uma cidade e um conceito. Eu quis descentralizar o desenvolvimento do país.

Brasília, no centro do Brasil, foi uma estratégia para desenvolver o país de maneira global. Rio de Janeiro e, sobretudo, São Paulo estavam devidamente desenvolvidos, na década de 1950. Minas Gerais estava bem e, nas décadas seguintes, foi se industrializando, tornando-se uma potência. Era preciso olhar para a nação brasileira — que não é, como entendeu o compositor e cantor Milton Nascimento, só litoral.

Portanto, caro Lula, Brasília foi construída para que se processasse uma redescoberta do Brasil, como se diz por aí (perdoe-me, Prez, o cacófato), profundo. A meta não era apenas pôr de pé uma cidade bonita, como de fato é — com edifícios que, a rigor, são esculturas, obras de arte. A meta era e é tornar o país mais homogêneo, menos desigual. Parece que nossa missão foi cumprida, ao menos em parte, e dou graças ao trabalho dos chamados candangos — dos trabalhadores que saíram de seus Estados, centenas deles do Nordeste, para erguer do nada uma urbe. Por sinal, saiba que o senador Emival Caiado, parente de Ronaldo Caiado, me ajudou na edificação da capital.

Valdivino Oliveira, economista da PUC-Goiás: os incentivos fiscais contribuíram para o crescimento da economia de Goiás | Foto: Fernando Leite/Jornal Opção

Lula, terminado meu mandato, os goianos, em sinal de agradecimento — e fiquei mui grato —, decidiram me eleger senador. Eu me tornei, caro Prez, um mineiro-goiano, ou, como queria o bardo Reynaldo Jardim, “goianeiro”.

Em 1965, o Brasil teria um presidente “goiano”. Sim, Lula. Estou falando de mim. As pesquisas apontaram que eu derrotaria Carlos Lacerda, da UDN.

Como sabe, prezado Lula, eu incentivei muito o desenvolvimento da indústria, e não apenas a automobilística. Porém, no segundo mandato, eu daria prioridade à agricultura. Se fosse hoje, manteria amplo apoio à agricultura, mas também incentivaria o investimento maciço em tecnologia.

Entretanto, a ditadura, que era civil e militar, cassou meu mandato e me retirou da política. Até o presidente Ernesto Geisel, anos depois, quando eu já havia morrido — Milton Campos, Bilac Pinto e Pedro Aleixo, que moram no Céu, me contaram —, num livro de memórias (uma longa entrevista) organizado pela Fundação Getúlio Vargas, admitiu que eu não era corrupto e, portanto, minha cassação havia sido um equívoco dos militares, sugestionados, quem sabe, por civis-vivandeiras.

Everaldo Leite: o economista sabe que a Reforma Tributária não é isenta e não é positiva para os Estados ditos emergentes, como Goiás | Foto: Jornal Opção

A guerra fiscal: ficção dos bandeirantes

Agora, data vênia (sou meio rábula), quero falar da dita guerra fiscal. Antes, perorando, uma palavrinha sobre os Estados Unidos, que são, de fato, um país federalista. Nos Steites, terra de Toni Morrison e Joyce Carol Oates, os Estados têm suas próprias políticas para atrair investimentos. Fala-se, lá, em guerra fiscal? Não. Estados pobres, como o Mississippi e o Tennessee, precisam, para atrair empreendedores — indústrias em variados matizes —, de incentivos fiscais específicos.

Como os Estados Unidos são uma federação, o Mississippi e o Tennessee não são questionados ao oferecerem incentivos fiscais. Ninguém, repita-se, fala em guerra fiscal. A Califórnia, Estado mais rico do que dezenas de países, não discute nem denuncia os brothers que não são afortunados.

Por que no Brasil se fala em “guerra fiscal”, caro Lula? Sobretudo, mestre de São Bernardo, quem criou a fala “guerra fiscal”?

A ideia de “guerra fiscal” — tão pejorativa quanto falsa — surgiu, pela ordem, em São Paulo, Minas e Rio de Janeiro. Até na minha Minas, caro Prez. Quem a sedimentou foi a imprensa, ou, como se diz hoje, a mídia.

Estados como Goiás, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Tocantins, Maranhão, Ceará, Bahia e Pará, para arrolar apenas oito, criaram incentivos fiscais para atrair empreendimentos privados. Sabe por que a montadora de carros Mitsubishi se instalou em Catalão, no Sudeste goiano — não muito longe de Minas? Porque o governo de Goiás ofereceu incentivos fiscais. Sem tais incentivos, a montadora teria sido implantada em São Paulo ou noutro Estado igualmente rico e populoso, como Minas.

Mitsubishi em Catalão: a montadora teria vindo para Goiás sem a guerra fiscal? Never | Foto: Divulgação

A Mitsubishi colaborou para dinamizar a economia de Catalão, porque, além de contribuir para aumentar a renda dos trabalhadores locais, atraiu outras empresas e gera dividendos para a prefeitura e para o Estado.

A BRF se instalou em Rio Verde e Mineiros, no Sudoeste de Goiás, como Perdigão. Atraída pelos incentivos fiscais, a empresa, ao lado dos produtores de soja, mudou a configuração econômica da região. A economia se tornou mais diversificada com a criação de cadeias produtivas. Cada produtor associado se tornou, de alguma maneira, uma espécie de sócio minoritário da empresa-mãe, a BRF. A conexão (ou integração) dos setores produtivos tornou o Sudoeste uma das áreas mais prósperas do país.

Lula, falei apenas de duas empresas instaladas em Goiás — Estado pelo qual fui, como disse antes, senador. Pois tanto a Mitsubishi quanto a BRF praticamente recriaram as economias de duas regiões do Estado — o Sudeste e o Sudoeste. E nem falei dos produtores de soja e minérios.

BRF se instalou em Rio Verde por causa dos incentivos fiscais do governo de Goiás | Foto: Divulgação

Pois bem, Prez: graças ao crescimento do PIB de Estados como Goiás — o PIB deste Estado chegou a 6,6% em 2022 — é que o PIB do Brasil chegou a 2,2%. Os Estados-emergentes, como os citados acima, estão garantindo, com a força do agronegócio, uma indústria em expansão (por exemplo, a indústria de fármacos) e serviços azeitados, que o país cresça em níveis razoáveis.

Mesmo assim, alguns Estados, como São Paulo, Rio de Janeiro e minha Minas — e só lhe digo isto porque estou morto e não posso mais disputar eleições —, utilizando o estigma de “guerra fiscal” (que pessoas néscias repetem sem refletir sobre o assunto), combatem, de várias maneiras, a industrialização de Estados como Goiás, Mato Grosso, Tocantins e Pará.

Prez, sabe o colonialismo? Sabe que a França (o sr. tem de brigar mesmo com o protecionismo exacerbado dos franceses) e os Estados Unidos são potências colonialistas disfarçadas de amantes e patrocinadoras da liberdade? Pois São Paulo, Rio e Minas são potências colonialistas e, como tais, trabalham, de forma às vezes solerte — daí a atual Reforma Tributária —, para evitar a expansão de alguns Estados, que, a rigor, são colônias. Ah, pela antena parabólica do Céu, pude ouvir o sr. falando que o Brasil não quer apenas produzir matérias-primas, como soja e minérios, para a China, para os Estados Unidos e para a Europa. O sr. está certíssimo. O Brasil é uma nação, não é uma colônia.

Com incentivos fiscais, a Caoa Chery vai fabricar carros elétricos em Anápolis | Foto: Divulgação

Mas veja só, caro Lula: se São Paulo, Rio e Minas não querem ser colônias da China, dos Estados Unidos e da Europa, por que alguns Estados — Goiás, Mato Grosso e Tocantins — têm de ser colônias das “metrópoles” brasileiras? Por que Goiás não pode transformar sua soja e seu ouro localmente? Por que o Tocantins não pode se tornar um polo tecnológico de ponta?

Insistamos, presidente, “guerra fiscal” é ficção criada pelos colonialistas de Sampa — é coisa de neo-bandeirantes. O sr., homem de Caetés-Garanhuns, não deveria aceitar isto. Peça ao Fernando Haddad, o chefão da Fazenda, para manter um colóquio com os economistas Valdivino Oliveira e Everaldo Leite e os empresários José Alves e Marcelo Baiocchi. O ministro vai tomar um banho de Brasil, porque, como sabem os homens do IVA — a nova ideia mágica que (não) vai “salvar” Bruzundangas —, quando se fala de Brasil se está falando não dos Estados menos afortunados, como Goiás, Piauí, Tocantins e Mato Grosso. Estão falando de São Paulo, Minas e Rio.

Admira-me, sr. Lula, que governadores de Estados emergentes — e até de não-emergentes — estejam apoiando a Reforma Tributária dos banqueiros e industriais de São Paulo.

O companheiro Roberto Marinho, sempre discreto — se senta pouco atrás de Deus e São Pedro —, confessou ao Evandro Carlos de Andrade que não ficou satisfeito com o comportamento recente de jornalistas da GloboNews. O governador Ronaldo Caiado, de Goiás, dava uma entrevista supimpa aos jornalistas Nilson Klava e Ana Flor, mostrando grande entendimento de questões tributárias, quando foi, abruptamente, retirado do ar pelo primeiro, certamente orientado, via fone de ouvido, por algum editor. A Globo, com grandes estruturas em Sampa e Rio, comprou, como se fosse sua, a Reforma Tributária do Sudoeste. A Globo é do Sudoeste, falando nisso.

Cá entre nós, jovelho Prez, desculpe-me chamá-lo de jovelho — quero apenas dizer que o considero jovem de cabeça e velho apenas em termos de idade —, Ronaldo Caiado, um liberal civilizado, disse, na entrevista “cortada”, que a verdadeira revolução social será produzida pela Educação. Percebeu a dica, caro Lula? A salvação do Brasil não é o IVA, espécie de mágica de políticos e empresários, e sim a Educação, com “E” maiúsculo. O programa social mais eficiente da história — que é capaz de produzir igualdades (no plural) — é uma educação pública de qualidade para os pobres. A assistência social é necessária, mas a inclusão de fato se dará por intermédio da Educação.

Preclaro Lula, tenho de terminar a carta, pois, daqui a pouco, tenho uma resenha com Pedro Ludovico, Juca Ludovico, Galeno Paranhos, Domingos Velasco, Emival Caiado, Peixoto da Silveira, Otávio Lage, Mauro Borges, Hélio de Brito, Fernando Cunha, Juarez Magalhães, Juarez Bernardes, Henrique Santillo, Paulo Campos, Paulo Roberto Cunha, Nion Albernaz, Maguito Vilela e Iris Rezende (criador do incentivo fiscal Fomentar). De que vamos falar? Em suma, que a Reforma Tributária pode se tornar o grande mico do século 21. Daqui a alguns anos, talvez cinco ou dez, estaremos falando da necessidade de outra Reforma Tributária — uma que respeite o Pacto Federativo.

Espero que minha fala, rica (ou pobre) em perorações, não tenha sido inoportuna, caro Prez.

Com o abraço e o respeito do

Juscelino, o JK de Diamantina

P.S. do Jornal Opção: É evidente que a carta é fictícia, pois JK, morto em 1976, não a escreveu. Mas as ideias e fatos expostos não são fictícios.