Bolsonaro não precisa de “golpe” porque já está no poder
01 março 2020 às 00h01

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Governo, oposição e mídia precisam encontrar um espaço para o diálogo. Mas, para tanto, é preciso de tolerância

O golpe de março-abril de 1964 foi civil-militar. A ditadura de 1964 a 1985 foi civil-militar. É provável que, sem a articulação de civis — como Magalhães Pinto e Carlos Lacerda —, militares não teriam derrubado o presidente João Goulart. Civis, inclusive jornalistas e proprietários de jornais, criaram um ambiente favorável ao golpe. Na ditadura, se o comando era dos militares, o arcabouço institucional, o sistema fazendário e o planejamento foram amplamente controlados por civis.
Pós-ditadura, a partir de 1985 — talvez devido ao pacto dos civis que trocaram o antigo regime pelo apoio a Tancredo Neves, do PMDB —, começaram a construir a história de um golpe e de uma ditadura tão-somente militar. Era conveniente para alguns civis, como José Sarney, Antônio Carlos Magalhães, Aureliano Chaves e Marco Maciel, que, depois de servirem à ditadura e de se servirem da ditadura, rebanharam-se nas águas de Heráclito e se “tornaram” democratas integrais — deixando para trás as roupas conspurcadas de servidores de um regime de exceção. Os militares ficaram com a “bomba”, quer dizer, com o desgaste. Se tornaram os pais do regime militar, que, se também era civil, “deixou” de sê-lo.

Parte da esquerda também vocifera que o golpe e a ditadura foram “exclusivamente” militares. O motivo talvez seja prosaico: piorar a imagem da ditadura, porque “civil” seria, de algum modo, um atenuante. O misto de ditadura com democradura — com partidos políticos, MDB e Arena —, um fenômeno quase único, não era, digamos, aceitável. Portanto, retirando o elemento civil, era uma desgraceira só — um regime supostamente fascista (o que não era. Era autoritário, mas não totalitário). Consta que militares ficaram “escandalizados” quando receberam o projeto do AI-5, elaborado por civis, porque era mais autoritário do que esperavam. Teria sido atenuado, se isto é possível, porque o ato institucional número 5 era a ditadura se tornando ainda mais ditadura.
Historiadores do quilate de Daniel Aarão Reis Filho já escrevem que a ditadura foi civil-militar. É um avanço. Os civis, inclusive Milton Campos, Bilac Pinto, Petrônio Portela, Aureliano Chaves, Marco Maciel — figuras respeitáveis da política patropi —, voltaram ao palco da história (há até a possibilidade de alguns civis terem “moderado” a ditadura e dois militares, Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva, articularam o seu fim. A ditadura havia se tornado “uma bagunça”, admitiu Geisel, um grande militar e, mesmo, político). Além, claro, de José Sarney e Antônio Carlos Magalhães, que, quando a ditadura estava “morrendo”, saíram do caixão e renasceram como “democratas” incontornáveis.

Mas, repetindo, os militares se tornaram “proprietários” remidos do golpe e da ditadura, portanto do desgaste. O fato é que, durante a longa noite de 21 anos, vários civis, republicanos condestáveis, disseram adeus à democracia, e sem traumas. Militares são responsáveis pelo “pior” da ditadura — a violência, por exemplo — e civis pelo, por assim dizer, “menos pior” (Roberto Campos, Delfim Netto e Mario Henrique Simonsen, economistas notáveis, são responsáveis pelo crescimento econômico). Fica-se com a impressão de que as vivandeiras (como Carlos Lacerda e Magalhães Pinto) nem queriam a derrubada de João Goulart. O jornal “Folha de S. Paulo” tenta reduzir o impacto de seu apoio ostensivo à ditadura — havia uma sintonia ideológica — ao divulgar, de maneira maciça, que foi o primeiro grande jornal a encampar a defesa das Diretas Já. O “Jornal do Brasil”, “O Globo”, o “Estadão” e a TV Globo também apoiaram a ditadura. Agora, depois do retorno à democracia, quase todos criaram o mito de uma imprensa heroica, que criticava o sistema ditatorial com artifícios criativos, com entrelinhas poderosas, receitas de bolo (ninguém fala de empréstimos facilitados para revistas e jornais, de reuniões às vezes secretas). Há pouco tempo, “O Globo” publicou um editorial informando que errou ao apoiar a ditadura. Mas será que, durante os 21 anos em que o Grupo Globo se postou ao lado da ditadura civil-militar, nenhum iluminado da redação conseguiu convencer Roberto Marinho de que deveria pedir desculpas mais cedo? A questão é que Roberto Marinho, se era um realista absoluto, talvez não fosse um mestre da desfaçatez e do cinismo.
O fato é que não há ditadura “boa”. Todas são ruins — à direita ou à esquerda. Pode até ser que haja gradações entre as ditaduras, com umas mais cruentes do que outras — a do Chile de Augusto Pinochet foi das violentas —, mas nenhuma é positiva.
Tolerância, tolerância, tolerância
Numa entrevista à repórter Andréia Sadi, da Globo News, na semana passada, o ministro-secretário de Governo, general Luiz Eduardo Ramos, falou sobre o desgaste que a ditadura gerou para os militares. Por causa do regime discricionário, militares das Forças Armadas, notadamente do Exército, ainda são vistos como bestas feras — à espera de uma oportunidade para um novo golpe. Mas tudo indica que, apesar do discurso mais enviesado do que duro, os militares atuais, os da cúpula, são democratas e não querem saber de golpe, de regime autoritário. De fato, a realidade começa pela retórica, porque esta vai moldando aquela, mas há retóricas que fazem parte do jogo de pressão e contrapesos — e, sim, mesmo na sociedade democrática.

Portanto, a crítica ao Legislativo é necessária, até para melhorá-lo. Mas a convocação de um movimento contra o Congresso, sobretudo se o presidente da República “adere” ao protesto, atenta contra a democracia. Mesmo que não se fale em “fechar” o Parlamento — a “crise” teria a ver com os recursos do Orçamento da União (o governo e o Congresso estão disputando recursos públicos) e a aprovação futura de reformas (que, a rigor, ninguém é contra) —, a pressão, com o apoio do presidente, não é saudável para um país que divorciou-se de uma ditadura há apenas 35 anos. O filósofo britânico John Gray frisa que a história não é linear e que “recuos históricos”, simulacros de tempos passados, tendem a se repetir.
A articulação de um movimento contra o Congresso — o Legislativo é um dos pilares da democracia — não é nada saudável. Generais como Hamilton Mourão, Eduardo Villas Bôas, Luiz Eduardo Ramos e, sim, Augusto Heleno — é provável que sua radicalização seja uma maneira de dizer a Bolsonaro que está ao seu lado, porque outros moderados acabaram caindo, por suspeita de escasso engajamento — são democratas e certamente não embarcariam em nenhuma aventura autoritária. Mais do que o presidente Jair Bolsonaro — um político mais inteligente do que imaginam seus adversários e, até, alguns de seus aliados —, os quatro militares conhecem bem a história do país e do mundo. Devem obediência ao presidente — e são disciplinados e respeitosos ante o comandante —, mas, ante qualquer aventura autoritária que vá além de arroubos e retórica, certamente vão “segurá-lo”. É provável que estejam entendendo — e aceitando — o jogo de Jair Bolsonaro única e exclusivamente como uma maneira de governar tentando escapar do fisiologismo da política. Mas sabem que não se combate clientelismo e fisiologismo — a suposta “chantagem” — com pressão política sobre uma instituição.

Não deixa de ser estranho, porém, que nenhuma figura mais próxima de Jair Bolsonaro explicite um pensamento, ainda que leve, contra a pressão sobre o Congresso. Os ministros da Economia, Paulo Guedes, e da Justiça, Sergio Moro, calam-se. Por uma questão de hierarquia ou conveniência? Mesmo sem críticas diretas ao presidente — feitas poderiam redundar em demissão —, deveriam se manifestar em defesa da democracia. A defesa do Parlamento não equivale a uma defesa dos presidentes da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (que está mostrando equilíbrio), e do Senado, Davi Alcolumbre (por incrível que pareça, o Senado estaria mais bem representado com Renan Calheiros). Eles são provisórios; o Congresso, permanente.
Finalmente, vale a pergunta: o presidente Jair Bolsonaro quer mesmo um golpe, planeja mesmo um AI-5? Talvez não. É provável que não. Por quê? Primeiro, porque nunca o Congresso aprovou uma reforma, como a da Previdência, tão rapidamente quanto o atual. A Reforma Tributária — com os embates normais da democracia — certamente será aprovada. O Parlamento não tem se mostrado subserviente, graças, em larga medida, à maturidade de Rodrigo Maia, mas também não tem agido contra o governo e o Brasil. Tem sido responsável.
Segundo, não há motivo para golpe, pois Jair Bolsonaro já é presidente, está no poder, e ninguém, nem o PT — Lula da Silva é responsável quando não defende a tese do impeachment do presidente (seria jogar o país no fogo da incógnita; afinal, Jair Bolsonaro, embora pareça, é diferente de Fernando Collor, que não tinha apoio de setores específicos e sólidos, como os militares) —, questiona o óbvio.

O que Jair Bolsonaro quer certamente não é uma ditadura, um governo autoritário, mas um Parlamento mais dúctil às suas ideias e projetos (falta dinheiro ao governo para seus projetos, por exemplo, na área de infraestrutura). Mas a democracia é mesmo mais lenta do que a ditadura, porque é preciso convencer deputados e senadores, que representam a sociedade — são a média da sociedade —, de que uma ideia é melhor do que a outra. O presidente, talvez pelo espírito castrense, quer governar rapidamente, aprovando tudo a toque de caixa. Daí a pressão. “Jogar” militantes contra o Congresso é uma espécie de irracionalismo racional que, a rigor, não funciona. Tanto que a sociedade, mais organizada e rápida do que em outros tempos, reagiu duramente.
Equívoco político-eleitoral
Do ponto de vista estritamente político-eleitoral, Jair Bolsonaro (está em campanha, quando a prioridade deve ser governar) está cometendo um erro. Dada sua capacidade de comunicação direta com a sociedade, sobretudo com seus seguidores — sem a mediação dos meios de comunicação tradicionais —, o presidente decidiu pregar para os convertidos, na sua cruzada tão política quão religiosa (lembrando mais George W. Bush do que o presidente Donald Trump). Políticos que planejam disputar reeleição — com o bônus e o ônus do poder — precisam ampliar sua base eleitoral, conquistar novos apoiadores. Jair Bolsonaro tem pesquisas, sabe o que está acontecendo — sua popularidade é alta (e há pessoas que são bolsonaristas mas receiam dizê-lo, dada a pressão de parte da sociedade civil) —, mas terá desgaste em 2022, principalmente se a economia não crescer em níveis satisfatórios. Observe-se que Bolsonaro está pressionando Paulo Guedes e tudo tem a ver com o crescimento econômico. Mas o ministro não é mágico e não controla a economia mundial — e nem mesmo a brasileira.
Dado o desgaste natural, porque a economia é globalizada (uma crise na China, mínima que seja, por causa do coronavírus ou não, impacta no Brasil), Jair Bolsonaro deveria trabalhar para conquistar “eleitores novos”, que estão à deriva, mais próximos do centro (Luciano Huck e João Doria) do que da esquerda, mas segue falando para os convertidos, que, se o garantem no segundo turno, podem não ser suficientes para uma reeleição.
Quanto ao enfrentamento com o que chama de “mídia”, como se houvesse um sistema, Jair Bolsonaro parece que avalia que está ganhando a “batalha” (esquece que Fernando Collor pensava o mesmo e deu no que deu). De fato, seu capital eleitoral é alto, ainda bem alto (e o fato de não ser corrupto é visto como altamente positivo e o povão o aprecia, como apreciava Lula da Silva, provavelmente devido à sua simplicidade e fala sem jargões acadêmicos). Mas o desgaste de um presidente, mesmo dos mais populares, costuma ser cumulativo. Aos poucos, eleitores do presidente — daqueles que eram mais anti-petistas — podem buscar outras alternativas, dependendo do exame do que estiverem propondo.
Não há indivíduos e sociedades perfeitos. O que há, e sempre houve, são indivíduos e sociedades possíveis — e mudanças mais amplas, em termos de mentalidade, demoram a acontecer (mudanças tecnológicas, que produzem a ideia de uma sociedade em permanente movimento, portanto em mutação, camuflam uma realidade: as sociedades são mais conservadoras do que parecem — daí se ter um Jair Bolsonaro na Presidência da República). Então, o que a direita, Jair Bolsonaro, a esquerda, a turma do PT (do PDT e do PSB), e os grupos de centro precisam é criar um espaço de tolerância democrática. A palavra é tolerância, tolerância, tolerância. Não há outra. Trata-se do melhor “medicamento” contra o coronavírus do autoritarismo. (E nada melhor para a democracia que direita e esquerda terem viabilidade eleitoral.)
Por fim, uma palavra sobre a imprensa. Sua função é mesmo a de criticar o que está errado, inclusive a linguagem virulenta do presidente Jair Bolsonaro. Mas não pode perder todo o seu tempo com a “fala” do líder do quase partido Aliança pelo Brasil. O que, de fato, o governo está fazendo em suas várias áreas? Os leitores querem saber disso. A impressão que se tem é que a “fala” de Jair Bolsonaro, não o que o governo “faz”, pauta jornais, revistas, portais e emissoras de rádio e televisão. Há um outro Brasil, o dos cidadãos que produzem — às vezes à revelia do governo —, e que raramente é mostrado. Jornais e revistas publicam reportagens sobre o crescimento econômico — que talvez não chegue a 2% em 2020 —, mas há poucas matérias consistentes sobre a economia real, para além das declarações de líderes políticos e empresariais e economistas.
A “mídia” não deve ceder a Jair Bolsonaro, assim como o presidente não deve ceder à “mídia”. Mas terão de encontrar um denominador comum, um espaço para o diálogo. Improvável? Talvez. Mas o confronto, à beira do irracionalismo, prejudica a todos, não só Bolsonaro e “mídia”.