Bispo Adair, comunismo, Lula, STF e Bolsonaro: não há ditadura que preste, à esquerda e à direita

06 setembro 2025 às 21h00

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“Pela intercessão de Nossa Senhora Aparecida, venha sobre vós a bênção que nos impede de ter fome, guerra, doença e o comunismo.” Dom Adair José Guimarães, bispo da diocese de Formosa, em Goiás
As duas maiores tragédias do século 20 — o comunismo e o nazismo — não foram provocadas pela natureza, e sim pelos homens.
Os governos comunistas — contando só a União Soviética de Ióssif Stálin e a China de Mao Tsé-tung — mataram cerca de 100 milhões de pessoas.
O filósofo italiano Norberto Bobbio disse, mudando a célebre frase (“os fins justificam os meios”), que os meios podem corromper os fins. É o caso do comunismo. Os sanguinários Stálin, Mao Tsé-tung e Pol Pot mataram milhões para, diziam, apressar a transição do socialismo para o comunismo (que seria, em caráter definitivo, a sociedade dos iguais — a cada um de acordo com suas necessidades e capacidades).
As supostas boas intenções não geraram a sociedade dos iguais e resultou em milhões de mortes. Na Ucrânia, e em outros lugares, Stálin e epígonos “fabricaram” um sistema de fome e milhões morreram. Logo na Ucrânia, uma espécie de celeiro de alimentos da Europa.

Entre 1924 e 1953, quando reinou absoluto o czar vermelho Stálin, a União Soviética se tornou palco de atrocidades quase inomináveis. O gulag, imenso sistema de encarceramento e trabalhos forçados, não fica nada a dever aos campos de concentração e extermínio de Hitler. São irmãos siameses, por assim dizer.
Na China, a paranoia de Mao Tsé-tung levou ao assassinato de cerca de 70 milhões de pessoas. Os indivíduos estariam “conspiravam e agindo” contra o comunismo chinês. Por isso, milhões foram encarcerados e/ou mortos. Na verdade, a maioria nada fez contra o governo. O problema era o comunismo, que não aceitava nenhuma palavra crítica, e não os perseguidos de maneira implacável.
Ter um piano era prova de que se era burguês ou pequeno burguês. Então, a pessoa era enviada para a cadeia ou para trabalhos forçados na zona rural.
No Camboja, aquele que usava óculos poderia ser considerado burguês ou pequeno burguês. Na tentativa insana de “zerar” a história, Pol Pot comandou um regime responsável por mais de 3 milhões de mortes.

Bispo, o comunismo e Lula da Silva
Então, a exortação “pela intercessão de Nossa Senhora Aparecida, venha sobre vós a bênção que nos impede de ter fome, guerra, doença e o comunismo”, de dom Adair José Guimarães, bispo da diocese de Formosa, em Goiás, nada tem de “maluca”. O religioso tem razão. O comunismo é uma das grandes tragédias da humanidade.
Os filósofos britânicos Isaiah Berlin e John Gray são críticos da história dita linear. Postulam que a história, longe de ser um progresso contínuo, em nome do bem, é feita de recuos. Por isso, se o comunismo sofreu uma derrota entre 1989, com a queda do Muro de Berlim, e em 1991, com a derrocada da União Soviética, não significa que a vaga de esquerda não possa ser retomada.
Por isso, quando critica o comunismo, contra seu retorno — e vale acrescentar que a China em pele de cordeiro é comunista; sua economia adota o mercado com norma, mas permanece, na estrutura, maoista-stalinista —, dom Adair José Guimarães parte da lógica, e não meramente do discurso ideológico.
Mas é preciso fazer uma ressalva: se fala de comunismo em relação ao Brasil, sobretudo neste momento, o bispo Adair José Guimarães equivoca-se.

O presidente Lula da Silva, do PT, é, sem dúvida, de esquerda, mas não é e nunca foi comunista. O PT, que gere há anos, é socialdemocrata e é uma criação tanto de sindicalistas de São Paulo, de intelectuais da USP, da Unicamp e da PUC quanto da Igreja Católica.
O PT de Lula da Silva é uma barreira contra o (e não uma mola do) comunismo. Há radicais entre os petistas. Sim, claro. Mas não são hegemônicos.
Veja-se o caso do deputado federal Guilherme Boulos, do Psol. Trata-se de um radical, mas, ao se aproximar do PT do presidente da República, está se moderando, se adequando ao Brasil real.
Já o nazismo de Adolf Hitler, que contou com o apoio da Itália e do Japão, é outra tragédia do século 20. Matou 6 milhões de judeus em campos de extermínio e de concentração e fora deles. Assassinou testemunhas de Jeová, democratas e comunistas e quaisquer outros opositores. Até nazistas menos engajados foram executados.
O nazismo de Hitler — do qual Stálin foi aliado entre 1939 e 1941 — gestou a guerra na qual morreram de 60 milhões a 80 milhões de indivíduos, entre militares e civis. O ditador é o maior símbolo da direita no século 20.

O austríaco Hitler chegou ao poder na Alemanha — de Goethe, Heine, Bach e Beethoven — porque foi subestimado. Porém, logo depois de se tornar chanceler, em 1933 — sem golpe político, frise-se —, operou para desmontar a democracia e procedeu a uma perseguição política jamais vista na terra de Christa Wolf e Herta Müller (romena-alemã).
A ascensão de Hitler, político da destruição não-criativa, prova que a democracia não pode “brincar” com suas figuras autoritárias, que, assim que podem, se tornam totalitárias.
Bolsonaro e o golpismo contra a democracia
Ditaduras, à esquerda e à direita, são um desastre para a humanidade.
Sistema perfeito em suas imperfeições, a democracia abre espaço, até desmedido, àqueles que planejam destrui-la. As ditaduras, pelo contrário, não abrem espaço para seus críticos, que são encarcerados ou, até mesmo, assassinados, como nos casos citados acima.
Em 1964, militares e civis — de direita — se uniram para derrubar o governo do presidente João Goulart.

Alegava-se que Jango Goulart fazia um governo corrupto e, sobretudo, estava se preparando para “comunizar” o Brasil.
Estancieiro rico do Rio Grande do Sul, João Goulart não era comunista. No máximo, era de centro ou de centro-direita. As propostas de seu governo não tinham o objetivo de esquerdizar o Brasil (reforma agrária, ao criar mais proprietários, não é comunista — é capitalista). O gaúcho do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), seguindo seu mestre Getúlio Vargas, planejava tão-somente “atualizar” o capitalismo patropi.
Mesmo não sendo um formulador, ao contrário de Getúlio Vargas, Jango Goulart queria um capitalismo moderno e uma sociedade mais inclusiva. No fundo, apesar de adicto do diálogo, era avesso à hegemonia da esquerda. A esquerda só era positiva, para o trabalhista, se submetida.
O problema é que a direita dos civis Carlos Lacerda, Magalhães Pinto, Bilac Pinto e dos generais Castello Branco, Amaury Kruel, Carlos Luís Guedes, Olímpio Mourão (o Vaca Fardada), Costa e Silva e Golbery do Couto e Silva era freguesa eleitoral do centro nacionalista-populista — Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart.

Então, a direita civil e militar adotou o discurso de que João Goulart planejava comunizar o Brasil e que seu governo era corrupto com o objetivo de conquistar apoio na sociedade para derrubá-lo. O que aconteceu em 1º de abril de 1964.
Quando assumiu o governo, no fim da primeira metade da década de 1970, o presidente Ernesto Geisel, um dos militares golpistas em 1964, começou a esboçar um projeto, formulado por ele e por Golbery do Couto e Silva, de transição para a democracia.
Geisel e Golbery começaram a distensão que desaguou na abertura já no governo do general João Figueiredo.
Quando perguntaram por que, depois de patrocinar, decidira acabar com a ditadura, Geisel respondeu: porque era uma bagunça. Havia, por exemplo, corrupção. Os governos militares, supostamente liberais, criaram mais estatais do que os civis. Então, era hora de cair fora antes que os militares fossem escorraçados pela sociedade.

Mas ficaram as viúvas lacrimais da ditadura — como o ex-presidente Jair Bolsonaro, o deputado federal licenciado Eduardo Bolsonaro e os generais Augusto Heleno e Walter Braga Netto.
Nostálgicos em restaurar o passado — quer dizer, a ditadura dos generais Costa e Silva e Emilio Médici, os chefões da linha dura —, Jair Bolsonaro e sua turma planejaram um golpe de Estado.
O objetivo era arrancar Lula da Silva da Presidência da República e, de acordo com um plano encontrado com um general, matá-lo. Também seriam assassinados o vice-presidente Geraldo Alckmin e o ministro Alexandre de Moraes, da Supremo Tribunal Federal.
Em seguida, o bolsonarismo deslocou pessoas muito bem articuladas — e outras nem tanto, os inocentes úteis de sempre, as buchas de canhão humanas — para invadir as sedes dos poderes Executivo (Palácio do Planalto), Judiciário (Palácio da Justiça) e Legislativo (Congresso). Era a outra faceta do golpe. Mas deu ruim.

Com o evento de 8 de janeiro, o bolsonarismo quis dizer, sobretudo para as Forças Armadas, que era fácil, até muito fácil, derrubar o presidente Lula da Silva. Mas os generais do Exército e brigadeiros da Aeronáutica tomaram uma decisão: não operariam contra a democracia.
Como o golpe não deu certo — Jair Bolsonaro não é, claro, nenhum Castello Branco (general altamente preparado) —, os golpistas acabaram agarrados pela Polícia Federal, pela Procuradoria-Geral da República e pela instância máxima do Judiciário, o Supremo Tribunal Federal.
O julgamento de Jair Bolsonaro e dos demais golpistas — com a exposição de suas posições, o contraditório, de maneira ampla — prova que o país vive uma democracia — longe, muito longe, de qualquer regime comunista. Depois do julgamento, Bolsonaro e generais poderão ser condenados à prisão, mas ninguém será fuzilado.
A condenação de Jair Bolsonaro e dos generais envolvidos no golpistas, assim como outros epígonos de menor expressão, é uma vitória da democracia.
Com os golpistas na cadeia — e sem anistia (que é um prêmio ao golpismo) —, a direita brasileira (e, quem sabe, até a esquerda) terá uma lição: não há mais impunidade para os que conspiram contra a democracia. É o recado crucial. É provável que, doravante, poucos — militares e civis — vão se arriscar em adotar golpe de Estado como “alternativa” política.
Sobre o Supremo Tribunal Federal pode-se sugerir que, neste momento, é o “sangue” que corre nas veias da democracia brasileira. Ninguém fez e está fazendo tanto pela defesa da democracia quanto o STF e seus ministros, como Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Edson Fachin, Cármen Lúcia, Cristiano Zani, Flávio Dino e Luiz Fux.