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Profa. Dra. Maria de Fátima Gonçalves Lima

Não provarei a eternidade

dos amores transitórios

nem imortalizarei os carinhos

que se foram na estiagem.

Quero apenas o instante

que adormeceu eterno

sob linhos, sedas e luas,

e ainda me serve de sonho.

Lêda Selma (De sinas e ceias, p. 29)

O presente artigo apresenta um olhar contemplativo sobre alguns poemas de Lêda Selma de Alencar, escritora baiana de Urandi, que adotou Goiás como berço para sua literatura, abraçando como nome artístico: LÊDA SELMA. Graduada em Letras Vernáculas e pós-graduada em Linguística, teve sua incursão pela literatura em 1986, e sua obra é composta por:

POEMAS:
Das sendas à travessia, 1986 – Editora Líder; A dor da gente, 1988 – Cartográfica; Fuligens do sonho, 1990 – Cartográfica; Migração das horas, 1991 – Cartográfica; Silencios de viento y mar, 2003 (bilíngue: português e espanhol – coautoria) – Colección Principios de Milenio – BIANCHI editores – Montevideo; À deriva, 2005/2008 (2ª edição), ED. Kelps – adotado para vestibular da PUC/2008/09) – Ed. Kelps; Sombras e sobras, 2007 – Ed. Kelps; De sinas e ceias, 2012 – Ed. Kelps; Baralho Poético, 2014/2017 (2ª edição) Ed. Kelps – Convidada, Maria Helena Chein; Travessias e travessuras – Poemas (Reunião de seus 6 livros), Ed. Batel/RJ/2022.

ENSAIOS: Erro médico: uma ferida social, 1991 – Cartográfica; Travessia para a eternidade – biografias romanceadas, panegíricos, homenagens a personalidades da Cultura (post mortem) – 2019, Ed. Kelps.

CONTOS/CRÔNICAS/CRONTOS (esse, neologismo da autora): Pois é, filho…, 1997 – Cartográfica; Nem te conto, 2000 – Cartográfica; Até Deus duvida, 2002 (3ª edição) – Ed. Kelps; Hum… Sei não! 2005 (2ª edição, 2017) – Ed. Kelps; Eu, hem?!, 2008 – Ed. Kelps; Sortidos e requentados – 2009, Ed. Kelps; Mexidos e remexidos – 2011, Ed. Kelps; Afinal, cadê a sogra?! – 2024, Ed. Kelps; Ou casa ou desocupa a noiva – Ed. Contato, Goiânia; Assombração – 2025, impressão serigráfica, Coletivo de Artes Visuais Basileu França.

Há quem afirme que Lêda Selma é, sem dúvida, a maior poetisa de Goiás, tanto pela opulência de sua obra como pela habilidade sensível de, de livro a livro, atualizar sua forma de expressão poética. Com o livro À deriva (2005), a autora teria atingido um nível que a coloca entre as representantes mais significativas da poesia brasileira contemporânea. Identificam-se alguns aspectos centrais nessa trajetória:

a. Uma seleção de léxico mais ampla, voltada ao sentido especial do poético.

b. A mobilização de uma temática de cunho pessoal, bem direcionada para a função poética das imagens.

c. A consciência da forma, tanto na visualização do poema na página quanto na sua estrutura interna, com versos e estrofes maiores em determinados momentos.

d. A consciência do livro como unidade significativa, acima dos poemas isolados, uma construção unificada que confere sentido ao volume.

Poetisa, contista e cronista, compõe várias antologias nacionais e internacionais. Ocupa a Cadeira nº 14 da Academia Goiana de Letras/AGL, a qual presidiu em dois mandatos (2015 a 2019). Pertence ainda a diversas associações de escritores, compositores e instituições culturais.

Como presidente da Academia Goiana de Letras, em dois mandatos (gestões de 2017 a 2019), destacou-se como uma das mulheres mais influentes de Goiás, por realizar um trabalho que proporcionou à AGL uma revitalização não apenas no aspecto físico do prédio, mas também nas atividades culturais. Em 2026 será novamente presidente da Casa Colemar Natal e Silva — instituição cultural importante do Estado, responsável por difundir a literatura e preservar a memória histórica de Goiás.

Lêda Selma nasceu poeta e sempre faz do instante motivo da sua poesia ou prosa, sinalizada pela alegria inerente do próprio nome. A etimologia do nome sugere adjetivos como contente, risonha, alegre, jubilosa. A denominação SELMA possui origens que remetem a significados como pacífica e protegido pelos deuses.

Na antroponímia, ou ciência dos nomes próprios, encontra-se já o momento iniciático desta autora representante da literatura produzida em Goiás: o destino literário da escritora foi revelado nas letras do nome, e ela nos privilegia com o júbilo dos seus textos, na poesia e na prosa. Desde criança foi instigada a escrever. A própria autora já afirmou:

“As palavras sempre me provocaram. Sempre me desafiaram a conhecê-las. Sempre me instigaram a brincar com seu jogo de sentidos. Com a sutileza de seus contrastes. Com a amplitude de suas lonjuras. Com a extensão de seus mistérios, de suas funduras e superficialidades. As entrelinhas, adotei como esconderijo. E seus subsolos lotaram-se. Na época da ditadura, iniciada em minha adolescência (…) O fascínio pelas letras começou na primeira fase de minha infância (3 anos), ao transformá-las em parceiras para travessuras muitas, após ganhar, no Natal, uma caixa abarrotada de letrinhas coloridas e soltas. Gostava de juntá-las. De dar-lhes formas. De entortá-las. De colori-las. De amedrontá-las: colocava-as de cabeça para baixo, à espera de seus pedidos de socorro. Se trapezistas e bailarinas, nossa, que folia! Descobri, encantada, que elas possuíam voz. E conversávamos bastante. Ficávamos até ‘de mal’. Punha-lhes de castigo, mas só um tantinho de tempo. Ah! tínhamos até um local para encontros poéticos: as folhas dos bloquinhos montados por minha mãe (que me alfabetizou aos cinco anos). Ela lhes impingia pose de belo presente, para meu deleite letrístico. Uma balbúrdia daquelas, na companhia das letrinhas, minhas fadas e magas, que me propiciavam viagens lúdicas, descobertas incríveis, emoções pueris.”

De fato, é visível que Lêda Selma tem intimidade com as palavras; seus textos nos fazem pensar sobre o ser do homem e das coisas e a buscar perguntas intrigantes e respostas inteligentes — a filosofar. Sua poesia, em especial, segue a lição de que o poeta precisa buscar suas armas dentro da própria linguagem da poesia, mesmo sabendo que nada é definitivo. Também é possível reconhecer, em sua obra, a ideia de que num poema nada se deve ao acaso: tudo funciona com precisão, quando o artista domina a técnica.

Acrescenta-se a convicção de que é imprescindível que o poeta tenha domínio sobre a língua pátria. O trato com a língua sempre direcionou a poetisa Lêda Selma como matéria-prima, lembrando que, nas artes, é preciso apoderar-se das regras e da técnica e, só depois, esquecidas, ceder à inspiração.

Nesse sentido, a poetisa tem consciência de que o poema pode ter ou não poesia — não nasce pronto; é preciso fazer um mergulho na margem da palavra. O texto poético necessita ser feito e criado pelo artista da palavra, pois o poema é um objeto verbal. É possível que a ideia ou tema do poema esteja na cabeça do artista, mas é preciso dominar o idioma e expressar esse tema de maneira criativa e singular; é necessário realizar a arte, fazer o melhor que se pode. Por isso, às vezes a poeta realiza várias versões, com muitas revisões, até que fique contente com o que escreveu e, muitas vezes, ainda fica contrariada com uma licença poética que não estava nos cálculos iniciais da criação.

O poema “Travo”, do livro À deriva (2005), é um exemplo de poesia que possui uma linguagem especial, encantatória e lúdica — abstrata em sua essência e concreta na estrutura artística. O poema exprime a habilidade do artista da palavra de pôr à mostra aquilo que, por muito simples e pequeno, torna-se invisível e passa despercebido dentro do turbilhão e da intensidade da vida comum.

Ao expressar essa visão, o texto não parece reproduzir apenas sentimento do eu-lírico, mas, principalmente, da pessoa que lê o texto poético. Então o poema se enche de poesia, emoção e pluralidade de sentidos, e passa a ser também do leitor, porque o que se lê diz aquilo que era indizível para ele e, agora, está ali escrito: tão simples, tão fácil a traduzir o que sente e pensa. O poema exprime o sentimento do mundo.

As imagens expressas dos versos de “Travo” são sinestésicas, pois envolvem os sentidos: o gustativo (amargo), o olfativo (cheiro), o tato (frio) e o auditivo (travo). Todos remetem, de forma intensa, à amargura — à ausência de liberdade, de alegria, de amor —, pois o vocábulo “travo”, além de significar sabor adstringente, tem relação semântica com os termos “trava”, “trinco”, “prisão”, “escuridão”, “medo” e “silêncio”.

O poema é formado por quatro blocos de imagens que se reiteram em variações:

Este amargo no meu verso

é dor deixada ao relento,

é mofo de amor arredio,

resto de coisa estragada.

Este cheiro no meu verso

é hálito de beijo dormido,

é suor de desejo magro,

sobra de amor confinado.

Este frio no meu verso

é saudade amanhecida,

é silêncio a mascar vazios,

restolho de amor puído.

Este travo no meu verso

é mofo, é hálito, é frio,

revés, avessos, saudades,

despojos de amor sozinho.

O desagradável sabor do travo, logo em seguida, é apresentado de forma sinestésica como “Este cheiro no meu verso / é hálito de beijo dormido, / é suor de desejo magro, / sobra de amor confinado”.

A imagem é produto do imaginário; é toda forma verbal, frase ou conjunto de frases que o poeta diz e que, interligadas entre si, compõem o poema. Toda imagem, enquanto cifra da condição humana, contém um número extraordinário de significados contrários ou díspares; o conjunto de imagens aproxima ou conjuga realidades opostas, indiferentes ou distanciadas entre si. Isto é, a imagem submete à unidade a pluralidade do real.

A imaginação não é apenas a faculdade de formar imagens da realidade; é a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade. Mais do que inventar coisas e dramas, a imaginação inventa vida e mentes novas. A imaginação, com sua atividade viva, desvincula-se, simultaneamente, do passado e da realidade, direcionando-se para o futuro.

A verdadeira imagem, quando vivida primeiramente na imaginação, deixa o mundo real e passa para o mundo imaginado. Através da imagem imaginada, chegamos à fantasia poética; quando alguma imagem assume um valor cósmico, produz o efeito de um pensamento vertiginoso. Uma tal imagem-pensamento não tem necessidade de contexto. As proezas das palavras vão além da expressão do pensamento.

Outro poema que elucida, liricamente, a valorização da imaginação como matéria para o processo criativo é “Faz de conta”, do livro A dor da gente (1988), inserido em Travessias e travessuras – Poemas (Reunião de seus 6 livros), (2022).

A mim não pertence

teu sonho inteiro.

   Só tenho a tua metade.

      E por sabê-lo me dói longe a verdade

           que é a dor de não ter-te.

Inteira tampouco me queres.

  E me divido para te dar só a metade.

       Mas a outra, sozinha, adoece

            e morre solidária comigo.

E meu sonho de sonhar se esquece.

    Por meios caminhos andamos

        e com meios sonhos nos amamos

            num voo pequeno e rasante...

                E quando o infinito se alonga

                       nossas fantasias infantes

                           só brincam de faz de conta...

No poema “Faz de conta”, o eu-lírico, para viver plenamente um amor platônico, concede asas ao sonho. No devaneio, o mundo do imaginário se realiza longe das amarras da realidade. O sonho não está preso aos medos que marcam a vida e a morte; ele concebe asas à imaginação.

A imaginação pode ser entendida como uma forma de pensamento que não necessita de um processo descritivo. Usa a lógica dos símbolos: a mente recorre a imagens quando não consegue representar de maneira direta o mundo por meio de uma percepção simples ou sensação. A imaginação se define ainda como uma reação da natureza contra a representação da inevitabilidade da morte por meio da inteligência.

Essa teoria, aplicada ao poema de Lêda Selma, está evidenciada na sutileza das imagens que poetizam a impossibilidade do encontro dos apaixonados e a iminente proximidade da separação, a impossibilidade de realização do amor no plano da realidade. O rito de morte — a separação — está presente em muitos mitos de amor. O amor e a morte se entrelaçam no erotismo. No poema há a ideia de morte e, ao mesmo tempo, a impossibilidade da realização do amor. Nesse caso não existirá vida em comum, mas ausência, desejo de estar, existência que se realiza pela metade: “Inteira, sei, não me queres / E me divido para dar-te / só a metade. / Mas a outra, sozinha, adoece, / morre solidária comigo, / e meu sonho, de sonhar, se esquece.”

O poema revela uma metade enferma, morrendo solidária. A morte é encarada sob seu aspecto desagregador, marcada pela ruptura. Contudo, ela é vista também como possibilidade de expressão do ser da poesia — do poema que vivifica o desejo reprimido. Para chegar ao poético, o eu-lírico conheceu a ausência, a falta, a negação, o vazio; atingiu o não-ser. Só o encontro com o nada dá a dimensão do ser para o homem e permite sua percepção do mundo real e do imaginário.

Se a imaginação é a força dinâmica pela qual o homem consegue imaginar mundos e dar sentido à vida através de imagens, a poesia é o vetor que operacionaliza os instantes vividos, as transmutações da linguagem, e valoriza os sentimentos e as coisas simples. É por meio da imaginação e da concretização da poesia que o ser humano dá forma às coisas mais tênues e evanescentes para se autoafirmar. Sendo assim, a poesia é transcendência, contemplação e força que edifica e revigora o homem frente às vicissitudes da vida; é também um milagre da linguagem.

O texto poético conduz o ser humano a sentir e contemplar o mundo com intensidade, a filosofar, e, portanto, encaminha o ser a uma passagem para um poético mágico, para uma alquimia verbal, para uma descoberta da magia e do poder das palavras. A palavra leva uma coisa a ser coisa. As palavras não são simples vocábulos; elas são mananciais que o dizer perfura, mananciais que têm que ser encontrados e perfurados de novo, fáceis de obturar, mas que, de repente, brotam de onde menos se espera. Sem o retorno sempre renovado aos mananciais, permanecem vazias as palavras ou têm, no mínimo, seu conteúdo estancado.

A poesia efetua esse retorno sempre renovado. O poeta é aquele que perfura os mananciais, tomando os vocábulos como palavras dizentes. Seu caminho não vai além das palavras; ele caminha entre elas, de uma a outra, escutando-as e fazendo-as falar. O retorno se opera no intervalo do silêncio que vai de palavra a palavra, quando o poeta nomeia o discurso dizente. É a nomeação que leva a coisa a ser.

Antes da nomeação, as palavras, assim como a natureza, estavam imersas no caos aparente da existência. O poeta desvela a existência das coisas por meio do texto poético, quebrando o silêncio das palavras, nomeando a existência das coisas e fazendo tudo emergir aos olhos do leitor: vida, morte, destino, arte, alegria, o prazo da vida e o tempo da morte. O poeta desvela o poder do raciocínio, da observação, das palavras, e da poesia. O texto poético transporta o homem do simples estar para o eterno ser; conduz a criatura a perceber sua humanidade, inteligência, criatividade e existência dentro de um universo tão amplo, cheio de perguntas e respostas, aparentemente hermético, mas compreensível para aquele que contempla a vida.

Essa forma de trabalhar com as palavras manifesta um jogo “realizante-irrealizante”, construtor de efeitos fascinantes, apenas encontrado no mundo da arte. Os efeitos são estabelecidos por níveis diversos e complexos mecanismos, o que provoca um caráter de duplo movimento: o primeiro é centrifugo, pelo qual a obra se abre a um possível mundo exterior e a seus problemas, exprimindo o homem por inteiro e comunicando-se com um imaginável interlocutor; o segundo é centrípeto, que tende a fechar a obra sobre si mesma, constituí-la como seu próprio fim e seu próprio sentido, exigindo uma leitura silenciosa e reflexiva.

A linguagem literária tem o artifício de dizer o indizível e não se contenta em fotografar simplesmente a realidade preexistente; pelo contrário, o mundo real é ponto de partida para a criação e para as interrogações que a arte propõe, marcada por infinitas interpretações, mistérios e enigmas.

Diante do exposto, para chegar ao poético, o eu-lírico conheceu a ausência, a falta, a negação, o vazio — atingir o não-ser. Só o encontro com o nada dá a dimensão do ser para o homem e permite sua percepção do mundo real e do imaginário, como pode ser percebido no poema “Saudade”, publicado no livro À deriva (2005):

SAUDADE

Saudade é candeia

baça e sem azeite

ferida de silêncio

em peito espoliado,

momentos idos

na solidão dos rastros,

rebelião de dor

amotinada.

Saudade é guizo

de ventos viajores,

sonhos flagelados,

sumiços de estrelas,

noite esvaecendo

na sombra de abismo

que seviciou a lua

e engoliu a madrugada.

Esse poema exprime uma dor incomensurável do eu-lírico; aqui é a dor de mãe pelo filho que se foi desta vida, com apenas vinte e um anos. É dor de mãe, dor do filho ausente: dor sem fim, de um infinito eterno. É uma saudade que só pode ser exprimida por meio das imagens que o texto poético permite. A arte pode e deve transfigurar essa dor para o bem da alma de quem escreve e do leitor. A matéria da linguagem é convocada a pôr-se em cena, e muitas vezes parece ser a própria linguagem que fala: “Saudade é guizo de ventos viajores, sonhos flagelados, sumiços de estrelas, noite esvaecendo…”. Só o texto poético permite transmitir a imagem da saudade e da dor de uma mãe. Nenhuma outra forma artística alcança isso com a mesma exatidão: só o poema.

A arte interroga o mundo sobre sua realidade e a linguagem sobre sua obsessão de uma adequação perfeita ao ser do mundo. A linguagem literária é um sistema semântico particular cujo fim é pôr sentido no mundo — não um sentido definitivo — e, por isso, faz perguntas sem jamais respondê-las plenamente, oferecendo-se a uma decifração infinita.

Dentro dessa concepção do poema como enigma, escolhi um poema de Lêda Selma, do livro Sombras e Sobras (2007), denominado “Enigma”:

Sou una e múltipla, fragmentada e inteira,

curva e planície, zênite e abisso.

Sou superfície e fosso, laços e cisão,

silêncios e balbúrdias, muitas e nenhuma.

Meus pedaços me juntam em esfinge

e me insulam no arco-das-sete-cores

de onde espio infinitos e precipícios

como se dona de todos os mundos.

Minhas antíteses, polaridades

se perdem sempre em meus campos

e ocultam verdades, faces e falácias

do medo que me escamoteou os sonhos.

Meus inversos mostram os enigmas

(guardados em redoma de alabastro),

que escondem máscaras, alegorias

e as almas dos amores todos,

cujos corpos há muito migraram.

Este poema traduz a intenção que a arte da palavra pode ter e aciona uma contemplação do próprio ser poético. A linguagem aqui se designa a si mesma em sua materialidade, e a obra anuncia-se como obra de arte; a linguagem literária é figurada e é indício de sua própria materialização. Essa realização metalinguística consiste na propriedade do discurso de se designar enquanto literatura. A obra chama para si novas significações, numa opacidade e pluralidade de interpretações — uma polissemia que abre possibilidade para uma plurissignificação, inclusive para significar as coisas do mundo, numa presença de um certo real que pode ser chamada de presentificação. Assim, a obra de arte realiza a contemplação de si mesma, enquanto reflete seus enigmas e pluralidades interpretativas.

Diante do exposto, o poema “Enigma” reflete, em suas tessituras, o enigma da esfinge: “decifra-me ou te devoro”. Conjectura também sobre o caráter enigmático do próprio poema, que não quer necessariamente dizer algo definitivo. Ele é um poema, antes de tudo; é arte e é, em si, um paradoxo, pois, mesmo fazendo referência a alguma realidade, é, antes de tudo, criação. Sua existência traz o enigma poético que torna sua essência singular.

O poema “Voa” é outro exemplo da poesia de Lêda Selma. Publicado em À Deriva (2ª edição, 2008) e posteriormente reunido em Poemas Reunidos – Travessias e travessuras, esse texto causa fascínio. Posteriormente, foi musicado por um compositor renomado e ganhou asas — e voou, literalmente.

Ao ser transformado em música, a popularidade do poema tornou-se notória, tanto entre leitores quanto nas redes sociais.

O texto poético da poetisa baiana, de Urandi e goiana de existência, assume papel de hino à vida, e até é usado muitas vezes como mensagem de autoajuda, reunindo epístolas de soluções para problemas emocionais, pessoais ou psicológicos.

O poema também já foi aproveitado em campanhas e como selo de vivência, história, realização ou religiosidade.

O poema de Lêda Selma desperta e dá voz à imaginação coletiva em torno do anseio humano de superar limites, alçar-se a novos desafios, buscar vitórias e realizar desejos ocultos; é um baluarte de devaneios.

Eis uma das razões da popularidade de “Voa”: é um texto poético que, com magnitude e intensidade, diz o indizível e realiza uma obra marcada pela literariedade — é a elevação da língua a sua função máxima, seu poder de sugestão e estranheza. A linguagem é solitária, mas solidária.

O poema “Voa” está aberto a um leque de possibilidades de interpretação; deixa, em forma de deslumbramento, a meditação de que o presente e o futuro da obra de arte não se esgotam em uma única leitura. Permanecem no ser, no tempo do poema e na própria construção, que é em si um mundo de possibilidades, ações, vozes, cantos, movimentos e voos por mundos insondáveis.

Este texto possui uma oralidade poética que impulsiona a presença da vocalidade e colaborou tanto para a composição musical como para a sua recepção nos meios de comunicação, transformando-se em cultura de massa. A mídia performatizou o texto poético e colocou o ouvinte-espectador em um estado de receptividade que solicita a imaginação e a força do desejo; fascina e perturba.

“Voa” guarda marcas da tradição da poesia oral, por exemplo, das canções pessoais, em que o indivíduo projeta seus sonhos em discurso liberador. Não é mais um elemento folclórico, mas aspira às fontes antropológicas do imaginário, refletidas em símbolos que metaforizam axiomas relativos à angústia humana, diante da temporalidade: imagens dinâmicas de queda em oposição ao desejo de voar, de ter asas; a vontade de subir sem medo, de conhecer novos mundos, buscar estrelas e resgatar o próprio infinito — fugir da prisão que escraviza o homem e apostar no sonho, na imaginação e na vida. O poema exprime desejo coletivo de vida, coragem, realização de sonhos e liberdade. Essa aspiração coletiva também revela um desejo individual do eu-lírico, integrado ao inconsciente: a necessidade de sair de uma realidade de medo, limites, desamor e morte. O discurso do eu-poético, comunicado por meio de leitura silenciosa ou vocalizada — que mesmo em silêncio parece soar como voz — manifesta um desejo tanto coletivo quanto individual.

O poema “Voa” causa fascínio no leitor e no ouvinte da música. A popularidade do texto é notória; assume papel de hino à vida, epístola de autoajuda, e aparece em campanhas e manifestações culturais diversas.

Destarte, o poema de Lêda Selma aciona, pela sua harmonia, todos os seres humanos para um mundo transcendente e altivo da imaginação sem fronteiras. É um procedimento em que a imagem mental ganha consistência e parece prestes a realizar-se — uma metáfora do abismo que expressa a diferença entre a dura realidade e o sonho, entre a vida e a arte, entre o real e o imaginário. Essa acepção indica a força do texto poético de Lêda Selma, destacando a máxima de que grande literatura é linguagem carregada de significado ao máximo.

A arte da palavra transfigura o mundo e traduz imagens; é sugestão. A obra literária nomeia a existência das coisas por meio de metáforas que pluralizam a significação do silêncio, porque dizem o indizível e possuem uma sintaxe invisível que manifesta plurissignificação. Conduz o texto artístico para margens da linguagem, numa realização silenciosa da metáfora. É o silêncio do sentido, orientado pela ideia de que não se faz versos com ideias, mas com palavras. As obras belas são filhas da sua forma. O poeta usa as palavras como teclas, despertando nelas forças que a linguagem cotidiana ignora. Contra uma poesia que dispunha assuntos numa ordem facilmente compreensível, a poetisa realiza um trabalho como operadora da língua: experimenta atos de transformação, revela sua fantasia imperiosa e seu modo singular de ver temas aparentemente pobres de significação. Por esse motivo, a poetisa de Goiás faz um mergulho que desvela múltiplos sentidos, o anseio coletivo de voar sem limite e, assim, faz uma imersão metafórica na natureza humana.

Diante do exposto, o poema “Voa” está aberto a interpretações e deixa, em forma de deslumbramento, a meditação de que o presente e o futuro de sua obra não se esgotam em uma interpretação — permanecem no ser, no tempo do poema e na própria construção.

CONCLUSÃO

Lêda Selma é uma poetisa extraordinária; possui lirismo fascinante e sabe transformar a linguagem de seus textos poéticos em sua pura essência dizente. Seus poemas despertam o homem para a humanidade: falam da vida, da morte, da dor, da música, do silêncio, da família, da saudade, das cidades, do rio Araguaia, da poesia — de tantos temas poéticos e necessários à vida. Seus textos são construídos de forma solitária e solidária: apesar de exprimir o eu-lírico, falam de nós. Cada poema torna-se um sentimento do leitor, que muitas vezes reconhece: “esse eu-lírico sou eu”.

A poetisa exprime seus elos, ligações, laços de vida — entrelaçamento de existências, mundos, experiências, vida, pura vida! Lêda Selma revela suas heranças: família, sociedade, experiência; manifesta suas rupturas e seus novos universos, com novidades e singularidades, conhecimentos particulares e ideias que busca implantar, com vivacidade e marca própria.

No universo da arte poética, que ainda traz marcas de um passado em que a presença feminina era minoritária, as poetisas precisam reafirmar que também têm muito a dizer. Apesar das conquistas contemporâneas, há resquícios desse passado nas academias e espaços culturais. Ainda assim, Lêda Selma é vitoriosa, assim como tantas outras poetisas brasileiras que conquistaram seu espaço no seu tempo ou foram reconhecidas in memoriam.

Lêda Selma alcançou reconhecimento com mérito exemplar; foi presidente da Academia Goiana de Letras por dois mandatos e vai iniciar uma nova gestão em 2026. Quebrou tabus tradicionais e despertou em Goiás a força da mulher poeta, cronista, escritora de diversos gêneros e ativista cultural que realiza projetos importantes para a cultura goiana, com bom gosto e ideias renovadoras para o cenário literário do Estado.

Sua poesia é reconhecida nas esferas críticas e acadêmicas e é vista por muitos como a principal voz poética de Goiás, apresentando novas perspectivas e horizontes contemporâneos para a literatura produzida na região. Hoje, segundo vozes da cena literária local, Lêda Selma é considerada uma das figuras centrais da poesia goiana.

Diante do exposto, Lêda Selma tem agudeza de espírito e disposição natural e superior para a poesia. Ela rompeu barreiras sociais que ainda impõem limites às escritoras e transpos a muitos empecilhos: rompeu os cadeados do silêncio que escondem a força da mulher poeta e escritora neste país. Por meio de sua escrita, alcançou a passagem para o poético de forma singular, inovadora, destemida e paradigmática. Hoje, seus versos líricos oferecem aos leitores a oportunidade de buscar os mistérios fascinantes da literatura, atravessar fronteiras e construir mundos novos e plenos de realizações.

Leia também: Lêda Selma “inventa” o cronto: o conto que é crônica e a crônica que é conto