Figura retratada na obra de Cora Coralina, Maria Grampinho integra o imaginário popular da Cidade de Goiás e simboliza a invisibilidade social de pessoas em situação de extrema vulnerabilidade. Mulher negra, pobre e sem moradia fixa, ela viveu por mais de 26 anos no porão da Casa Velha da Ponte, onde foi acolhida pela poetisa.

De origem desconhecida, Maria percorreu as ruas da antiga capital goiana até sua morte, em setembro de 1985, já em idade avançada. Ela foi encontrada sem vida na casa de Cora Coralina, poucos meses após o falecimento da escritora, ocorrido no mesmo ano.

Na obra da poetisa vilaboense, Maria aparece descrita de forma sensível e poética, como no texto “Coisas de Goiás: Maria”, em que Cora retrata seus trajes, seus botões e a forma como ela ocupava o espaço urbano. A personagem literária, no entanto, tem base em uma história real marcada por exclusão social.

Segundo o professor de História do Campus Cora Coralina da Universidade Estadual de Goiás (UEG), Euzebio Carvalho, Maria se enquadra no perfil de pessoas em situação de rua. “Era uma mulher negra, pobre e, possivelmente, com transtornos mentais, o que a colocava em uma condição extrema de vulnerabilidade social”, explica.

De acordo com o pesquisador, Maria era frequentemente vista caminhando pelas ruas da Cidade de Goiás com sete saias remendadas, grampos no cabelo e uma trouxa de pano nas costas, onde carregava seus poucos pertences. Apesar de viver no município, nunca teve casa própria.

Maria Grampinho | Foto: Acervo oficial da Cidade de Goiás

Em determinado momento da vida, passou a morar no porão da casa de Cora Coralina, onde permaneceu por mais de duas décadas. Para Carvalho, a relação entre as duas pode ser compreendida sob a ótica do assistencialismo. “Foi uma atitude de acolhimento por parte de Cora, que costumava ajudar pessoas pobres e sem condições mínimas de sobrevivência”, afirma.

Para o pesquisador, a trajetória de Maria Grampinho expõe a invisibilidade histórica de pessoas que vivem em situação de miséria e fome. “A história da Maria obriga que a gente reconheça a existência dessas pessoas, que sempre estiveram presentes, mas raramente foram vistas como sujeitos de direitos”, destaca.

Carvalho também faz uma crítica à romantização da figura de Maria, muitas vezes tratada como personagem folclórica. Segundo ele, esse processo pode apagar o fato de que sua condição era resultado de violências estruturais, especialmente econômicas e raciais, que continuam a produzir trajetórias semelhantes na atualidade. Ele cita, como exemplos, figuras populares conhecidas como Maria Abadia, conhecida como Badiinha, mulher negra em situação de rua e responsavel por decorar as bandeiras das tradicionais folias, morreu em 2021 devido à Covid-19. Enquanto isso, Caiana, um homem negro e dependente alcoolatra conversava com as pessoas da região e é lembrado por andar nos bares da cidade. Ambos marcaram o imaginário popular da cidade de Goiás.

Pessoas em situação de rua são uma realidade atual da cidade de Goiás, como de todo o Brasil. Se pegarmos pessoas como Maria Grampinho como um folclore, corre o risco da gente romantizar uma situação que não tem romance nenhum, a qual é de pobreza, de não ter casa para morar, não ter comida, não ter saúde e não ter nenhum tipo de assistência.

Além disso, o pesquisador aponta a ausência de políticas de preservação da memória de Maria Grampinho. “Não há bustos, ruas ou homenagens oficiais que reconheçam sua existência histórica”, observa.

Nesse sentido, Carvalho defende que a permanência da memória de Maria deve estar associada à garantia de direitos básicos. “A história dela nos lembra da necessidade de assegurar o direito ao trabalho, à educação, à saúde e à moradia. E isso não se resolve apenas no âmbito municipal. Trata-se de uma política pública de Estado”, conclui.

“Coisas de Goiás: Maria

Maria, das muitas que rolam pelo mundo.
Maria pobre. Não tem casa nem morada.
Vive como quer.
Tem seu mundo e suas vaidades. Suas trouxas e seus botões.
Seus haveres. Trouxa de pano na cabeça.
Pedaços, sobras, retalhada.
Centenas de botões, desusados, coloridos, madre-pérola, louça, vidro, plástico, variados, pregados em tiras pendentes.
Enfeitando. Mostruário.
Tem mais, uns caídos, bambinelas, enfeites, argolas, coisas dela.
Seus figurinos, figurações, arte decorativa,
criação, inventos de Maria.
Maria grampinho, diz a gente da cidade.
Maria sete saias, diz a gente impiedosa da cidade.
Maria. Companheira certa e compulsada.
Inquilina da Casa Velha da Ponte”

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