Joaquim Cardozo, engenheiro da confiança de Niemeyer, era um grande poeta

07 fevereiro 2021 às 00h00

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Ele escreveu um belo poema, muito bem urdido, sobre a atriz Ítalla Nandi. A qualidade refinada de sua arte evitou um escândalo

Em fevereiro de 1971 o governo de Minas Gerais estava construindo uma grande obra no bairro da Gameleira, em Belo Horizonte, projeto do arquiteto Oscar Niemeyer e cálculo do engenheiro Joaquim Cardozo. A barreira da obra desabou, matando 70 operários e ferindo mais de 100. Joaquim Cardozo fora o calculista das principais obras de Brasília. A tragédia de Belo Horizonte arruinou a saúde dele. Nascido no Recife em 1897, ele morreria em 1968.

Grande engenheiro, Joaquim Cardozo foi, também, notável poeta, e ainda escreveu peças de teatro. Certa vez ele escreveu um poema sobre o órgão genital da atriz Ítalla Nandi.
De tão bem escrito e formulado, o poema foi recebido com naturalidade. Quando jovem, já engenheiro, Joaquim Cardozo sofreu perseguições sob o regime do Estado Novo. Já renomado passaria a ser o predileto de Niemeyer como calculista. Vamos ver um poema dele.
O Espelho
Joaquim Cardozo
Pisando na areia fina
Passaste de lado a lado,
Agora te vejo rindo
No espaço recuperado.
Marchaste, enfim, resoluta
sobre cascalho e restolhos,
Chegaste à fonte do vidro,
Nas águas banhaste os olhos.
Depois ficaste indecisa,
Quase inumana e confusa,
Moldando gestos dolentes
Na cera da luz difusa.
Cuidado! Há sempre um sorriso
De irrefletida maldade:
As coisas se estão reunindo
Por detrás da realidade.
Num brilho de claro céu
— Lampejo de meio-dia,
Unidos, iluminados
Orgulho e melancolia.
Neves do tempo dos anjos;
Véus de noivas e de monjas,
Bem tramados, bem tecidos
De renúncias e lisonjas.
Comparo, combino, arrisco,
Passagens procuro a esmo
sobre o profundo intervalo
Que vai de mim a mim mesmo.
Lua cheia, emoldurada,
Semblante da claridade
Luzindo as asas de um voo
Recluso na intimidade.
De diamante ou de prata?
Ou são cristais de adulárias?
— Este é o fiel da balança
Entre as paixões solitárias.
“Joaquim Cardozo” por José Mário Rodrigues