Brexit e o Parlamento: a Grã-Bretanha à procura de um coveiro
17 março 2019 às 21h50

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Empresas caem fora, bancos transferem recursos financeiros e o sistema de transporte entre as nações da União Europeia e a Inglaterra vai se tornar burocrático
De Stuttgart, Alemanha — A intenção da Grã-Bretanha de separar-se da União Europeia, o Brexit, é um processo complexo de difícil compreensão mesmo para aqueles que acompanham o assunto desde o plebiscito orquestrado por David Cameron quando primeiro-ministro, em 2016. A Grã-Bretanha tornou-se membro da UE em 1973 e refutou a adoção do Euro.
Apesar das regalias das quais desfrutou, vivia em divergências com Bruxelas por sentir-se financeiramente prejudicada. Já Margaret “Dama de Ferro” Thatcher, primeira-ministra do governo britânico de 1979 a 1990, insistia em reclamar — “Quero meio dinheiro de volta” —, quando a Grã-Bretanha mais obtinha do que achava que perdia com Bruxelas.
Para entender a questão, é preciso, antes de tudo, estudar o Tratado de Lisboa; entender a intrínseca índole insulana dos britânicos que, inconscientemente, lhe faz crer não serem europeus; ocupar-se com a história do Grande Império Britânico; acompanhar tanto a mídia europeia quanto a britânica; procurar entender por que Bruxelas não pode ceder totalmente às exigências britânicas e, não por último, ocupar-se com a atuação de Boris Johnson e Nigel Farage, ambos anti-europeus de malcheirosa cepa e com influência fundamental na campanha do Brexit — cujos resultados emperram, já há dois anos, tanto a Grã-Bretanha quanto o resto da União Europeia.
Apesar da vultosa informação disponível — análises, estudos críticos, comentários, informações da mídia, prós e contras —, ninguém, absolutamente ninguém, poderá prever o que acontecerá concretamente no caso de a Grã-Bretanha separar-se da UE sem que haja um acordo.

Brexit é negativo no todo e pior para a Grã-Bretanha
No entanto, instituições de renome como o FMI, o OCDE, o Instituto de Pesquisa Econômica (IFO) de Munique e a London School of Economics (LSE) são unânimes em afirmar que o Brexit no todo será negativo. Até o Ministério das Finanças da Grã-Bretanha e o Bank of England vaticinam o pior. Numa entrevista à BBC, o ministro das Finanças, Philip Hammond, mostra-se explícito: “Se tomarmos em consideração apenas o ponto de vista econômico, nossa análise mostra claramente que a permanência da Grã-Bretanha na UE traria resultados econômicos bem mais vantajosos”.
A maioria do que foi publicado situa-se entre o hipotético e o profético. A seguir, citaremos apenas detalhes que poderão representar prejuízo, risco, desvantagem e com isso imaginar o que eventualmente estará por vir na área política, econômica, social, financeira e industrial tanto no Reino Unido como na UE. Em entrevista coletiva de 12 de março deste ano, Peter Steinmaier, ministro de Economia e Energia da Alemanha, declarou que “só na Alemanha o Brexit poderá custar cerca de 100 mil lugares de trabalho. Estamos cientes disso e estamos em constante contato com os responsáveis das áreas mais críticas”.
Segundo pesquisas recentes entre políticos, economistas, empresários, analistas da área financeira e bancária da UE e da própria Grã-Bretanha, a opinião generalizada é que não haverá acordo. As explicações seguintes enfocam a temática apenas sob esta premissa.
Durante toda sua história, a Grã-Bretanha só tinha duas vias de acesso: mar e ar. Napoleão Bonaparte recomendara a construção de um túnel, ideia que só foi concretizada em 1994 com a inauguração do Eurotunel — que liga Calais (França) a Dover (Grã-Bretanha). Os franceses denominam-no Tunnel sous la Manche; os britânicos, Channel Tunnel ou, vulgarmente, Chunnel. A mídia europeia optou por Eurotúnel. O exemplo mostra que há divergências até numa simples designação nominal mesmo quando se trata de uma obra de engenharia.
Atualmente, trafegam pelo Eurotúnel, em média, 500 caminhões por dia (procedentes dos mais variados países da UE) — que abastecem a Grã-Bretanha com matérias-primas, víveres, produtos farmacêuticos, peças para as milhares de filiais de empresas da UE com representações na Grã-Bretanha, das quais só da Alemanha há mais de 4 mil. Acrescente-se o transporte ferroviário que, em horas de maior fluxo, permite a passagem de trens num ritmo de 10 em 10 minutos — em ambos os sentidos. Somados os automóveis (que representam o maior volume), o total de veículos que passaram pelo Eurotúnel em 2018 chegou a 1.65 bilhões.
No caso de um Brexit sem acordo, a Grã-Bretanha teria que instituir controles aduaneiros. Supondo um tempo de apenas um minuto para o controle alfandegário de um caminhão (o que é irreal), formar-se-iam filas de dezenas de quilômetros de ambos os lados, um cenário infernal, talvez até mortal, para muitas transportadoras.
Um congestionamento nesta única via de acesso terrestre da Europa à Grã-Bretanha seria fator de graves transtornos no fornecimento pontual de mercadorias. A fim de evitar falta de produto, muitas empresas da UE há meses já providenciaram aumentos substanciais de estoques em suas filiais na Grã-Bretanha. A indústria farmacêutica europeia, neste particular extremamente cautelosa, foi a primeira a tomar tais providências a fim de evitar falta de remédios no já bastante criticado serviço de saúde britânico.
Além disso a Grã-Bretanha, na eventualidade de um Brexit sem acordo, teria que instituir uma taxação de impostos sobre tudo a ser importado. O preço do produto final tornar-se-ia mais alto, um fator de risco para as empresas exportadoras — muitas das quais já abandonaram a Grã-Bretanha. Só em 2018 quarenta e oito empresas transferiram suas sedes para Amsterdã. Outras optaram por outros países.
Enquanto membro, a Grã-Bretanha goza do privilégio de livre comércio entre os países membros da União Europeia. A taxação na importação de produtos e matérias-primas provocaria outro tipo de congestionamento nos portos e aeroportos — tendo em vista não existir, de imediato, um serviço aduaneiro de amplitude necessária para dar conta desta tarefa.
Britânicos transferem investimentos para outros países
Segundo a New Financial, think tank britânica, mais de 275 instituições da área financeira transferirão valores patrimoniais no montante de 1,2 trilhões de dólares da Grã-Bretanha para a UE. Dez grandes bancos, sobretudo bancos de investimento, transferirão 800 bilhões de libras para a UE. Some-se a isso mais 35 bilhões da área de seguros e 65 bilhões de valores patrimoniais e investimentos diversos. Lugares atrativos para tais transferências são Dublin, na Irlanda, seguida de Luxemburgo, Paris, Frankfurt, Amsterdã. Segundo William Wright, chefe da New Financial, “isso enfraquecerá a influência da Grã-Bretanha no setor bancário e financeiro da UE, diminuirá o valor arrecadado em impostos e reduzirá a exportação de serviços financeiros à UE”.
Ilustrativo também é o fato, divulgado por alguns órgãos da mídia britânica e pela “Der Spiegel” online (de 10 de março), da Alemanha, de que milionários e bilionários britânicos tratam de transferir parte de seus vultosos capitais para lugares que acham mais seguros — de preferência para os chamados paraísos fiscais. Um claro indício de que os especialistas da área financeira, milionários e bilionários claramente reconhecem o dramático que será um Brexit sem acordo. Até quando o Parlamento Britânico vai continuar vivendo num mundo de fantasia?

Não são apenas valores monetários que estão saindo do país. Diante da insegurança, milhares de britânicos já deixaram o seu Great Britain e estão requerendo a cidadania em outros países da UE. Segundo a Deusche Presse-Agentur, entre os países preferidos encontram-se Alemanha, Irlanda, Portugal e Suécia. Estatísticas da Alemanha revelam que em 2015, um ano antes do plebiscito, apenas 622 cidadãos britânicos requereram a cidadania alemã. Em 2017 este número aumentou para 7493 — cifra superada apenas por cidadãos de procedência turca. Segundo enquete do portal online StepStone, cerca de 600 mil cidadãos do Reino Unido estariam preparados para deixar a Grã-Bretanha — dos quais 44% (264 mil) citam a Alemanha como destino preferido. Idosos preferem Portugal e Espanha onde, há anos, já vivem milhares de aposentados do Reino Unido.
O governo de Dublin informa que em 2018 deram entrada 183 mil requerimentos britânicos para a obtenção da cidadania irlandesa — dos quais 85 mil de procedência norte-irlandesa (nascidos na Irlanda do Norte automaticamente têm direito aos dois passaportes). Em comparação ao ano de 2017, houve um aumento de 22%.
Em relação ao Brexit há muitas questões não resolvidas. Alguns exemplos: o quê acontecerá, por exemplo, com os cerca de 4 milhões de cidadãos da UE que vivem no Reino Unido — dos quais 900 mil são poloneses (que não querem voltar à Polônia)? O que acontece com os milhares de cidadãos do Reino Unido que se encontram na UE? O quê será dos milhares de estudantes da UE que estudam em universidades do Reino Unido e milhares do Reino Unido que estudam em Universidades da UE?
Theresa May lutou. Até a exaustão. Poder-se-ia crer que foi demasiadamente birrenta — um atributo positivo quando vale defender a decisão das urnas de um plebiscito. Independentemente de quem, neste momento, estivesse em seu lugar à frente do governo britânico, um Brexit sem acordo estigmatizará qualquer governante britânico como coveiro da Grã-Bretanha, uma casaca com a qual o Parlamento Britânico está tentando vesti-la à força. No entanto, há indícios de que o coveiro da Grã-Bretanha será seu próprio Parlamento — que é dominado por separatistas, nacionalistas, esquerdistas e oportunistas.
Em 29 de março, daqui a alguns dias, o mundo saberá mais sobre os estragos feitos pelo radicalismo de alguns ingleses.
(Na próxima semana, discuto a importância da Irlanda do Norte e a União Europeia.)