Janaína Mathias Guilherme e Maria Francisca da Silva Santos*

A Constituição Federal de 1988 garante o direito à vida e à Saúde e iguala todos os cidadãos sem qualquer tipo de distinção. Em função das dificuldades vivenciadas por quem depende do SUS para cuidar da saúde, quem tem condição financeira paga um plano de saúde.

Os planos de Saúde têm legislação própria e são regidos pelas regras da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que é o órgão responsável pela fiscalização das operadoras de planos de saúde e pela regulação do mercado, tanto nos aspectos assistenciais como naqueles ligados à atividade econômica. Em função da Resolução Normativa nº 465/2021 a ANS atualiza seu rol de seis em seis meses.

Os planos são obrigados a fornecer os medicamentos que estão nesse rol. Nem sempre o fazem, o que gera a polêmica jurisdicionalização da saúde. O que não está no rol, o plano não tem obrigação de arcar, mas no Brasil, ao menos neste momento já que quando se fala em direito de saúde há uma grande volatilidade nos entendimentos, o rol não é taxativo e sim, exemplificativo. Caberá ao advogado analisar o caso concreto para compreender se vale a pena litigar contra o plano ao invés de acionar algum ente público.

Para estar incluído no rol da ANS o medicamento precisa ser autorizado pela Anvisa assim como o que pleiteia a incorporação ao SUS. São inúmeros requisitos a serem preenchidos.

Quando falamos em SUS é importante saber se o medicamento está incorporado ou não. Em ambos os casos existem demandas judiciais, mas cada uma com suas peculiaridades. No entanto, a não incorporação pode se tornar um entrave significativo para o paciente. As demandas judiciais são longas e penosas. Há casos em que o paciente vai a óbito antes que o juiz decida a seu favor. Em outros casos, a lentidão nas decisões e cumprimentos resultam no retardamento do tratamento gerando consequências severas e irreversíveis. É preciso um combo de fatores para favorecer o resultado almejado, cenário árduo e conhecido somente por quem realmente se especializou na área.

Para a incorporação de um medicamento, procedimento, equipamento ou produto junto ao Sistema Único de Saúde é necessário que ele passe por uma análise da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde e nesse processo alguns pontos devem ser analisados.

Em tese, a análise do plenário da CONITEC é baseada em evidências científicas, levando em consideração aspectos como eficácia, efetividade e a segurança da tecnologia, tudo nos termos do Decreto 7646/2011.

No entanto, existem outros fatores que podem levar à negativa do pedido de incorporação ao SUS. Basta uma pesquisa simples para ver que nos pareceres da CONITEC em que se encontram medicamentos altamente utilizados por pacientes graves, mundo afora são encontradas palavras como “custo adicional’, “mais caro”, “impacto orçamentário”. 

Neste cenário, cabe, portanto, o questionamento: quanto vale uma vida humana? É possível mensurar o valor da vida? No terreno do pensamento, o que nos torna humanos é a incansável luta pela felicidade, aqui personificada no direito e na justiça como instrumento de busca por uma vida com dignidade, algo extremamente profundo que dá contorno a nossa existência em sua singularidade e que não pode ser medida, nem pesada!  Não tem preço.

Muitas vezes o estudo compara o medicamento a ser incorporado a outro e conclui pela sua eficácia, mas em função de seu alto custo opina pela não incorporação. Esta comparação é muitas vezes, uma banca de negócios, onde a vida vale menos, afinal cada corpo humano reage de uma forma ao medicamento. São inúmeros os fatores que levam o médico assistente a prescrever o medicamento A ou B e o principal deles é o indivíduo. A mesma doença em indivíduos diferentes que estejam com exames no mesmo patamar, pode ser tratada da mesma maneira, com resultados diferentes. 

A questão é que muitos medicamentos que estão há anos no rol da ANS não foram incorporados ao SUS e se a ANS os incluiu certamente é porque eles são eficazes para o propósito a que se destinam. Ou seja, deixando de lado a possibilidade da jurisdicionalização desacreditada e desconhecida por muitos, se a pessoa tem uma doença grave e tem plano, em tese ela fará uso daquele tratamento que seu médico sabe que pode lhe salvar a vida ou lhe dar um fim digno, com menos dor, mas se ela depender do SUS e não procurar a justiça, poderá ver sua vida minguando lenta e dolorosamente. Ora, se “todos são iguais perante a lei e é dever do Estado cuidar da saúde” onde fica a inclusão? Onde fica a cidadania quando a justiça estaciona nas mãos de quem desconhece o significado de humanização? 

O SUS salva muita gente e é digno de elogios em relação a vários tipos de doenças. No entanto, essa disparidade precisa ser repensada. Os critérios precisam ser os mesmos e o critério financeiro não pode ser determinante. É lógico que quando se fala em SUS é impossível não pensar no erário público envolvido, mas o impacto orçamentário jamais poderia ser um fator determinante como é possível aferir em muitos pareceres da CONITEC. Soluções precisam ser encontradas. Não é crível que a vida do usuário do plano tenha mais valor e seja digna de mais cuidados que a do usuário do SUS.

E essa é uma discussão que deveria ser levada adiante em todas as camadas sociais, eis que há medicamentos que não podem ser pleiteados em desfavor dos planos de saúde ou seja, há pessoas que pagam planos e são obrigadas a ingressar contra os entes públicos, justamente os entes públicos abarrotados por pedidos de medicamentos de alto custos.

No momento da análise do pedido de incorporação, se o impacto será relevante é preciso repensar o motivo, reduzir impostos, custos, quebrar patentes, investir em novas pesquisas… se alguém precisa perder algo, esse alguém não pode ser o cidadão doente. É preciso executar o exercício da cidadania e isso envolve o conhecimento dos direitos humanos para a construção de uma sociedade onde pacientes que dependam do SUS tenham assegurado o direito à vida plena.

A ciência está em constante avanço. A título de exemplo insta mencionar que não faz muito tempo que iniciou no Brasil um movimento para que os médicos em determinadas situações prescrevessem para o tratamento de alguns tipos de câncer uma nova tecnologia que consiste em extrair uma amostra de sangue, tratar os linfócitos (processo que acontece nos Estados Unidos) e ‘ensiná-los’ a combater a neoplasia assim que o sangue é infundido no paciente. Essa nova tecnologia custa certa de três milhões de reais. Existe no Brasil na data de hoje talvez menos de uma dezena de pessoas se tratando com essa tecnologia, que tem sido muito usada em outros países de forma recorrente. Aparentemente somente os planos de saúde têm sido acionados para arcar com esse tratamento. O que dificulta e encarece tudo que é preciso enviar para os Estados Unidos a amostra do sangue do paciente e isso certamente majora e muito os custos do tratamento. 

São entraves burocráticos que muitas vezes demoram anos para serem superados e enquanto não o são, vamos perdendo no caminho Marias, Marinas e Josés, todos à espera de se tratar pelo Sus, assim como o fazem outros que têm condição financeira de pagar o plano. Mas qual a consequência disso? No Brasil existe uma teoria muito utilizada pelos operadores do Direito: a teoria da perda de uma chance. E a questão é muito simples: se quem paga o plano faz o tratamento x e se cura, mas quem usa o Sus não tem acesso a ele, morre, obviamente o fato em si prova que ao menos a família do usuário tem direito a se ver indenizada, não pela morte, mas porque a ele foi negado o direito de tentar. 

Quando o paciente é idoso a situação se agrava. Muitas vezes, há uma predileção pelo mais jovem, mais propenso a reagir ao tratamento, ou seja, o entrave vai além de não ter um plano de saúde, eis que alcança o etarismo, quando há escolha entre o paciente jovem e o idoso. Quem pode viver? Quem tem mais direito?

Ou seja, fala-se tanto em ‘impacto orçamentário’ e em “medicamento de alto custo’ tudo no afã de proteger o que chamam de interesse público, mas se todos os doentes desse país que não iniciaram o tratamento no momento certo e tiveram prejuízos, ou seus familiares conhecessem seus direitos certamente o impacto seria muito maior. 

Não somos todos iguais, já que uns podem tratar se de uma doença devastadora melhor e mais rapidamente que outros e em função disso, uns tem a garantia constitucional à vida realmente protegida, respeitada. A diferença está na precificação da vida. No dia a dia é possível afirmar que a luta pela vida vale muito a pena, tanto no âmbito individual quanto no âmbito coletivo, já que é essa luta de massa que faz com que medicamentos sejam incorporados, patentes sejam quebradas e pesquisas sejam iniciadas. 

O Direito à Saúde é uma área que se bem utilizada pelo Operador faz com que ele compreenda a máxima da escolha pela Justiça quando ela e o Direito estiverem em conflito e se depare com o conceito de cidadania que nada mais é do que o acesso de forma igualitária a todos os direitos fundamentais. Essa reflexão é necessária e urgente, até porque não há nada mais urgente do que vida e a dignidade humana.

*Janaína Mathias Guilherme, advogada formada pela Universidade de Uberaba, especialista em Direito Civil e Processual Civil e em Direito Processual Penal pela Universidade Federal de Goiás, atuante na área da saúde seja no Direito Público, seja no do consumidor. Sócia da banca Janaina M. Guilherme Assessoria e Consultoria Jurídica.

Foto do perfil de Janaína Mathias Guilherme

*Maria Francisca da Silva Santos, fotojornalista, formada pela Faculdade de Artes e Arquitetura da Universidade Católica de Goiás e em Filosofia pela PUC Goiás. Presidente da APDNHC – Associação dos Pacientes com Doenças Neurológicas do Hospital das Clínicas. Membro Titular do Conselho Municipal de Saúde de Goiânia. Paciente com esclerose múltipla e usuária do SUS.

Pessoa sorrindo com óculos de grauDescrição gerada automaticamente